Foi uma quarta-feira atípica na Ucrânia. O 31º aniversário da independência da ex-república soviética coincidiu com o sexto mês de uma guerra que parece não ter fim em um horizonte próximo. Em vez de cânticos, celebrações e festa, as bombas e os mísseis semearam medo e horror. Um bombardeio atribuído à Rússia contra a estação ferroviária de Chaplino, na região de Dnipropetrovsk (centro), deixou pelo menos 22 mortos e 50 feridos.
Em Kiev, o presidente Volodymyr Zelensky fez um pronunciamento emotivo e recebeu a visita do primeiro-ministro demissionário do Reino Unido, Boris Johnson. "Uma nova nação surgiu às 4h de 24 de fevereiro. Não nasceu, mas renasceu. Uma nação que não chorou, não gritou, não ficou com medo. Não fugiu. Não desistiu. Não esqueceu", declarou. Ele falou sobre o novo ataque contra civis. "A estação de Chaplino é nossa dor hoje. Neste momento, são 22 mortos, incluindo cinco pessoas que foram incineradas em um vagão. Um menino morreu, ele tinha 11 anos. Um foguete russo destruiu sua casa", lamentou.
Johnson, por sua vez, destacou "a forte vontade dos ucranianos de resistir" e disse que o líder russo Vladimir Putin não compreendeu isso. "Vocês vão defender seu direito a viver em paz, em liberdade e, por isso, a Ucrânia vai vencer." O premiê foi condecorado por Zelensky com a "Ordem da Liberdade", uma distinção nacional dada a quem apoia a soberania do país.
Em reunião do Conselho de Segurança, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, disse que o dia de ontem representou "um marco triste e trágico". Ele denunciou as consequências dessa "guerra absurda", que vai "muito além da Ucrânia". Guterres reforçou a preocupação com a situação no entorno da usina nuclear de Zaporizhzhia, tomada pelo Exército russo. "Qualquer escalada adicional da situação pode levar à autodestruição", advertiu.
Ontem, o jornal britânico The Guardian informou que Moscou criou um plano "detalhado" para desconectar Zaporizhzhia da rede elétrica da Ucrânia, o que poderia levar a uma "falha catastrófica" dos sistemas de resfriamento dos reatores. A central atômica é a maior da Europa.
Para marcar o sexto mês da invasão russa e o Dia da Independência, o Correio entrevistou cidadãos ucranianos que falaram sobre resiliência e esperança. Morador de Bucha, o jornalista Yevhen Kizilov, 46 anos, jamais esquecerá a guerra. A ocupação russa deixou profundas marcas em sua família e na cidade, situada a apenas 15km de Kiev. "Em março, retornei do exílio e sepultei meu pai, depois de vários dias difíceis de buscas por seu corpo em diferentes necrotérios. Espero que o Exército russo chute o traseiro de Putin e que a Rússia não invada outras nações", afirmou.
Os soldados executaram Valeriy Kizilov, 69, com um tiro na cabeça, no jardim de sua casa, que depois foi incendiada. "Meu pai era um bom amigo. A influência de sua morte em minha vida foi imensa. Parei de sorrir." Sem coragem para retomar o bom humor, Yevhen garantiu que os ucranianos nunca acreditaram tanto na vitória. "O inimigo está ficando mais fraco. Em breve, a Rússia cairá", apostou. O chamado "massacre de Bucha" deixou pelo menos 1.300 mortos.
Assim que as primeiras explosões ecoaram em Kiev, em 24 de fevereiro, a estudante de história Kateryna Shtepa, 17, tomou uma resolução: aprender mais sobre o próprio país. "Eu abandonei o idioma, a música e os produtos russos. Passei a olhar para a nossa cultura, a nossa história e a nossa literatura de forma diferente", contou. No dia em que as forças de Moscou invadiram a Ucrânia, Kateryna foi despertada pelo impacto dos mísseis. "Coloquei minhas coisas em uma mochila e me escondi no porão. Foi muito assustador. Eu me recusava a crer que estivéssemos em guerra." Os primeiros meses foram os piores. A jovem viu-se forçada a abandonar Kiev por quase 50 dias, em busca de segurança. "O melhor momento da minha vida foi quando voltei para casa. Sou infinitamente grata às Forças Armadas da Ucrânia por protegerem a capital."
Herman Makarenko, maestro da Orquestra Clássica de Kiev, encontrou na música a força para enfrentar o pesadelo da guerra. Os momentos mais difíceis, segundo ele, foram em 24 de fevereiro e nos dias 8 e 9 de março, quando conseguiu reunir os músicos remanescentes. "Tocamos o Concerto da Paz, na Praça da Independência, em Kiev, ao som das sirenes antiaéreas. Os ensaios e apresentações eram interrompidos pelos bombardeios. Tínhamos que parar tudo e descer para o abrigo antibombas."
