23 de Novembro de 2024

Impasse no Congresso expõe racha no Partido Republicano e fragilidade de Trump


crédito: Olivier Douliery/AFP

O impasse histórico durou mais de 96 horas e somente terminou depois da 15ª rodada de votação. Algo que não se via na Câmara dos Representantes desde 1859. A eleição de Kevin McCarthy para o cargo de presidente da Casa, em sucessão à democrata Nancy Pelosi, expôs fissuras dentro do Partido Republicano, inclusive na ala mais à direita e alinhavada à ideologia de Donald Trump. Também colocou em xeque a influência política do próprio magnata, que ensaia um retorno à Casa Branca. "Temos que colocar os Estados Unidos de volta aos trilhos", declarou McCarthy, antes de fazer o juramento como o 55º líder da Câmara, na 118ª legislatura. A vitória veio depois de o Caucus da Liberdade, grupo de republicanos ultraconservadores leais a Trump, ceder e possibilitar a nomeação do californiano de 57 anos com a minoria simples de 216 votos. 

"Agora, o trabalho duro começa. (...) Como presidente da Câmara, minha responsabilidade final não é com o meu partido, minha conferência ou mesmo com o Congresso. Minha responsabilidade, nossa responsabilidade, é com o nosso país", assegurou o agora terceiro político mais poderoso dos Estados Unidos, segundo a linha de sucessão — depois do presidente, Joe Biden, e da vice, Kamala Harris. McCarthy atribuiu a Trump a própria vitória e afirmou que "ninguém deveria duvidar de sua influência". "Ele estava comigo desde o começo", garantiu. O problema, segundo analistas, é que parte dos republicanos demonstraram resistência em avalizar McCarthy e, por consequência, Trump. 

Historiador político da Universidade Brown (em Rhode Island), James Naylor Green explicou ao Correio que a disputa pelo poder na Câmara reflete o começo do processo de desarticulação da importância de Trump na política norte-americana. "McCarthy fez tudo para agradar Trump. Ele denunciou a invasão ao Capitólio, em 2021, mas percebeu que seria um erro político e acabou endossado pelo magnata para ser o novo presidente da Câmara", afirmou. "Muitos congressistas da ultradireita também entenderam que McCarthy ganharia a disputa e negociaram comitês e presidências de comissões. No entanto, a ultradireita organizada, chamada de Caucus da Liberdade, pressionaram McCarthy em troca de várias concessões de procedimentos que afetarão a maneira como a Câmara funcionará no próximo mandato."

Segundo Green, as reivindicações atendidas tendem a enfraquecer o poder do novo presidente da Câmara — entre elas a possibilidade de se pedir voto de confiança do líder. "Nesse sentido, McCarthy ficará sequestrado por esse setor republicano. A margem entre republicanos e democratas é de cinco votos. A polarização é tamanha que ninguém abandonará o partido de Trump para apoiar os democratas", avaliou.

O historiador acredita que alas mais preocupadas com o prestígio do Caucus da Liberdade podem não apoiar propostas para o regimento interno da Câmara. Para Green, a liberação do teto de gastos e de empréstimos para quitação de dívidas internas poderá causar uma crise econômica enorme, com reflexos na Bolsa de Valores e no aumento de juros. "Isso será creditado na conta dos republicanos", advertiu.

Por sua vez, Gerald C. Wright — professor de ciência política da Universidade de Indiana — alertou que o Partido Republicano enfrenta "grave desordem". "Estamos bastante preocupados com o fato de McCarthy ter dado tanto de sua autoridade à extrema direita que a formulação de políticas responsáveis será impossível", disse. Ele vê como alarmante a inadimplência nos pagamentos da dívida interna, que o Caucus da Liberdade considera ser uma grande força para obter cortes de programas. "Uma pequena minoria manterá a nação inteira refém em sua oposição a programas populares, como a Segurança Social e o Medicare (seguros de saúde)", acrescentou. 

McCarthy precisará comandar um partido profundamente dividido. O professor de Indiana lembrou que, na década de 1970, os democratas fizeram uma série de reformas nas normas da Câmara, as quais abriram caminho para uma liderança mais forte. "Pelosi era boa em usar esses poderes. McCarthy não terá qualquer influência sobre o próprio partido, e prometeu à extrema direita a habilidade de lançar investigações que tornarão a legenda fraca. Até agora, os presidentes da Câmara tinham controle sobre os projetos de lei votados, sobre as regras do processo de emenda e sobre quem pode discursar. Kevin McCarthy desistiu de tudo isso. O resultado: caos para a Câmara. Não será bom para os EUA", advertiu Wright. 

Crédito: Arquivo Pessoal. James N. Green, professor de História da América Latina e Diretor da Brazil Initiative de Brown University. Autor de Apesar de vocês: a oposição à ditadura militar nos Estados Unidos, 1964-85.
Crédito: Arquivo Pessoal. James N. Green, professor de História da América Latina e Diretor da Brazil Initiative de Brown University. Autor de Apesar de vocês: a oposição à ditadura militar nos Estados Unidos, 1964-85. (foto: ArquivoPessoal)

"Como não existe a possibilidade de aprovar propostas mais radicais no Senado, controlado pelos democratas, os republicanos tentarão o tempo todo enfraquecer o governo de Joe Biden com investigações, inclusive sobre negócios de Hunter Biden, filho do presidente. Isso implica não concentrar-se em medidas que possam melhorar a situação do povo norte-americano. Por esse motivo, acho que o Partido Republicano se enfraquecerá."

Gerald C. Wright, professor de ciência política da Universidade de Indiana
Gerald C. Wright, professor de ciência política da Universidade de Indiana (foto: Arquivo pessoal)

"Embora seja uma grande figura no Partido Republicano, Donald Trump não é mais tão influente. Cada vez mais republicanos moderados parecem querer se livrar dele, assim como o restante do país, à exceção de seus apoiadores radicais. Trump perdeu no voto popular por três vezes, e isso fez sua popularidade declinar. Esse cenário torna provável a reeleição de Biden, a não ser que o Partido Republicano escolha outro candidato."

Enquanto comandava o grupo republicano de apoiadores de Donald Trump na Câmara dos Representantes, ao longo de quase nove anos, Kevin McCarthy era considerado tímido, pouco favorável ao ex-presidente e sem convicções próprias. Oriundo de uma posição republicana clássica, focada na defesa do livre mercado e da meritocracia, ele apoiou a guinada à direita do partido em questões como imigração, criminalidade e contra os direitos dos transexuais.

Nascido em 1965 em Bakersfield, reduto republicano no coração da Califórnia, McCarthy é filho de um bombeiro e de uma dona de casa, ambos democratas. Em seu site, ele destaca as origens populares e promete "defender o sonho americano para aqueles que trabalham duro". Depois de abrir uma lanchonete, aos 21 anos, McCarthy retomou os estudos universitários para se tornar primeiro um assistente parlamentar, depois um político local e, finalmente, ser eleito para a Câmara dos Representantes em 2006.

Apoiador de Trump nas primárias de 2015, ele inicialmente apoiou a campanha do magnata contra os resultados das eleições de 2020. Mais tarde, abalado pela repercussão do ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, rapidamente declarou que Trump "tinha responsabilidade" pela violência. Uma semana depois, foi fotografado aos sorrisos com Trump nos salões dourados de Mar-a-Lago, a residência do ex-presidente na Flórida. "McCarthy se vende para todo mundo há décadas", disparou um dos líderes dos conservadores rebeldes na Câmara, Matt Gaetz. Na ambição pelo poder, o pragmatismo parece ser sua guia mestra.

Fonte: correiobraziliense

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