A primeira canonização de um santo nascido no Brasil, a consolidação do nome de Jorge Mario Bergoglio dentro da Igreja e gestos de simpatia que acabaram conquistando os fiéis brasileiros: de acordo com relatos ouvidos pela BBC News Brasil, esse foi o saldo da única visita do papa Bento 16 ao Brasil, de 9 a 13 de maio de 2007.
O papa emérito morreu neste sábado (31/12) aos 95 anos.
Naquela visita, Bento 16 teve compromissos em São Paulo, em Aparecida e em Guaratinguetá. Celebrou missas, encontrou-se com jovens, visitou uma fazenda para recuperação de dependentes químicos e abriu a 5° Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho (Celam).
O texto final daquela conferência, conhecido como Documento de Aparecida, foi coordenado pelo então cardeal arcebispo de Buenos Aires e presidente da Conferência Episcopal Argentina, Jorge Mario Bergoglio — hoje papa Francisco.
"O convite para que Bento 16 visitasse o Brasil foi feito pelo cardeal dom Claudio Hummes, então arcebispo de São Paulo, no fim de 2005", conta o padre Michelino Roberto, da Arquidiocese de São Paulo.
"Na ocasião eu estudava e residia em Roma e acompanhei o cardeal Hummes na audiência em que o convite foi formalizado. Essa foi a primeira ocasião em que tive contato direto e pessoal com Bento 16."
"Bento 16 veio ao Brasil principalmente por causa da conferência em Aparecida. E nesta conferência o então cardeal Bergoglio foi o responsável pela redação do documento e teve um papel importante na moderação das discussões", contextualiza o vaticanista Filipe Domingues, que acompanhou in loco os principais eventos da visita papal de 2007. "Isso mostra como na Igreja nada acontece por acaso, nada acontece de repente."
Domingues ressalta que a ponte entre os dois papas foi pavimentada nesse episódio. "Muita gente acha que eles não têm nada a ver um com o outro, mas na verdade há uma linha de continuidade muito forte, embora com estilos, abordagens e ênfases diferentes. Há plena sintonia."
No discurso de abertura da Celam, Bento se dirigiu aos bispos que, no passado, tinham certa reserva com ele. No pontificado de João Paulo 2° (1920-2005), o então cardeal Joseph Aloisius Ratzinger comandou a Congregação para a Doutrina da Fé. Não foram poucas as rusgas dele, portanto, com bispos e padres latino-americanos, sobretudo por conta de divergências quanto à Teologia da Libertação, corrente cristã que prega a opção pelos pobres.
Bento conquistou a audiência pelo discurso conciliador. "Ele disse, por exemplo, que nem o capitalismo nem o marxismo encontraram caminho para a criação de estruturas justas, que acabassem com as desigualdades e os problemas sociais na América Latina", lembra Domingues.
"Ressaltou que não era por meio dessas ideologias que a Igreja iria promover a vida, nem pelo marxismo que acaba com as liberdades individuais, nem com o capitalismo desenfreado que acaba com a dignidade pessoal. Claramente disse que eram dois sistemas problemáticos."
"O papa Bento 16 chegara ao país amarrado pela imagem deixada como cardeal Ratzinger, sempre descrito como pessoa sisuda e demasiadamente ocupada com a Doutrina da Fé. Nesse sentido, era inevitável contrastá-lo com seu antecessor, o papa João Paulo 2°, cuja empatia e afeto com as massas era notável", comenta o abade Matthias Tolentino Braga, anfitrião oficial do papa no Mosteiro de São Bento.
Pelos protocolos pré-estabelecidos, ele deveria acenar para o público no Largo de São Bento, da sacada, apenas três vezes. Mas, comovido e entusiasmado pelos gritos da multidão, não resistiu e apareceu aos fiéis pelo menos dez vezes.
"Bento 16 surpreendeu a todos ao esforçar-se para interagir com as multidões que acorriam ao seu encontro, ainda que faltasse amplitude aos seus braços e que fossem seu olhar e sorriso tímidos e silenciosos. Certamente contagiado pela alegria acolhedora e natural do brasileiro se sentiu amado e assim, amou a todos", completa o abade.
"A segurança do Vaticano colocou muitos impedimentos e restrições para que o papa pudesse aparecer nela [na sacada]. Havia uma impressão de que ele realmente só fosse ali uma vez, sem fazer uso da palavra — e portanto, não foi organizado um sistema de som, por exemplo", recorda o jornalista Rafael Alberto Alves dos Santos, que na época trabalhava na Mitra Arquidiocesana de São Paulo e integrou a comissão organizadora da vinda de Bento.
