22 de Novembro de 2024

O que foi a República das Letras, a 'rede social' das grandes mentes dos séculos passados


crédito: Getty Images

Era uma terra estranha, real e imaginária ao mesmo tempo, invisível mas não clandestina. Sua lei era cultivar o saber.

Um lugar protegido por um fosso imaginário cheio de tinta de escrever e defendido por canhões que disparavam balas de papel, como a cidade descrita pelo escritor espanhol Diego de Saavedra Fajardo no livro República Literária, publicado em 1655.

Alguns pesquisadores rastreiam suas origens até os tempos de Platão, mas a menção mais antiga já encontrada sobre a República Literária foi de um dos discípulos do intelectual Francesco Petrarca, o veneziano Francesco Barbaro (1390-1459).

Em 1417, Barbaro agradeceu ao escritor Poggio Bracciolini (1380-1459) "em nome de todos os homens de letras atuais e futuros, pelo presente oferecido à Respublica Literarum para o progresso da humanidade e da cultura".

Bracciolini havia enviado manuscritos antigos que ele havia descoberto em bibliotecas monásticas, uma tarefa desempenhada pelos humanistas seguindo os passos do seu mestre.

Com a divulgação dos textos e a popularização do saber, o debate de ideias deixou de ser exclusivo dos universitários eclesiásticos. E, nesse diálogo mais aberto, até autores mortos chegavam a participar por meio de suas obras, graças ao contato com a Antiguidade e seu longo tempo de existência.

Mas a expressão República das Letras só se tornaria comum no século 17, quando intelectuais como o monge francês Noël Argonne (1634-1704) a descreveram:

Segundo Argonne, "a República das Letras tem origem muito antiga. Ela engloba o mundo inteiro e é composta por todas as nacionalidades, todas as classes sociais, todas as idades e ambos os sexos."

"Ela fala todos os idiomas, antigos e modernos. As artes se unem às letras e os artesãos também encontram seu lugar. O louvor e a honra são concedidos pela aclamação popular", escreveu Argonne em 1699.

De fato, em um mundo com hierarquias sociais bem definidas e divisões políticas e religiosas tão profundas que, muitas vezes, acabavam desembocando em guerras, os cidadãos da República das Letras, ou República Literária, defendiam que todos eram iguais e que qualquer argumento que impulsionasse o saber era importante.

Não havia cidadania formal. As pesquisas, publicações e escritos eram a cédula de identidade dos seus cidadãos.

Ela começou centralizada na Europa, mas, no século 18, a República das Letras já havia se expandido para lugares como Batávia (hoje Jacarta, na Indonésia), Calcutá (Índia), Cidade do México, Lima (Peru), Boston e Filadélfia (Estados Unidos), chegando ao Rio de Janeiro.

Eram muitos os cidadãos dessa república. Para dar uma ideia, entre eles estavam o italiano Galileu Galilei, o inglês John Locke, o holandês Erasmo de Roterdã, o francês Voltaire e o norte-americano Benjamin Franklin.

Já as mulheres eram em menor quantidade, mas não menos expressivas. Intelectuais como Anna Maria van Schurman, a princesa Isabel da Boêmia, Marie de Gournay, Marie du Moulin, Dorothy Moore, Bathsua Makin, Katherine Jones e Lady Ranelagh foram algumas das participantes ativas da República das Letras no século 17.

Esse grupo de filósofas, professoras, reformistas e matemáticas da Inglaterra, Irlanda, Alemanha, França e Holanda, ao lado de outros pares masculinos como René Descartes, Christiaan Huygens, Samuel Hartlib e Michel de Montaigne, representava o espectro do enfoque da ciência, política, fé e avanço da educação vigente na época.

A República das Letras nasceu e cresceu antes da compartimentalização do conhecimento. Naquela época, todos os que se dedicavam a cultivar o intelecto eram literalmente "filósofos" - cujo significado etimológico é "amigos do saber" - sem distinção entre disciplinas acadêmicas, nem divisões como "ciências exatas" e "humanas".

Existiam os especialistas, mas todos costumavam estudar latim e grego, além de história, lógica e outras disciplinas. Por isso, não era raro, por exemplo, um matemático como Isaac Newton dedicar anos a experimentos com alquimia e a reescrever a história do mundo antigo.

Por isso, quando se fala em República das "Letras" ou "Literária", engloba-se todo o conhecimento: matemáticos, naturalistas, astrônomos e médicos se identificavam totalmente com essa denominação.

Mas esse nome também incluía um sentido de aprendizado, de busca do saber. Era uma comunidade de estudiosos, uma fraternidade de curiosos.

Sua língua oficial era o latim, o idioma de todos os eruditos até 1650 e que continuou desempenhando um papel importante, embora o grego e o hebraico também fossem utilizados.

E, do século 15 em diante, o uso culto das línguas vernáculas possibilitou um novo discurso, mais inclusivo.

No centro dessa vida intelectual, estava a troca de cartas.

A imprensa contribuiu muito com o auge da cultura intelectual a partir do Renascimento, mas os livros ainda eram raros e caros. As cartas preenchiam essa lacuna, permitindo comentários, consultas, exposição de ideias e debates. Por isso, os chamados homens de letras dedicavam muito tempo e reflexão a todas as cartas, enviadas e recebidas.

Não é à toa que as escrivaninhas costumavam estar entre os móveis mais belos e elaborados já projetados.

E "os secretários eram indispensáveis, pois, se você fosse um erudito famoso, a correspondência era tanta que era preciso ter ajuda", segundo declarou o historiador Peter Burke para a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Nessa rede social, como nas de hoje em dia, os escritos cobriam espectros muito amplos - desde discussões sobre história, política, filosofia, pesquisa científica e educação até notícias, fofocas, brincadeiras, poemas, experiências pessoais e outras.

