Uma carta codificada assinada em 1547 pelo governante mais poderoso da Europa foi decifrada por cientistas franceses, revelando que ele temia os rumores de que um mercenário italiano tentaria assassiná-lo.
Enviada pelo imperador romano Carlos 5º a seu embaixador na corte real francesa — um homem chamado Jean de Saint-Mauris —, a carta oferece uma perspectiva sobre as preocupações dos governantes da Europa em meio a uma perigosa instabilidade causada por guerras religiosas e interesses estratégicos rivais.
Para os historiadores, é também um raro vislumbre da obscura arte da diplomacia em ação: o sigilo, a falsidade e a desinformação eram evidentemente tão presentes quanto são hoje.
A criptógrafa Cecile Pierrot ouviu pela primeira vez um boato sobre a existência da carta em um jantar em Nancy, há três anos. Após uma longa pesquisa, ela a localizou no porão da biblioteca histórica da cidade.
Impondo a si mesma o desafio de decodificar o documento em poucos dias, ela ficou desconcertada ao descobrir que a tarefa era mais difícil do que pensava.
A carta de três páginas — composta por cerca de 70 linhas — foi escrita usando principalmente cerca de 120 símbolos criptografados, mas também há três seções em francês contemporâneo simples.
"A primeira coisa foi categorizar os símbolos e procurar padrões. Mas não era só o caso de um símbolo representando uma letra — era muito mais complexo", diz Pierrot.
"Colocar simplesmente no computador e dizer ao computador para resolver, levaria literalmente mais tempo do que a história do universo!"
Aos poucos, ela e sua equipe começaram a avançar. Havia, ela descobriu, dois tipos de símbolos: simples e complexos.
As vogais em sua maioria não eram escritas como letras, mas adicionadas como sinais diacríticos, como em árabe. A vogal "e", ??embora não tivesse sinal diacrítico, estava praticamente ausente.
Eles também descobriram que, embora a maioria dos símbolos representasse letras ou combinações de letras, outros representavam palavras inteiras — como uma agulha para o rei inglês Henrique 8º. E havia símbolos que aparentemente não tinham nenhuma função.
Finalmente, a grande revelação se deu quando a historiadora Camille Desenclos indicou à equipe outras cartas codificadas escritas pelo imperador e enviadas para ele. Em uma delas, guardada em Besançon, o destinatário havia feito uma tradução informal.
"Esta foi a nossa Pedra de Roseta", diz Pierrot, se referindo às inscrições que ajudaram a decodificar os hieróglifos egípcios.
"Era a chave. No final, teríamos chegado lá sem ela, mas economizou muito tempo."
A escassez da letra "e" é um sinal de que os criadores dos códigos sabiam muito bem o que estavam fazendo.
Como "e" é a letra mais comum (tanto no francês antigo, quanto no moderno), é a que os decifradores procurariam primeiro. E os símbolos falsos foram simplesmente colocados para semear mais confusão.
"Claro que, para os padrões de hoje, é bastante básico", diz Pierrot, que passa normalmente seu tempo pensando em física quântica e números primos gigantes.
"Mas, dadas as ferramentas que eles tinham, eles certamente nos deram trabalho."
Mas, afinal, o que está escrito na carta?
A equipe ainda não divulgou a tradução completa, que está guardando para um artigo acadêmico. Mas nesta semana eles anunciaram seu tema.
Fevereiro de 1547 foi uma época rara de relativa paz entre as potências rivais da França e do Sacro Império Romano.
O imperador Carlos 5º — governante de vastas áreas, incluindo Espanha, Holanda, Áustria-Hungria e sul da Itália — não estava mais em guerra com o rei Francisco 1º. Mas a desconfiança ainda prevalecia.
Dois eventos recentes estavam na mente de ambos os governantes. O primeiro era a morte de Henrique 8º apenas algumas semanas antes. E o segundo era a rebelião na Alemanha por uma aliança protestante chamada Liga Schmalkaldic.
Na carta, Carlos 5º revela sua preocupação em manter a paz com a França para poder concentrar suas forças contra a Liga.
Ele diz ao embaixador para se manter a par dos pensamentos da corte francesa, em particular de qualquer reação à morte do rei Henrique 8º.
O que ele quer evitar, acima de tudo, é que franceses e ingleses se unam para prestar mais assistência aos rebeldes protestantes.
Carlos 5º fala então sobre um rumor que está circulando — que ele, o imperador, será alvo de uma tentativa de assassinato do condottiere (líder mercenário) italiano Pierre Strozzi.
Saint-Mauris deve descobrir o máximo que puder sobre essa história. Será apenas um boato ou uma ameaça genuína?
E, finalmente, na parte mais longa da carta, Carlos 5º explica ao embaixador a atual situação de sua campanha contra a Liga.
Houve um novo surto de rebelião em Praga, e o sobrinho do imperador, Fernando do Tirol, foi forçado a fugir.
Mas Carlos 5º dá instruções sobre como Saint-Mauris deve "distorcer" a notícia na corte francesa.
A rebelião de Praga é um assunto sem relevância, ele foi orientado a dizer, e Fernando deixou a cidade porque quis se juntar ao pai — o irmão do imperador — na campanha.
Para a historiadora Camille Desenclos, é significativo o fato de algumas partes da carta estarem criptografadas, e outras não.
"Todos eles sabiam que havia 50% de chance de a carta ser interceptada. Nesse caso, havia mensagens que valiam a pena ser passadas para os franceses", diz ela, como o fato de o imperador estar cooperando em medidas para reforçar a confiança no norte da Itália.
"Estas (mensagens) foram deixadas em linguagem simples. Mas havia outros assuntos que tinham que permanecer em segredo — como a verdadeira situação em relação à rebelião protestante, e foram colocados em código."
O que aconteceu a seguir? Apenas algumas semanas depois, o rei francês Francisco 1º morreu, sendo substituído por seu filho Henrique 2º.
Carlos 5º derrotou a Liga no ano seguinte, mas o protestantismo tinha chegado na Alemanha para ficar. Em 1552, Henrique 2º formou uma nova aliança contra o imperador com os príncipes protestantes.
E não houve tentativa de assassinato. Carlos 5º morreu em um mosteiro espanhol em 1558.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63779065
Fonte: correiobraziliense
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