"Acontece que muito mais fiéis do que imaginávamos praticamente acamparam em frente ao mosteiro e permaneceram ali os dias todos que o papa esteve em São Paulo. Era uma turma bastante barulhenta, que chamava insistentemente pelo papa e, já logo no primeiro dia, ele pediu para ir à sacada. E o fez depois um monte de vezes. Por vontade dele. Porque ele ouvia as pessoas chamando por ele e pedia para ir até lá."
"Após a visita, os comentários mais frequentes que ouvi das pessoas diziam respeito à quebra do paradigma de que Bento 16 não era um papa carismático", acrescenta padre Roberto.
São Paulo só havia recebido um papa uma vez, na primeira das três viagens apostólicas feitas por João Paulo 2° ao Brasil, em 1980. Na ocasião, o Mosteiro de São Bento, instituição quatrocentona do centro da cidade, acabou preterido em favor do Mosteiro de São Geraldo, no Morumbi, para hospedar o sumo pontífice.
Quando Bento 16 confirmou a visita, era a vez dos beneditinos do centro — inclusive para honrar o homônimo. Assim, em 12 de dezembro de 2006, a abadia recebeu uma comitiva do Vaticano para averiguar as condições e fazer as solicitações para atender ao ilustre hóspede.
Foi pedido que toda a comitiva papal contasse com quartos individuais, que os aposentos de Bento tivessem três espaços — dormitório com banheiro, sala para visitas e um escritório —, e que o cardápio não incluísse peixes nem frutos do mar. Em cinco meses de reforma, os espaços foram deixados tinindo para o papa e seus assessores.
"Os preparativos começaram logo em seguida ao anúncio da visita. Havia dois âmbitos de preocupação: a do líder religioso e suas implicações, pastorais e litúrgicas, e a do chefe de Estado e suas implicações, protocolos governamentais, segurança", explica Santos. "Desde sempre houve uma preocupação grande por parte da Arquidiocese para que a visita fosse o menos burocrática possível, ou seja, que os fiéis pudessem acompanhar de perto o papa."
"À medida em que o Vaticano foi confirmando agendas do papa em São Paulo, íamos avançando nos preparativos específicos — o encontro com jovens no Pacaembu, com os bispos, na Catedral da Sé, e finalmente, a canonização de Frei Galvão, no campo de Marte, além das atividades mais internas, como encontro com autoridades e com lideranças de outras religiões."
O quarto principal foi ambientado com quadros do monge e artista plástico Carlos Eduardo Uchôa e uma pequena biblioteca selecionada, com obras completas de Padre Antônio Vieira (1608-1697) em alemão, clássicos de Machado de Assis (1839-1908), além de títulos sobre arte brasileira, São Bento e mosteiros instalados em território nacional.
Outros 12 quartos foram preparados para a comitiva — hospedaram-se no Mosteiro seu médico e enfermeiro particulares, o cerimoniário geral, dois secretários, dois assistentes e cinco seguranças.
"Assisti às missas privadas que o papa celebrou na capela abacial do mosteiro. A simplicidade e piedade de Bento 16 tocou-me muito", comenta o padre Roberto.
"Em uma dessas ocasiões, tentei aproximar-me para beijar-lhes as mãos e receber uma bênção e fui impedido por um membro da guarda suíça que cuidava da segurança do papa. Devo dizer que aquele oficial fez o seu trabalho com muito cuidado, sem que eu ficasse constrangido. Bento 16 percebeu e então, veio ao meu encontro e, sorridente, abençoou-me. Fiquei extremamente comovido e agradecido por esse gesto."
No Mosteiro de São Bento, o papa teve seis refeições, entre cafés da manhã, almoços e jantares. O cardápio foi baseado na gastronomia italiana, mas com toque de brasilidade. Foi um serviço tradicional, com massa de entrada, prato principal e sobremesa. Um exemplo foi o nhoque, preparado com mandioquinha em vez de batata. A organização sempre incluiu doces tipicamente brasileiros ao fim das refeições. Ele recusou vinho todas as vezes, preferindo suco de laranja. Apenas no almoço do segundo dia, quando à mesa estava também um grupo de cardeais, Bento abriu uma exceção: brindou com espumante.
