No dia 20 de março de 2003, uma coalizão liderada pelos Estados Unidos invadiu o Iraque. Com o apoio de tropas britânicas, italianas, espanholas, australianas e polonesas, os americanos conseguiram em pouco tempo derrubar o regime de Saddam Hussein (1937-2006) e instituir um governo provisório.
Exatos 20 anos depois, o país ainda exibe as cicatrizes do conflito e está longe da estabilidade econômica e democrática que se prometia na época da invasão.
Mesmo com a retirada das tropas ocidentais, a violência não desapareceu. Segundo a organização de monitoramento Action on Armed Violence (Ação para a Violência Armada, em tradução livre para o português), entre 2012 e 2022, o Iraque foi o segundo país que mais registrou vítimas civis deixadas por armas explosivas no mundo, atrás apenas da Síria.
Ao todo, a entidade contabilizou 52.106 civis mortos e feridos em 4.627 episódios de uso de armas explosivas no período.
Apesar disso, muitos iraquianos e iraquianas tentam deixar o passado para trás e seguir com suas vidas.
Esse mesmo sentimento está presente no dia a dia dos milhares de estrangeiros que vivem no país atualmente — entre eles, cerca de 130 brasileiros, segundo o Ministério das Relações Exteriores.
De forma geral, os nacionais que vivem no país são pessoas que se mudaram para trabalhar, como jogadores de futebol e outros atletas. Há também brasileiros ou brasileiras que têm algum outro tipo de ligação familiar com o país ou que trabalham com ajuda humanitária ou organizações religiosas.
A paulista Raquel Chaves, 40, é casada com um curdo e mora desde 2018 na cidade de Sulaymaniyah, que fica na região autônoma do Curdistão.
O casal se conheceu pelas redes sociais quando ela ainda estava no Brasil e, depois de muitos meses conversando, iniciaram um relacionamento. Hoje, os dois têm um filho de 3 anos juntos.
Natural de São Bernardo do Campo (SP), Raquel afirma não ser afetada pelos resquícios do conflito.
Ela diz ter ficado surpresa ao desembarcar no Curdistão e descobrir que muitas de suas concepções sobre a região estavam equivocadas.
"A cultura aqui é realmente muito diferente da brasileira. Mas algumas coisas me surpreenderam, por exemplo, o fato de que nem todas as mulheres são obrigadas a usar hijab ou burca", diz ela, em alusão aos véus islâmicos.
"Eu também me sinto segura para sair na rua, pegar táxi e fazer tudo sozinha. Não achei que seria assim."
A brasileira diz, inclusive, que muitas vezes se sente mais protegida em Sulaymaniyah do que no Brasil.
"Quando eu falo que moro no Iraque todo mundo pensa que sou louca, mas eu gosto daqui justamente pela segurança. Andamos à noite ou ficamos do lado de fora de casa com tranquilidade, coisa que infelizmente não fazia no Brasil", diz.
A carioca Tatiane Araújo, 25, também vive no Curdistão. Ela se mudou para Sulaymaniyah em outubro do ano passado, para acompanhar o marido que é jogador de futebol do Newroz Sports Club.
Ela conta que inicialmente estava um pouco receosa de se mudar para um país com histórico de tantos conflitos. Mas desde que chegou, diz que se adaptou muito bem.
"Quando meu marido recebeu a proposta, ficamos com um pouco de medo, pois lá no Brasil só ouvíamos relatos de guerra sobre o Iraque. Mas decidimos vir mesmo assim, porque era importante para o nosso futuro", afirma.
"Mas desde que cheguei nunca presenciei nenhuma situação de violência. Os iraquianos são muito amorosos e muito receptivos, aliás. Eles amam os brasileiros."
Tatiane trabalha como influencer digital e usa suas redes sociais para compartilhar o dia a dia na vida no exterior.
"Sempre que posto sobre a cidade no meu Instagram as pessoas ficam surpresas e dizem que estou mudando sua visão sobre o Iraque."
Tatiane e Raquel moram em regiões mais seguras do Curdistão, próximas a comunidades de estrangeiros e de classes mais altas.
Mas assim como no território iraquiano, a calma não está necessariamente presente no cotidiano de toda a população do Curdistão ou dos curdos que vivem em outras regiões do Oriente Médio.
