22 de Novembro de 2024

"Putin tem medo da ideia de liberdade", diz líder de ONG agraciada com Nobel


crédito: Arquivo pessoal

O cartaz na mão da ativista de direitos humanos ucraniana Oleksandra Vyacheslavivna Matviichuk, 39 anos, traz um antigo slogan usado por dissidentes soviéticos que ela transformou em luta: "Pela nossa e por vossa liberdade". Líder da organização não governamental Centro pelas Liberdades Civis da Ucrânia, com sede em Kiev, ela entrevistou centenas de sobreviventes da invasão russa e ex-prisioneiros das tropas de Moscou. Sua equipe, formada por 20 pessoas, documentou mais de 21 mil crimes de guerra cometidos pelas forças invasoras. O trabalho rendeu ao Centro pelas Liberdades Civis o Prêmio Nobel da Paz deste ano — dividido com a ONG russa Memorial e com o bielorrusso Ales Bialiatski, na prisão por se opor ao regime de Alexander Lukashenko. Em entrevista exclusiva ao Correio, por telefone, Oleksandra admitiu que foi pega de surpresa pela escolha do Comitê Nobel Norueguês e afirmou que a honraria lhe impõe uma "responsabilidade imensa". "O Nobel da Paz tornará a nossa voz tangível." Ela disse que Vladimir Putin teme a ideia de liberdade e defendeu a criação de um tribunal internacional para julgar o presidente russo.  

Não esperávamos que o Centro pelas Liberdades Civis recebesse o Nobel da Paz deste ano. Minha primeira emoção foi de surpresa. Agora, sinto uma responsabilidade imensa. O Nobel da Paz tornará a nossa voz tangível. Essa guerra está distante de nossa dimensão, enquanto ucranianos.

Putin não tem medo da Otan. Putin tem medo da ideia de liberdade. Se não detivermos Putin na Ucrânia, ele irá mais adiante. Esta não é uma guerra entre dois Estados. Esta é uma guerra entre dois sistemas: o autoritarismo e a democracia. Putin tenta convencer o mundo de que liberdade e democracia são valores falsos. 

Os militares estão falando agora porque os clamores da sociedade civil não tinham sido escutados antes. Talvez tenhamos sido ouvidos pelo Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Mas não nos gabinetes, onde decisões são tomadas pelas pessoas em cargos de poder. Se o mundo não quiser que o poder somente fortaleça os militares, as vozes das sociedades civis precisarão de muito mais apoio. O Nobel da Paz é sobre o slogan "Pela nossa e por vossa liberdade". Eu escutei esse slogan do meu professor, dissidente ucraniano e filósofo Yevhen Sverstyuk. Esta é a história sobre a resistência contra o mal comum. Esta é a história sobre o fato de que a liberdade não possui limites dentro das fronteiras dos Estados. Os valores dos direitos humanos são universais. Esta é a história sobre o fato de que os defensores dos direitos humanos constroem laços horizontais entre eles, os quais são invisíveis até mesmo para a sociedade, a fim de estabelecerem a liberdade e protegerem as pessoas em um mundo onde o mal tenta dominar. Esta história é sobre o fato de que Putin perderá, a Ucrânia vencerá, e, depois, teremos a paz. 

A Rússia utiliza crimes de guerra como um dos métodos de combate. Ela tenta quebrar a resistência das pessoas e ocupar o país infligindo dor imensa aos civis. O Centro pelas Liberdades Civis tem documentado essa dor por oito anos. Nos últimos meses, durante a invasão russa em larga escala, nossos esforços conjuntos documentaram 21 mil crimes de guerra. Eu entrevistei centenas de pessoas, entre sobreviventes e prisioneiros de guerra. Eles me contaram como foram espancados e estuprados, como tiveram os dedos arrancados, como suas unhas foram rasgadas. Tudo isso que enfrentamos na Ucrânia resultou em impunidade absoluta, da qual a Rússia tem se aproveitado há décadas. As tropas da Rússia cometeram crimes na Chechênia, na Moldávia, na Geórgia, no Mali, na Líbia. Elas até encontraram uma forma de usar armas químicas para atacar civis na Síria. Elas acreditavam que poderiam ter o que quisessem. Nós devemos romper esse círculo de impunidade. Devemos criar um tribunal internacional e responsabilizar Putin, Lukashenko e outros criminosos de guerra.

A história nos ensina que regimes autoritários entram em colapso e que seus líderes, os quais se julgam  intocáveis, são levados ante os tribunais. Eu gostaria de destacar algo importante: no século 20, o mundo civilizado fez significativos avanços para estabelecer a lei e a justiça. Cito os julgamentos de Nuremberg, quando criminosos de guerra foram julgados depois do colapso do regime nazista. No século 21, precisamos nos mover adiante. A Justiça precisa ser independente da magnitude do poder do regime de Putin. Não podemos esperar. Precisamos estabelecer um tribunal internacional agora. 

Essa guerra tem um componente de genocídio. Lutamos pela liberdade de sermos um Estado independente, de sermos ucranianos, de desenvolvermos nosso idioma e cultura. Pela liberdade de termos nossa escolha democrática, de construirmos um país onde o governo seja responsável, com um Judiciário independente, e onde os direitos de todos sejam respeitados. É importante que um Estado que seja uma potência nuclear não tenha o direito de ditar ordens. Nós, do mundo civilizado, não permitiremos que o poder nuclear substitua o Estado de Direito. 

Vou partilhar minha experiência. A guerra começou não em fevereiro de 2022, mas em fevereiro de 2014, após o colapso do regime autoritário. Putin começou a guerra, oito anos atrás, quando a Ucrânia teve a chance de construir a própria democracia. Pagamos um preço alto. Eu coordenei a iniciativa civil Euromaidan SOS, durante a Revolução da Dignidade (18 a 23 de fevereiro de 2014). Era uma resposta à brutal repressão aos protestos estudantis pacíficos, em novembro de 2013. Reunimos milhares de pessoas para fornecer assistência legal e outros auxílios aos estudantes presos. Todos os dias, centenas de civis eram golpeados, presos e acusados de crimes fabricados. Lutamos contra a máquina autoritária — o grupo paramilitar Titushky cooperava com os promotores, que, por sua vez, colaboravam com os tribunais. O governo e o Parlamento se opuseram aos protestos pacíficos e tentaram liquidar os manifestantes. Era muito fácil dizer que não podíamos fazer nada. Por causa de nossos voluntários e de nossos advogados, que lutaram de forma muito honesta, começamos a trabalhar não apenas no campo legal, mas também em nível simbólico. Todos em Maidan sabíamos que não havia garantias. Você poderia ser preso ou morto, mas sabia que um grupo lutaria por você. Essa compreensão forneceu coragem para superar o medo. As lições aprendidas são sobre algo simples: em vários países, defensores dos direitos humanos lutam pela liberdade e pela dignidade humana. Com frequência, a luta parece não ter sentido. Mas temos de continuá-la. Os resultados virão. Cedo ou mais tarde. 

Fonte: correiobraziliense

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