Em Lviv (oeste), onde se refugiou após abandonar Kremenchuk (centro), Natalia Neborak, 38, teve um Dia da Independência da Ucrânia atípico. "As sirenes antiaéreas estão malucas, 'gritando' noite e dia, o tempo todo", desabafou a funcionária de uma empresa de TI (tecnologia da informação). "Quando a guerra começou, nós contávamos as horas e, depois, os dias. Achávamos que seria uma questão de dias. Ninguém poderia crer em um conflito em larga escala. Eu sabia que Putler (ela adotou uma junção dos nomes Vladimir Putin e Adolaf Hitler) era louco, mas não imaginava o quanto", disse.
Natalia se apossa de uma sensação estranha. "Não podemos planejar nada, como pessoas normais fazem. Nós apreciamos e acreditamos em nosso exército. Para os ucranianos, os soldados são deuses, e eu não estou brincando. Se a Rússia queria nos 'desnacionalizar', o efeito foi o contrário", comemorou.
A população da Ucrânia tenta, desesperadamente, ajudar os combatentes no front. A designer gráfica Olena Zenchenko, 27, utilizou a ONG UA First Aid, da qual é cofundadora, para levar adiante os esforços de guerra. "Vejo um monte de doações de equipamentos militares todos os dias. Nossa fundação tem recebido medicamentos táticos destinados aos soldados", relatou. Olena vivia nos EUA; em fevereiro, retornou à Ucrânia e providenciou kits de primeiros socorros para as tropas. "Tenho medo da crise econômica pós-guerra. Espero ainda ter um emprego para pagar minhas contas e auxiliar minha família. Por enquanto, é com o que posso sonhar."
"Nós, ucranianos, elegemos Volodymyr Zelensky como nosso presidente, e defenderemos a nossa escolha. Estamos combatendo com sucesso no front. Países aliados têm nos ajudado com armas, e a Rússia sente que, em breve, será forçada a responder pelos crimes cometidos. Vejo o meu futuro em um país próspero e independente. Acredito na Ucrânia, mas sei que pagaremos um preço alto por essa vitória. Gosto de uma frase do político ucraniano Viacheslav Chornovil: 'É hora de escolher: ou a unidade, a vitória e o caminho para a luz, ou, novamente, o longo caminho para a liberdade'."
"Não levamos as declarações da Rússia a sério. Eles queriam capturar Kiev em três dias. Passaram-se seis meses desde a invasão em larga escala. Mostramos nossa força e indomabilidade. Graças ao apoio mundial, podemos continuar a defender nossa terra. Por causa da guerra, tive de abandonar Mariupol, onde eu vivi pelos últimos oito anos. Foi obrigada a me mudar de casa por duas vezes. Hoje, estou em Kiev. Alguns dos meus conhecidos morreram em Mariupol, e muitas pessoas se moveram para diferentes partes da Ucrânia ou do exterior. Também fui forçada a recomeçar a minha vida do zero. Não faço mais planos a long prazo."
"A meta da Rússia é eliminar a nação ucraniana e reconstruir o Império Russo. Eles querem destruir toda a pessoa pró-Ucrânia. Estão queimando as muitas ideias, e até mesmo uma grande cidade, Mariupol. Matam civis conscientemente, e disparam contra uma usina nuclear, para forçar a rendição do governo ucraniano. Temo não sobreviver, em caso de queda do governo de Zelensky. Agora, pensamos mais sobre reconstruir e renovar o país, depois da guerra, pois acreditamos fortemente em nossa vitória. Ao mesmo tempo, entendemos que não será fácil."
"Nós, ucranianos, não pertencemos à guerra. Vivemos nela. A Rússia tem matado ucranianos todos os dias, pelos últimos seis meses. Estamos aguardando a vitória, trabalhamos por ela. Essa guerra nunca será esquecida, mesmo que em qualquer momento acabe. Tudo mudou para nós. Cada ucraniano mudou sua vida depois de 24 de fevereiro. Não espero nada do futuro, nís precisamos proteger o presente, agora."
"Como uma pessoa pode se relacionar com a guerra? Ela causa indignação, perplexidade, às vezes medo, às vezes impotência, vazio, raiva, amargura, coragem, orgulho pelos compatriotas, fé na vitória e muitos outros sentimentos e emoções. Muitas vezes, elas se substituem, de forma caótica e imprevisível. Eu somente espero a vitória da luz sobre a escuridão."
"Sou sortuda. Não mudou tanta coisa na minha vida, apenas uma cidade. Ainda tenho minha família, meu emprego, nossa casa. Apenas nos movemos para uma região mais segura. Sabemos que o próximo inverno será realmente difícil na Ucrânia. Acreditamos que a infraestrutura será um alvo dos russos. Este será um desafio imenso. Nosso governo não é da conta dos russos. Eu não votei em Zelensky e não votarei nele da próxima vez. Mas isso é um assunto que diz respeito apenas aos ucranianos. Meu Deus, como os russos podem ser tão estúpidos em insinuar que pretendem mudar o nosso governo?"
Fonte: correiobraziliense
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