22 de Novembro de 2024

Primeiro cidadão do Catar a se assumir gay fala sobre riscos para ativistas


crédito: Arquivo pessoal

No Catar e em outros países árabes, sair do armário é um fardo duas vezes mais pesado do que no Ocidente. Como se não bastassem o preconceito e a discriminação, os Estados que professam o islamismo criminalizam as relações hmoafetivas. Durante a Copa do Mundo, as autoridades catarianas baniram dos estádios qualquer menção a símbolos da causa LGBTQIA . Ainda assim, houve quem ousasse desafiar os anfitriões. Os jogadores da seleção da Alemanha levaram as mãos à boca ao posarem para a foto oficial, antes da primeira partida. O jogo entre Portugal e Uruguai foi interrompido pelo italiano Mario Ferri, que invadiu o gramado segurando a bandeira com as cores do arco-íris. O maior evento de futebol do planeta abriu os olhos da comunidade internacional e estimulou um debate sobre a homossexualidade no islã. 

O médico Nas Mohammed, 35 anos, foi o primeiro cidadão do Catar a se assumir gay, a lutar pelo ativismo LGBTQIA e a denunciar Doha pelas violações aos direitos dos homoafetivos. Em 2011, ele mudou-se para São Francisco, nos Estados Unidos, onde pediu asilo quatro anos depois — em 2017, foi contemplado pelo benefício. Nas tem ajudado outros catarianos LGBTQIA , apesar dos riscos que isso representa. "Tenho colocado pessoas de minha comunidade em contato com documentaristas alemães e britânicos e denunciado abusos dos direitos humanos à organização não governamental Human Rights Watch (HRW)", explicou Nas ao Correio, por telefone.

"Ser uma pessoa LGBTQIA no Catar significa que parte de sua vida precisa ser mantida em segredo. Caso contrário, você estará em perigo", advertiu o médico. "Os catarianos gays não querem se expor e temem uma série de consequências por saírem do armário. Elas incluem rejeição social, incapacidade de conseguirem um emprego e serem alvos de violência por parte de familiares de membros da sociedade. Mas também de sofrerem repressão das forças de segurança", acrescentou. No Catar, de acordo com a HRW, suspeitos de homossexualidade são capturados e submetidos a tratamento degradante na prisão, incluindo tortura física e a chamada "terapia de conversão" — um método polêmico para "torná-los" heterossexuais. 

Até o início deste ano, inexistia no Catar qualquer tipo de registro sobre a situação das pessoas LGBTQIA . "Quando eu abandonei o Catar, tive que solicitar asilo. Sem isso, não teria a chance de uma boa vida, por ser uma pessoa LGBTQIA . Apesar de meu asilo, fui desacreditado várias vezes por não existirem documentos oficiais sobre a situação dos gays em meu país", comentou Nas. Ao sediar a Copa do Mundo, o Catar apresentou-se ao mundo como um destino turístico. "Com isso, a verdade teve que vir à tona. Eu esperei que alguma organização ou alguma pessoa do Catar rompesse o silêncio, mas não surgiu nenhuma voz pública. Descobri que não temos ninguém quando decidimos nos assumir. Resolvi sair do armário. Foi quando outras pessoas de meu país me procuraram", acrescentou.

Em outras nações islâmicas, a intolerância e a homofobia também estão institucionalizadas pela Justiça e pela religião. No Irã, dois ativistas LGBTQIA foram condenados à morte pela vaga acusação de "corrupção sobre a Terra", por meio da "promoção da homossexualidade". Na Malásia, além de punições rigorosas, os gays são submetidos aos mukhayyam — "programas" de "reabilitação" ou "cura". Nos últimos anos, o governo censurou filmes, músicas e eventos que supostamente promoviam os direitos LGBTQIA . O Iêmen, por sua vez, castiga com 100 chicotadas ou um ano de prisão gays solteiros. Homens que vivem com outros homens podem enfrentar a morte por apedrejamento. A mesma sentença é aplicada por 12 estados do norte da Nigéria. A Arábia Saudita também adota o açoite para os "réus primárias". Quem for reincidente pode ser executado. 

