Às 23h28 de ontem (17h28 em Brasília), Muhammad Al-Askar, 29 anos, pediu que a entrevista ao Correio fosse interrompida. "A situação não é segura aqui em Bagdá. Há confrontos muito violentos. Ouço intensos disparos com armas pesadas", contou o funcionário de uma empresa privada, que mora a apenas 400m da fortificada Zona Verde, no coração da capital iraquiana. Quarenta minutos antes, explosões sacudiram a região. "A milícia Saraya Al-Salam (Brigadas da Paz) disparou sete obuses contra o quartel-general das Forças de Mobilização Popular (leais ao governo e ao Irã) e um deles caiu perto da Embaixada dos Estados Unidos", disse.
O Iraque mergulhou no caos depois que o clérigo xiita Moqtada Al-Sadr, líder das Brigadas da Paz e uma das autoridades mais influentes do país, anunciou inesperadamente a saída da vida política iraquiana. Até o fechamento desta edição, 15 pessoas tinham morrido nos confrontos e mais de 350 ficaram feridas. Todo o Iraque está sob toque de recolher desde as 19h de ontem (hora de Brasília).
Simpatizantes de Al-Sadr invadiram o Palácio Republicano e enfrentaram as forças de segurança, que dispararam gás lacrimogêneo e munição letal. Sadristas foram fotografados na piscina do complexo governamental e fazendo selfies dentro do prédio. Em protesto contra as mortes, o clérigo iniciou uma greve de fome, que deve durar até que a violência termine.
"Eu decidi não interferir em assuntos políticos, mas, agora, anuncio minha aposentadoria final e o fechamento de todas as instituições (sadristas)", escreveu Al-Sadr no Twitter, ao criticar líderes xiitas por não acatarem seus pedidos de reforma. Depois de se distanciar da influência do Irã sobre a política iraquiana, Al-Sadr avisou aos governantes pró-Teerã que permitirá aos seguidores agirem por conta própria, caso o Parlamento não se dissolva.
"Estou com medo. Lembro-me da guerra civil do Líbano, que ocorreu entre o Movimento Amal e o Hezbollah", admitiu Al-Askar, ao citar a luta entre as milícias xiitas convertidas em partidos. "Só espero uma coisa: o desconhecido." Ele relatou que, durante os confrontos na Zona Verde, viu um sadrista ferido com um tiro no peito. Jakdar Jamal, 24, jornalista da emissora Kurdistan 24, cobriu os protestos de ontem em Bagdá. "Vi mascarados assassinarem pessoas. Um franco-atirador matou um homem com um tiro na cabeça", afirmou à reportagem. "Havia milhares de manifestantes na Zona Verde, quando começou um tiroteio indiscriminado. Um de meus colegas foi atingido na mão direita."
Chefe de gabinete do ex-secretário de Estado americano Colin Powell, Lawrence Wilkerson disse ao Correio que os confrontos são um risco para o futuro do Estado iraquiano. "O fato de o clérigo não ter conseguido formar um governo após as eleições legislativas de outubro forçou-o a sair da política e a ir para as ruas. Seus simpatizantes fomentam a agitação no sul, no entorno de Basra", comentou ele, também professor do College of William and Mary, em Williamsburg, na Virgínia (Estados Unidos). "Até que esse cisma seja resolvido, o Iraque terá pouca paz. Enquanto o Irã estiver por trás das milícias xiitas, a agitação e a instabilidade persistirão."
"Al-Sadr e seus seguidores não aceitam a influência significativa do Irã sobre o seu país. Ele não pode desempenhar o papel político que obteve dentro do governo em razão da forte oposição. Então, o clérigo optou por abandonar a política e retornar ao que de melhor fazia — liderar seus simpatizantes contra o governo, utilizando a violência, se necessário. Teremos que ver até onde ele está disposto a ir."
Quando Moqtada Al-Sadr levanta o dedo indicador e franze a testa, o Iraque prende a respiração. A aura do líder religioso xiita tem muito peso na arena política — e nas ruas —, apesar de suas visões muitas vezes inconstantes. O ex-líder das milícias paramilitares, vestido com um turbante preto que o identifica como descendente do profeta do Islã, Maomé, mais uma vez mostrou sua influência.
Al-Sadr sabe que pode contar com ampla faixa da comunidade xiita, a maior do Iraque. "É capaz de ocupar as ruas e ninguém pode ofuscá-lo nisso", explica o analista Hamdi Malik, do centro de análise Washington Institute. "Tudo gira em torno dele" em seu movimento. Apesar das contradições de ser oportunista de alianças. Durante o grande movimento de protesto popular em outubro de 2019, Al-Sadr enviou seus simpatizantes para apoiar as reivindicações de regeneração política dos manifestantes. Em seguida, pediu para que se retirassem.
Nascido em 1974 em Kufa, perto de Najaf (sul), esse homem de rosto redondo e barba grisalha vem de "uma linhagem de religiosos xiitas, sayyids (descendentes do profeta Maomé)", explica Malik.
Fonte: correiobraziliense
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