19 de Setembro de 2024

'Mesmo com bombardeios, não me arrependo': os ucranianos que voltaram ao país em meio à guerra


crédito: AGA UCRÂNIA

"Muitos vão pensar que estou louca."

As palavras são de Natalia Moroz, uma ucraniana que, depois de passar três meses em 2022 como refugiada na Espanha, decidiu voltar ao seu país.

A decisão foi tomada apesar de a invasão russa estar longe de terminar e de sua vida, como a de milhões de seus compatriotas, estar em risco devido aos constantes bombardeios das tropas do Kremlin.

O caso desta mulher de 51 anos não é único. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), cerca de 5,5 milhões de ucranianos voltaram para casa desde o verão passado, a maioria deles deslocados internamente, mas 1,1 milhão no exterior.

Por sua vez, o Centro de Pesquisa e Análise de Migrações (CReAM) estima que cerca de 30.000 ucranianos estão retornando diariamente dos países europeus para os quais fugiram.

A BBC Mundo conversou por chamada de vídeo com Moroz, psicóloga e mãe de uma jovem de 21 anos, para saber os motivos que a levaram a voltar para Kiev, cidade onde mora.

Abaixo apresentamos seu relato em primeira pessoa, conforme ele nos contou.

Sei que muitos vão pensar que estou louca por ter deixado a segurança e até o conforto que tinha na Espanha, mas a Ucrânia é minha casa, é meu lugar e meu povo está aqui. E se houver chances de viver aqui, por menores que sejam e independente dos perigos envolvidos, prefiro estar aqui.

Embora as ameaças de bombas sejam constantes, não me arrependo de ter voltado, porque em primeiro lugar nunca quis sair, mas em abril [de 2022] eu e meu marido decidimos que era a melhor opção.

Porém, essa foi uma decisão forçada, não foi como decidir sair de férias.

Toda vez que eu saía para passear com meu cachorro era uma tortura, pois ouvia as explosões de um lado e do outro. Já não ouvia mais os pássaros, carros ou aviões, só aquele bum! À noite havia menos explosões, mas eram mais intensas e fortes, o que me impedia de dormir.

Lembro que um dia meu cachorro espirrou e eu pulei como se uma bomba tivesse caído ao meu lado. Ali compreendi a magnitude do estresse que estava vivenciando. E percebi que estava desmoronando.

Mas o fato de a Ucrânia ter resistido à invasão russa e não ter caído em questão de dias, como todos acreditavam que aconteceria em fevereiro de 2022, me deu confiança para voltar.

Às 5h da manhã de 24 de fevereiro, minha irmã, que mora a cerca de 50 quilômetros de Kiev, me ligou para dizer que a guerra havia começado. Eu não podia acreditar.

Ela me disse que estava ouvindo explosões e vendo flashes de bombas caindo no aeroporto de Boryspill [principal terminal aéreo da capital ucraniana]. Imediatamente acordei meu marido e minha filha Maria, pedi que se vestissem e saí para o corredor e comecei a bater na porta de meus vizinhos para avisá-los do que estava acontecendo.

Eu estava em pânico, não sabia o que fazer, mas sabia que queria fugir.

Começamos a fazer as malas, sem saber para onde iríamos. E enquanto arrumávamos tudo liguei a TV para ver o que estava passando no noticiário. Os jornais já noticiavam que o trânsito em Kiev estava parado, devido ao número de pessoas que queriam deixar a cidade.

Quase imediatamente os alarmes antiaéreos começaram a soar e isso aumentou meu medo. Foi a primeira vez que os ouvi e não sabia o que significavam. Os russos chegaram? Os aviões vieram atacar a cidade?

Lembro que nos sentávamos no corredor do prédio, pois não sabíamos onde ficava o abrigo antiaéreo.

Passamos aquele primeiro dia ao telefone com parentes que tínhamos em Kiev e nos arredores, tentando decidir o que fazer, para onde ir, mas era impossível.

No final do dia 24, alguns amigos que moram na periferia, em uma área arborizada, nos convidaram para ir até a casa deles e ficar um tempo lá. Meus amigos nos disseram que era melhor sair de Kiev, porque o objetivo dos russos seria tomar a cidade para derrubar o governo [de Volodymyr Zelensky].

Passei as primeiras semanas da invasão lá, até partir para a Espanha.

Como fiquei isolada do mundo exterior por vários dias, chegar na estação de trem e ver tanta gente, principalmente mulheres e crianças nervosas e chorando, me deixou muito ansiosa.

Entrar no trem que me levou para a Polônia foi assustador, porque naquela época a imprensa noticiava que os russos estavam atacando os trens e eu tinha medo que um foguete nos atingisse ou algo assim.

Quando chegámos à Polónia passamos oito horas dentro do trem, porque os agentes de fronteira polacos não nos deixaram sair todos ao mesmo tempo. Houve um momento em que não tínhamos nem mais água potável e as pessoas ficaram desesperadas e tristes.