Essa etnia não tem um Estado nacional reconhecido internacionalmente e, por isso, trava uma batalha contra os governos locais para estabelecer sua independência. O principal foco de violência nos últimos anos foi a Turquia, mas a região norte do Iraque também é alvo constante de violência política.
Segundo dados de organizações de monitoramento, mais de 3.500 eventos de violência política envolvendo forças militares turcas foram registrados no território iraquiano em 2022.
E apesar de não se considerarem parte do Iraque, os curdos também tiveram suas vidas afetadas pela guerra que começou há 20 anos.
Mas diferente dos iraquianos, que lamentam muito as perdas durante a invasão, os curdos veem esse período da história como de libertação e alguns têm inclusive grande estima pelos americanos.
Esse sentimento tem relação com a brutalidade com que o regime de Saddam Hussein tratou os curdos. Foram anos de abusos de direitos humanos que culminaram na morte de pelo menos 5 mil pessoas, no massacre de Halabja, que é considerado o pior ataque com armas químicas contra civis da história.
Assim como o marido de Tatiane, Jailson Araújo, 32, de João Pessoa, Paraíba, também é jogador de futebol no Iraque. Ele atua no Al-Talaba, um time da capital Bagdá, e afirma que inicialmente sua família estava um pouco receosa com a mudança de país.
Mas ele logo se adaptou, fez novos amigos e estabeleceu uma rotina. "Meus amigos e familiares ficaram em choque quando contei que viria para cá, mas aos poucos fui mostrando meu dia a dia e ficaram mais tranquilos", diz. "Mas ainda recebo mensagens diariamente perguntando se estou bem."
Jailson mora na capital iraquiana desde setembro de 2022 e afirma que tem tentado usar seu tempo livre para conhecer melhor a história e cultura do Iraque.
"Nos meus dias de folga, gosto de sair para explorar, aprender e compartilhar com as pessoas no Brasil a verdadeira realidade do país para que elas venham visitar", diz. "Os iraquianos sentem muita falta de receber turistas, eles acham que ficaram esquecidos no mundo."
"O país tem muita coisa bonita para ser explorada."
Uma das coisas que ajudaram Jaílson a se sentir bem longe de casa foi a receptividade do povo iraquiano, segundo ele.
"Eles adoram estrangeiros. Ter pessoas de outros países vivendo aqui é um sinal para os iraquianos de que tudo ficou para trás, que a guerra passou e as pessoas podem se sentir à vontade no país."
Mas apesar do desejo de deixar a guerra para trás, esse momento da história do Iraque que começou 20 anos atrás ainda repercute no país.
O conflito durou oito anos, entre a invasão em 2003 e a saída das últimas tropas de combate dos Estados Unidos, em 2011.
A guerra facilitou o fortalecimento ou surgimento de grupos armados considerados como terroristas por países ocidentais, como o Estado Islâmico, e afundou a nação em um cenário de instabilidade política e econômica, segundo especialistas.
Há áreas mais e menos atingidas pelos conflitos atualmente. Além do Curdistão, províncias do noroeste e centro do país continuam sob risco de ataques do Estado Islâmico e a região sul está exposta a confrontos tribais, atividades criminosas e violência política.
A frustração com a corrupção, os serviços públicos precários e a falta de empregos levaram ainda a protestos generalizados nos últimos anos, principalmente em Bagdá, que muitas vezes acabaram em violência.
A guerra que começou em 2003 também deixou uma mácula na política externa americana. Ainda restam muitas dúvidas sobre os motivos reais que levaram a coalizão ocidental a invadir o território iraquiano.
Estados Unidos e Reino Unido diziam que seu principal objetivo era tomar e destruir armas de destruição em massa do regime de Saddam Hussein. Mas essas armas nunca foram encontradas. Há inclusive quem diga que foi uma guerra sem motivo.
Mas o conflito deixou cerca de 100 mil iraquianos mortos, além de mais de 4,8 mil militares da coalizão ocidental e outras vítimas de outros países, como o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que trabalhava na ONU e foi vítima de um atentado à sede da organização em Bagdá.
Fonte: correiobraziliense
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