Pesquisadora da HRW sobre Direitos LGBTQIA para o Oriente Médio e o Norte da África, Rasha Younes explicou ao Correio que a maior parte dos países da região — conhecida como Mena — criminaliza as relações entre pessoas do mesmo sexo. "Mesmo nações que não tratam a homossexualidade como crime, como Bahrein, Egito e Jordânia, utilizam 'leis de moralidade' espúrias, de devassidão e de prostituição para atingir as pessoas LGBTQIA . Muitas vezes isso acontece sem base legal e de forma contrária ao direito internacional", afirmou. 

De acordo com Younes, governos do Oriente Médio e do Norte da África sustentam que a sociedade não está pronta para a "confusão" que a não normatividade representaria para suas ideologias regressivas. "Revoltas coletivas no Iraque, no Líbano e na Tunísia, por exemplo, têm mostrado que a solidariedade com os LGBTQIA às vezes ocorre nesses países e que parte da população apela contra formas de exclusão."

Nas Mohamed admitiu que os muçulmanos homossexuais vivem na clandestinidade. "Eles precisam permanecer escondidos, no Oriente Médio. Há diferentes  grupos que tentam mudar as coisas do modo como podem, mas têm que ficar na obscuridade. Quando você está fica na clandestinidade, perde grande parte de sua capacidade de erguer a voz", lamentou o ativista. 

 

O Código Penal do Catar, criado em 2004, funciona como uma interpretação da sharia (lei islâmica) e pune a relação sexual entre homens e entre mulheres. O artigo 281 criminaliza relações sexuais “sem compulsão, coação ou astúcia” entre duas mulheres, com pena até sete anos de prisão. A mesma sentença se aplica ao sexo entre dois homens, segundo o artigo 285. Por sua vez, o Catar opera os tribunais da sharia, nos quais é tecnicamente possível que dois homens sejam condenados à morte por manterem relações íntimas. Nesse caso, a pena costuma ser por lapidação ou apedrejamento. 

"A preservação da moral e das tradições costuma ser usada pelos Estados para controlarem os corpos e as identidades de indivíduos queer e transsexuais. Longe de servir ao interesse público, o policiamento da não normatividade visa preservar o status quo, defendendo os valores sociais patriarcais e justificando a negligência do Estado."

Rasha Younes, pesquisadora da HRW sobre Direitos LGBTQIA+ para o Oriente Médio e o Norte da África 

"No Corão, há uma história sobre uma comunidade que é descrita como 'violenta sexualmente'. No entanto, as pessoas compreendem que se tratam de gays, os quais são punidos por Alá. Há várias deduções a partir dessa passagem do livro sagrado do islamismo. No entanto, a verdade é que a violência dirigida aos  LGBTQIA não se resume ao Oriente Médio ou aos países muçulmanos. Nós a vemos em todas as culturas e religiões. Até mesmo nos EUA, houve um tiroteio em uma boate gay do Colorado. Muitas pessoas desumanizam a comunidade LGBTQIA . Elas não conversam conosco, não entendem a nossa vida. Acho que, por sermos minoria, somos perseguidos em todos os lugares. 

Não acho que os protestos vistos durante a Copa do Mundo ou a exibição da bandeira com as cores do arco-íris mudará nossa realidade. O que precisamos é da construção de nossa voz independente. A mudança levará muito tempo e deverá ser vista de diferentes perspectivas. Não se trata apenas da descriminalização da homossexualidade ou da aceitação da sociedade. Salvar uma única vida seria um sucesso."

Nas Mohammed é médico assumidamente homossexual
e cidadão do Catar asilado nos Estados Unidos 

 

Fonte: correiobraziliense

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