Elevação do nível do mar, aumento da temperatura terrestre e derretimento recorde das geleiras são efeitos das mudanças climáticas enfrentados por moradores de áreas distintas do globo, de pequenos vilarejos a grandes centros urbanos. É também nesses lugares que a história da humanidade corre perigo. Segundo especialistas, sítios arqueológicos e outros patrimônios do tipo estão sendo danificados e podem até mesmo desaparecer em função do atual cenário de urgência ambiental.
Depois da criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 1988, o mundo começou a prestar mais atenção nos impactos das alterações ambientais em locais considerados tesouros históricos e culturais. O Grupo de Trabalho sobre Patrimônio das Mudanças Climáticas do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), descreveu no relatório Futuro de nossos passados como o desequilíbrio ecossistêmico pode levar a uma emergência nos recursos arqueológicos.
O trabalho de 2019 mostra como as consequências das mudanças climáticas afetam patrimônios tradicionais. Entre os problemas descritos, estão o aumento do nível do mar, tempestades, erosões e a elevação dos lençóis freáticos, que podem danificar artefatos e locais arqueológicos subterrâneos. Edifícios e estátuas podem ser desgastados, e existe o perigo de inundação permanente de artes rupestres, indica também o documento.
Segundo Francisco Pugliese, arqueólogo e pesquisador do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos da Universidade de São Paulo (USP), a elevação dos oceanos é uma das alterações mais preocupantes, porque sítios costeiros e insulares "têm enorme potencial de serem submersos ou mesmo destruídos por essa mudança." Conforme aponta o relatório, em Alexandria, no Egito, a única proteção contra esse tipo de dano que ameaça o Castelo de Qaitbay, uma relíquia do século 15, são blocos de concreto que rodeiam o lugar.
O trabalho também alerta para a situação da Reserva Nacional de Valle Caldera, no Novo México (EUA), assolada por chuvas e incêndios florestais recorrentes. Segundo o relatório, o fenômeno coloca em risco a preservação de recursos arqueológicos, como os trabalhos em pedras de obsidiana. Órcades, na Escócia, também enfrenta o problema. Em um cemitério medieval, sacos de areia passaram a ser usados para diminuir os estragos e evitar que precipitações intensas causem mais danos.
Segundo Thiago Ávila, socioambientalista e especialista em emergência climática e desastre ambiental, esse clima de apreensão se estende para a maior parte dos tesouros históricos do planeta. "Eles estão sob efeitos das mudanças que os abalam severamente e fazem com que tenham uma deterioração mais acelerada, passando a sofrer com problemas estruturais", explica. Pugliese lembra que, em muitos casos, as variações no clima aceleram a degradação dos sítios e de peças já em estado vulnerável, dificultando os projetos de preservação.
Cientistas britânicos também estão atentos ao problema. Uma pesquisa publicada na Cambridge University Press mostra que as erosões costeiras atravessam o mundo todo. Na cidade de Siraf, no Irã, existe a possibilidade de desaparecimento das bases da antiga muralha. Também há uma situação de alerta em Saint Monans, na Escócia, em Ahu Akahanga, na Ilha de Páscoa, e em uma praia da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, indica o trabalho liderado pelo arqueólogo Jørgen Hollesen, do Museu Nacional da Dinamarca, divulgado em novembro de 2022.
Também conforme o estudo, o derretimento acelerado das geleiras do Ártico é preocupante. O degelo do permafrost, camada do subsolo terrestre que está permanentemente congelada, expõe faixas arqueológicas a uma série de fatores degradantes. O fenômeno, por outro lado, permitiu que pesquisadores fizessem descobertas notáveis. Entre elas, as múmias de gelo, conhecidas como Ötzi, e alguns artefatos antigos na Noruega.
Um outro estudo, desenvolvido por Kieran Westley e Julia Nikolaus, da Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, identificou extensa erosão ao longo da costa da Líbia, em um local próximo ao porto de Apollonia, que foi um importante centro de ciência e filosofia no mundo antigo. A cidade de Cirene, fundada pelos gregos no século 7 antes de Cristo, é uma das que correm perigo. O lugar foi um centro comercial e cultural no passado. Suas ruínas, que ficam no alto de uma colina com vista para o Mar Mediterrâneo, agora consideradas Patrimônio Mundial da Unesco, são afetadas pelas oscilações no clima, alerta a dupla de cientistas.
Segundo Pugliese, é um desafio para os profissionais da área compreenderem a melhor forma de atuar nos locais ameaçados para não causar mais danos. A tendência de piora do cenário, levando à ocorrência sucessiva de fenômenos inéditos, deixa o trabalho ainda mais complicado."Condições de preservação que se encontravam estáveis por séculos ou milênios, se tornaram imprevisíveis, o que pode complicar, e até mesmo impossibilitar, a correta interpretação desses locais no futuro", explica o arqueólogo.
Ávila lembra que, além de contarem o passado, sítios arqueológicos e outras construções similares podem ser o caminho para buscar soluções que resgatem a sintonia entre ser humano e meio ambiente. Isso porque esses lugares remetem a um momento em que os homens viveram em harmonia com a natureza, argumenta. "Eles contam uma história de como era a Terra antes do aquecimento que colocou a natureza como objeto de lucro e tem gerado uma concentração de carbono na atmosfera que é a maior dos últimos 2 milhões de anos."
No caso do Brasil, o ambientalista relata que estudos mostram como a ocupação milenar da Amazônia não apenas manteve a floresta em pé, como foi responsável pela sua formação. "No entanto, esse tipo de conhecimento se desfez ao longo do tempo. Não compreender o processo de criação da mata é uma perda muito grande, pois o entendimento sobre a natureza poderia ajudar nas questões ambientais enfrentadas hoje."
Para Ávila, é necessária e urgente a adoção de medidas para minimizar os impactos de alterações climáticas nas provas da história humana. "Esses efeitos vão acontecendo em intensidade cada vez maior, e é melhor que esses lugares se adaptem. Mudanças estruturais, medidas de compensação e outras precauções para que esse patrimônio seja preservado são alguns dos caminhos", indica.
Fonte: correiobraziliense
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