Para o padre Michelino Roberto, o legado da visita papal foram as mensagens deixadas em seus discursos públicos. "Bento 16 falou um pouco de tudo: das desigualdades sociais, do zelo que a Igreja deve ter para com os pobres e menos favorecidos, da defesa da vida, da família, da verdadeira natureza da missão da Igreja e da necessidade de que seja missionária", analisa.
"Nesse sentido, no encontro que teve com o então presidente Lula, defendeu a sacralidade da vida desde o início da concepção, reafirmando a posição da Igreja em relação ao aborto. Ao mesmo tempo, defendeu a laicidade do Estado que nada tem a ver com Estado ateu, mas sim, com proteção à liberdade religiosa. No encontro com os jovens, no estádio do Pacaembu, exortou-os a buscarem a santidade de vida e a não desperdiçarem os anos da juventude, mas dedicá-los a grandes ideais. Pessoalmente, dos eventos que tive a oportunidade de presenciar, marcou-me muito o encontro com os bispos, na Catedral da Sé. Recordo-me que falou de diversos temas importantes da vida da Igreja em um tom muito firme, ao mesmo tempo, sereno."
Bento realizou uma série de pronunciamentos. O primeiro, ainda na chegada, no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, no dia 9 de maio. No mesmo dia, saudou e abençoou os fiéis da sacada do Mosteiro de São Bento.
No dia seguinte, participou de encontro com jovens no Pacaembu. "Tenho a memória de acompanhar a comitiva de carros que seguiam atrás do papamóvel o percurso que ele fez entre o mosteiro e o estádio e era impressionante o tanto de gente que tinha espalhada em todas as ruas pelas quais estava prevista a passagem", diz o jornalista Santos.
"Lembro de estar na van alguns carros atrás do papamóvel, com os vidros fechados por recomendação da segurança e era impressionante ver as pessoas chorando e acenando, mesmo depois que o papamóvel já tinha passado e estava bem à frente."
O ponto alto para os fiéis, contudo, foi o dia 11, quando ele celebrou a missa de canonização do franciscano Antônio de Sant'Ana Galvão, o Frei Galvão (1739-1822), que se tornaria então primeiro santo nascido no Brasil. Na data, ele também se encontrou com bispos na Catedral da Sé e fez novo discurso.
No sábado, dia 12, ele começou o périplo pelo Vale do Paraíba. Primeiro, visitou as irmãs clarrisas da Fazenda Esperança, em Guaratinguetá, um centro de tratamento para dependentes químicos, e fez novo discurso. No mesmo dia, encontrou-se com religiosos na Basílica do Santuário de Aparecida — e fez outro pronunciamento.
Domingo, dia 13, foi seu último dia no Brasil. Coube a ele a homilia da missa de abertura da Celam e o discurso inaugural dos trabalhos. À noitinha, realizou um último pronunciamento na despedida, já no aeroporto em Guarulhos.
O vaticanista Domingues ressalta o papel político da visita ao Brasil, considerando que Bento era visto como um papa eurocêntrico. "Ele demonstrou que a igreja da América Latina é importante. Ficou a imagem do papa que sai da Europa", avalia. "E ainda quebrou o estereótipo de papa distante e conservador; mostrou-se aberto, próximo às pessoas."
"Acho que a gente mudou um pouco o modo como o Brasil olhava para o papa Bento 16", afirma Santos. "Tínhamos a impressão de que o Papa era muito rígido, pouco próximo das pessoas. E ele chegou sorrindo, abraçou os fiéis, pediu para abaixar o vidro do papamóvel em frente à catedral da Sé, para o pavor dos seguranças, quis aparecer várias vezes na sacada. Olhando agora, parecem atitudes mais do papa Francisco do que de Bento. E acho que essa mudança de olhar reanimou muitos fiéis."
"E a conferência [Celam] se provou essencial. Marcou a vida da igreja muito mais do que a gente pensava, tanto que levou à eleição de Francisco, um papa 'filho do Documento de Aparecida'", acrescenta Domingues.
Antes de se tornar papa, o cardeal Ratzinger esteve uma outra vez no Brasil. Em julho de 1990, ele participou de um encontro com bispos brasileiros no Rio de Janeiro. Hospedou-se na residência do então cardeal arcebispo do Rio, Eugênio de Araújo Sales (1920-2012). Foram 10 dias de viagem.
Ratzinger visitou os principais pontos turísticos da cidade, deu várias entrevistas criticando as correntes cristãs de cunho marxista e encontrou-se com o rabino Henry Sobel (1944-2019), então presidente da Congregação Israelita Paulista.
Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-53776807
Fonte: correiobraziliense
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