Quando consegui cruzar a fronteira, peguei outro trem para Varsóvia [capital da Polônia], onde fiquei dois dias com um sobrinho. Ele hospedou cinco membros de nossa família em seu pequeno apartamento. E de lá peguei um avião para a Espanha.

Na cidade de A Coruña (norte da Espanha) encontrei minha filha, que havia chegado semanas antes com alguns amigos que deixaram a Ucrânia alguns dias após o início da invasão.

Quando cheguei eles já haviam conseguido um apartamento, graças ao apoio da AGA Ucraina [organização não-governamental criada após a invasão russa e que tem prestado atendimento aos refugiados ucranianos que chegaram à cidade, localizada na região norte de Galiza].

Quando cheguei na Espanha, lembro que sentei em uma lanchonete para tomar um café e comecei a ver os casais e famílias que estavam sentados juntos naquele lugar e de repente me senti cheia raiva. Por que? Porque eu tinha aquela mesma rotina tranquila e de repente ela foi roubada de mim.

Não me incomodava que os espanhóis levassem suas vidas como se nada estivesse acontecendo no mundo, o que me incomodava é que eu havia perdido aquela normalidade, aquela tranquilidade que para alguns pode até ser chata.

Desde que a invasão começou, minhas manhãs sempre começam ligando meu celular para abrir o WhatsApp e checar quando foi a última vez que as pessoas que tenho na minha lista de contatos estiveram online.

Como não posso passar todos os dias ligando ou enviando mensagens de texto para toda a minha família e amigos, ver que eles estiveram online recentemente pelo menos me dá uma prova de que ainda estão vivos.

Pegar o telefone todas as manhãs é como levar um susto, porque você não sabe que notícias vai encontrar.

O momento mais assustador que passei nesses meses foi quando não consegui me comunicar com meus pais, que moram em Lugansk [uma das províncias do leste da Ucrânia que está sob total controle russo desde o início da invasão].

A cidade de meus pais, Shchastia (que significa felicidade em ucraniano), foi tomada e quase 80% destruída pelos russos.

Como meus pais são muito idosos, não puderam fugir e passei duas semanas sem notícias deles, porque as linhas telefônicas não funcionavam. Eu não sabia se eles estavam vivos ou não. Foi muito desesperador.

Não voltei a abraçar nem a ver pessoalmente o meu marido até ao verão de 2022, pois ele me deixou na casa daqueles amigos onde fiquei nas primeiras semanas da invasão, mas não ficou comigo.

Meu marido voltou a Kiev para vigiar o hotel que administra no centro da cidade e ficou lá durante o tempo em que estivemos separados.

Todos os dias nos falávamos no WhatsApp. Foi muito importante para mim vê-lo e conversar [Natália faz uma pausa, respira fundo e enxuga as lágrimas dos olhos]. Minha filha também participou de muitas dessas conversas, porque sentia muita falta do pai.

Em muitas dessas videochamadas, quando a conversa terminava, ficávamos nos olhando e mostrando o que estávamos fazendo naquele momento ou onde estávamos.

Essas ligações e as sessões de terapia que ofereci a outras refugiadas ucranianas que chegaram à Coruña me ajudaram a lidar com a separação de meu marido e meu exílio forçado. Ajudar outras pessoas me ajudou a me ajudar.

Depois de passar três meses na Espanha, voltei para a Ucrânia no início de julho passado. E minha filha Maria também.

À medida que o trem se aproxima de Kiev, ele passa por aquelas cidades que se tornaram famosas em todo o mundo - Bucha e Irpin, onde foram encontradas valas comuns com centenas de cadáveres- e ver as casas destruídas, queimadas e tudo arrasado me deu arrepios e medo , porque essas cidades estão muito próximas de Kiev, a poucos quilômetros de distância. Isso poderia ter acontecido no meu bairro.

Achei minha casa em bome estado, embora no meu bairro você possa ver os efeitos da guerra, porque fica perto do Verkhovna Rada (Parlamento ucraniano).

Em março [2022] caiu um míssil onde ficava o cabeleireiro que eu frequentava, a apenas 500 metros de onde moro. A dois quilômetros de distância fica uma das estações que distribuem eletricidade e no outono os russos tentaram destruí-la, mas falharam e destruíram dois prédios residenciais.

Passei dias sem água e luz, mas estou disposta a pagar esse preço desde que esteja com meus entes queridos e não desista do meu país.

E se em algum momento eu tiver que sair de novo, eu tentaria voltar de novo. Para alguns pode ser complicado de entender, mas para mim é simples.

Meu caso é diferente daqueles que perderam seus entes queridos e seus bens. Tenho para quem voltar (meu marido e minha família) e tenho um lugar para onde ir (minha casa). Para mim, a Ucrânia ainda existe.

Embora seja perigoso, para mim estar com meu marido e minha filha bem em casa vale o risco.

Fonte: correiobraziliense

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