23 de Novembro de 2024

"A pena nunca pode ser ato de vingança", diz juiz espanhol


crédito: Arquivo pessoal

Aos 67 anos, o juiz espanhol Baltasar Garzón tornou-se símbolo de combate à ditadura. Em 15 de outubro de 1998, ele decretou a prisão do general chileno Augusto Pinochet, que estava internado em uma clínica particular de Londres. O magistrado apenas não o julgou porque o repressor morreu, em 2006, enquanto cumpria prisão domiciliar. Doutor Honoris Causa em 30 universidades de todo o mundo e membro de diferentes organizações humanitárias, centros de direitos humanos e de mediação de conflitos, dentro e fora da Espanha, Garzón  condenou a 640 anos de prisão o argentino Adolfo Francisco Scilingo por crimes contra a humanidade. O ex-capitão da Marinha da Argentina participou dos chamados "voos da morte", em que presos políticos foram atirados, ainda vivos, ao mar, dentro da Operação Condor, uma aliança repressiva das ditaduras do Cone Sul, para perseguir e torturar opositores aos regimes. Também foi Garzón quem ordenou a extradição do torturador argentino Ricardo Miguel Cavallo, do México para a Espanha. Em entrevista exclusiva ao Correio, Garzón criticou o fato de o Brasil ainda não ter punido os crimes do regime militar (1964-1985).

"A impunidade segue reinando", lamentou. Ele defende que a punição, mesmo a torturadores ou ditadores, não deve ser tratada como vingança. "A pena deve ser sempre executada com dignidade, com respeito ao condenado", alertou. O juiz também avaliou a jurisdição universal como um mecanismo importante para julgar e punir genocídio, crimes de lesa humanidade e crimes de guerra. Garzón também atuou como assessor da Promotoria do Tribunal Penal Internacional, entre 2010 e 2011, foi membro do Comitê de Prevenção da Tortura do Conselho Europeu, além de presidente do Centro Internacional para a Promoção dos Direitos Humanos da Unesco na Argentina. É autor de 15 livros, entre eles: A encruzilhada; Não à impunidade — Jurisdição universal, a última esperança das vítimas; e Os disfarces do fascismo. 

Depende do ponto de vista, de como se olha a situação. Se observarmos o que foi feito na Argentina, no Chile, no Brasil e no Peru, ou recentemente na Colômbia, e comparamos, por exemplo, com o pouco feito na Espanha ou o quase nada em países que enfrentaram fenômenos similares, devemos concluir que na América do Sul fez-se bastante. Houve comissões da verdade e mecanismos de reparação. Recentemente, se elaboraram planos nacionais de busca de desaparecidos, etc. Também temos visto julgamentos, a começar pelos tribunais nas juntas militares da Argentina, até os mais recentes processos contra os executores diretos e pessoas com cargos de menor hierarquia. No Chile, não pude julgar Pinochet porque ele faleceu antes. No momento de sua morte, ele estava sob custódia do Estado e em prisão domiciliar. Anedoticamente, ele morreu em 10 de dezembro de 2006, o Dia dos Direitos Humanos. Um paradoxo bastante curioso... Apesar de ele não ter sido julgado, sua polícia secreta foi submetida aos tribunais e condenada em numerosos processos que seguem seu curso até o dia de hoje, ainda que as penas possam ser desproporcionalmente baixas, pois aplica-se uma norma que permite reduzir, consideravelmente, a sanção devido ao tempo transcorrido.

Gera uma certa sensação de impunidade, a respeito de crimes imprescritíveis. No Peru, Alberto Fujimori foi julgado e condenado pelas violações dos direitos humanos cometidas em casos como "Barrios Altos" e "La Cantuta", ainda que atualmente se encontre em liberdade, depois de ter sido réu. Novamente, isso causa uma sensação de impunidade. No Brasil, houve um indulto a presos políticos e reparação às vítimas, a criação de uma Comissão de Mortos e Desparecidos, e uma Comissão da Verdade. No entanto, até hoje não houve justiça penal. A impunidade segue reinando, apesar de vários pronunciamentos da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Então, sei que fizeram avanços. Mas, em alguns casos, eles são insuficientes. Existe uma verdade geral sobre os sucedidos, com indicação das vítimas. Existem reparações, adotou-se medidas de não repetição, mas a Justiça não tem sido tão diligente como deveria.

As penas tem sido baixas, ou, inclusive, reina a impunidade, como, insisto, no caso do Brasil. Minha experiência me indica que, para as vítimas, o fato de relatarem, ante um tribunal, o sofrimento de que padeceram supõe ser um importante passo rumo à reparação. É muito importante que o próprio país, onde se produziram os fatos, empreenda a tarefa de julgá-los. O caso mais evidente é o da Argentina, que levou os carrascos aos tribunais. Mas também que haja juridisção universal, que permita processar aos causadores desses crimes. Dessa maneira, torna-se possível que outros países realizem os julgamentos, caso as nações onde tiveram lugar esses delitos não se encarregam de julgá-los. Muitas vítimas tiveram que pedir proteção em outros países para conseguir justiça. O adequando, insisto, é que as instituições judiciais do próprio país trasmitam a justiça. A Argentina é um caso especialmente interessante, pois realizou uma autêntica catarse, ao levar aos tribunais e condenar autores de desaparecimentos e execuções. Em outros países, ainda há muito a ser feito. É curioso que a Argentina esteja processando denúncias de crimes do franquismo, de atos criminosos produzidos durante a guerra e a ditadura franquista, ante a negativa dos tribunais espanhóis em julgar os temas pendentes. Portanto, isso constitui uma mancha para a democracia espanhola. Na Espanha, a impunidade, todavia, subsiste.

Como eu afirmei, o processo no Brasil está incompleto. Além disso, tem sido muito lento. A ditadura acabou formalmente em 1985. A nova Constituição foi redigida em 1988. Mas foi preciso esperar até 2012 para que se constituisse a Comissão da Verdade do Brasil, que entregou o relatório à então presidente Dilma Rousseff em 7 de dezembro de 2014. Antes disso, houve algumas medidas de reparação, mas nada em termos da verdade até 2014. Isso quer dizer 26 anos de atraso. No âmbito da justiça não se avançou até o dia de hoje. Isso tem uma explicação, sob meu ponto de vista: no Brasil, a ditadura não foi derrotada, como tampouco o foi a da Espanha. Ela mesma negociou com a oposição uma transição sob sua medida. A Constituição de 1988 formalmente pôs fim a um breve período de transição de três anos. No entanto, omitiram-se reformas necessárias, que, na prática, deram uma continuidade, em certas matérias, ao regime anterior. Não houve modificações nas Forças Armadas. Sua herança institucional prolongou-se em democracia. Isso possibilitou um temor latente de um novo golpe de Estado. O mesmo se passou com o Supremo Tribunal Federal (STF), que não se renovou, mantendo todos os juízes designados durante a ditadura. De certa forma, isso garantiu a impunidade, ratificando, uma e outra vez, a vigência e a aplicação da Lei de Anistia. O STF chegou a afirmar que não teria autoridade para julgar a compatibilidade das leis pré-constitucionais com a Constituição de 1988. Somente em 1999, quando se promulgou a Lei nº 9.882, que facultou expressamente ao Supremo Tribunal a revisão da legislação pré-constitucional, se pôde corrigir esta situação.

Fonte: correiobraziliense

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