Em algumas ocasiões, as cartas eram dissertações completas sobre temas científicos, resenhas de livros recém-publicados, coletâneas de escritos ou cópias de inscrições. A única forma de reconhecer que elas eram cartas era examinar o início e o final do documento.

Cartas escritas com tanto esmero e frequentemente com conteúdo valioso normalmente não eram jogadas fora, mas sim preservadas.

Essa imensa herança cultural - que inclui, por exemplo, cerca de 20 mil cartas de Voltaire e 13.600 do médico e naturalista italiano Antonio Vallisneri (1661-1730) - está sendo digitalizada em grandes projetos que retomam as aspirações da República das Letras.

E as cartas estão sendo usadas para mapear a própria República, fornecendo uma dimensão visual àquele lugar metafórico.

Na República das Letras, todo cidadão precisava participar do intercâmbio de informações. E, assim como a posição social não era impedimento para fazer parte da República, a distância também não era obstáculo.

As inúmeras cartas geradas pela República das Letras eram enviadas pelo correio ou por meio de amigos, comerciantes ou diplomatas, para que fossem entregues pessoalmente.

Quando um destinatário recebia carta, esperava-se que ele a fizesse circular, pois o objetivo principal era sempre a difusão da informação, o desenvolvimento e a expansão do conhecimento. Nem mesmo os livros e manuscritos frequentemente recebidos por meio da rede deveriam ficar nas mãos de uma única pessoa.

Era bem visto que o destinatário agradecesse pela correspondência com um antidoron - um presente de volta.

Frequentemente, os portadores dessas cartas eram jovens que faziam seu Grand Tour pela Europa, uma viagem tradicional que era parte da educação daqueles que tinham condições de fazê-la.

Mas muitos outros cidadãos da República das Letras perambulavam pelo continente, levando consigo cartas de recomendação, e eram recebidos em bibliotecas, arquivos, coleções de antiguidades greco-romanas ou de espécies raras.

Esse procedimento ritualizado de estudos era conhecido como peregrinatio academica e incluía uma oportunidade inigualável: visitar e conversar com os eruditos locais. A conversa culta era outro ideal dessa rede internacional - e não só nos encontros mais íntimos com os sábios.

A imagem de um pequeno grupo de amigos reunidos em torno da mesa em uma casa de campo recordava o antigo simpósio filosófico grego. Ela influenciou a cultura do salão, dos eventos privados em residências com uma lista de convidados selecionados e a cultura dos cafés, que recebiam cidadãos da República para falar sobre os assuntos que ocupavam suas mentes.

Em nível mais institucional, a conversa encontrou outro polo no século 17, com a fundação de academias e sociedades, como a Sociedade Real de Londres e a Academia Francesa de Ciências.

De certa forma, eram versões mais oficiais da rede de correspondência, já que elas ofereciam um lugar onde poderiam ser realizadas conferências, experimentos e demonstrações ao vivo. Essa comunicação para muitas pessoas de uma só vez demoraria muito tempo, se fosse feita pelo correio.

E, embora os livros tenham sido parte essencial da República das Letras - muitos deles, ricamente ilustrados, fazendo com que os artistas se tornassem cidadãos da República -, as academias publicavam revistas, como a famosa Nouvelles de la République des Lettres ("Notícias da República das Letras", em tradução livre), que reuniam as informações e as difundiam para sociedades em diversos países.

Foi assim que as academias e sociedades literárias começaram a assumir parte das atividades da erudição. E, pouco a pouco, a República das Letras foi desaparecendo. Segundo alguns historiadores, as mudanças sociais e tecnológicas foram responsáveis pela sua desintegração.

Invenções como o telégrafo e os avanços no setor de transporte, como as ferrovias e os navios a vapor, facilitaram as comunicações. A impressão ficou melhor e mais barata, permitindo que as notícias e opiniões fossem distribuídas de forma mais ampla.

Mas há intelectuais que garantem que a República das Letras nunca desapareceu.

Um desses estudiosos é Peter Burke, professor emérito de história cultural da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e autor de diversos livros sobre história cultural e intelectual. "Do meu ponto de vista, a única mudança foi a forma de comunicação", segundo ele.

"Por isso, faço distinção entre o que chamo de 'a república movida a cavalos', que é a tradicional que todos mencionam, e a 'república a vapor', que chegou posteriormente, quando as ferrovias possibilitaram a criação das conferências acadêmicas internacionais na segunda metade do século 19 e os navios a vapor permitiram que alguns acadêmicos, como Max Weber, dessem conferências nos Estados Unidos", explica o professor.

"Depois da república do vapor, surgiu a 'república do jato', quando era possível viajar por todo o mundo, trocando conhecimentos. E, por fim, a 'república virtual', que permite a colaboração por e-mail", segundo Burke, trazendo a fraternidade para o tempo presente, na qual todos nós podemos fazer parte.

Como todo cidadão da República das Letras, Burke acrescenta: "não elimino nenhuma dessas formas de comunicação que ajudaram os estudiosos a auxiliar-se e colaborar uns com os outros, o que não significa que sempre tenha sido assim, mas que existia pelo menos uma ética de cooperação".

Este é o ponto central dessa república espetacular: a ética de colaboração em prol do saber, superando todos os obstáculos.

E, ainda que a República das Letras à qual seus cidadãos juraram lealdade por séculos seja um lugar que só existe na nossa mente... não seria este também o caso, até certo ponto, em todas as repúblicas?

Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63059535

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Fonte: correiobraziliense

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