20 de Setembro de 2024

As vidas de quatro crianças colombianas renascidas da selva amazônica


Um milagre também é feito de heróis, de união, de fé, de perseverança e da vontade de sobreviver. Por quatro vezes, a palavra "milagre" foi repetida pelos militares à frente da Operação Esperança, por meio dos radiotransmissores. Foi a senha para anunciar aos integrantes das equipes de busca que as quatro crianças tinham sido encontradas com vida, por volta das 17h desta sexta-feira, 9/6 (19h em Brasília). Durante 40 dias, os irmãos Lesly Jacobo Bonbaire, 13 anos; Soleiny Mucutuy, 9; Tien Noriel Ronoque Mucutuy, 5; e Cristin Neriman Ranoque Mucutuy, 1, estiveram desaparecidos na selva amazônica, após sofrerem um acidente aéreo. O monomotor Cessna 206 em que viajavam caiu a 175km da cidade de San José del Guaviare, às 7h34 de 1º de maio. O piloto Hernando Murcia; a mãe dos meninos, Magdalena Mucutuy; e o diretor de uma ONG, Yetara Herman Hernández; morreram.

Os irmãos foram localizados poucas horas depois que dez soldados e oito indígenas encontraram novas pistas. A angústia, o desespero e a incerteza deram lugar ao alívio para familiares e autoridades. Os pequenos se recuperam no Hospital Militar de Bogotá e "estão fora de perigo", anunciou o ministro da Defesa, Iván Velásquez.

"As crianças estão em processo de hidratação. No geral, o estado de saúde delas é aceitável. De acordo com os informes médicos, estão fora de perigo", esclareceu Velásquez. O titular da Defesa revelou que Tien passou o quinto aniversário na selva. Cristin, a caçula, também fez um ano na mata. Ele elogiou Lesly, a mais velha. "Precisamos reconhecer sua liderança. Foi por ela que os três irmãozinhos puderam sobreviver, com os seus cuidados e o conhecimento da selva." Velásquez agradeceu às comunidades indígenas que participaram do resgate e às forças militares. Cristin requer mais atenção do ponto de vista nutricional. 

O major-general Carlos Rincón Arango, médico do Hospital Militar, explicou que os irmãos recebem cuidados de uma equipe multidisciplinar. "Eles estão completando um protocolo de avaliação, com exames clínicos e imagens diagnósticas. Começamos o tratamento de recuperação nutricional e de terapia e apoio psicológico. Estão em condições clínicas, físicas e mentais aceitáveis", disse. De acordo com ele, os quatro apresentam lesões na pele e picadas de insetos. Todos permanecerão hospitalizados por duas ou três semanas. 

Petro (D) cumprimenta enfermeira diante do leito de uma das crianças
Petro (D) cumprimenta enfermeira diante do leito de uma das crianças (foto: Presidência da Colômbia/AFP)

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro; a primeira-dama, Veronica Alcocer; e a filha Sofia Petro visitaram os pequenos e levaram presentes. "O encontro de saberes: indígenas e militares. O encontro de forças por um bem comum: guarda indígena e as forças militares da Colômbia. O respeito à selva", escreveu no Twitter, ao publicar fotos da passagem pelo Hospital Militar. "Aqui se mostra um caminho diferente para a Colômbia: creio que este é o verdadeiro caminho da paz. Aqui há uma nova Colômbia. Que é de vida, antes de mais nada. O objetivo que nos une é a vida", celebrou. 

A Operação Esperança rastreou 2.656km e envolveu soldados e 73 indígenas, além de helicópteros — um deles reproduziu, por meio de alto-falante, a voz de María Fátima Valencia, avó materna dos meninos. Ao longo do tempo, os socorristas encontraram pistas que sugeriam que ao menos uma das crianças estaria viva: tesouras, mamadeira, frutas mordidas, abrigos feitos com folhas. Além de tempestades elétricas frequentes, a selva onde estavam perdidas guarda perigos, como onças, serpentes venenosas, escorpiões e outros animais.

"Sofri muito"

Às 2h15 de sábado, 10/6 (0h15 na Colômbia), o Correio entrevistou, por telefone, María Fátima e o marido, Fidencio Valencia, enquanto percorriam os 121km entre Villavicencio, no estado de Meta, e a capital. "Foi um milagre. Estou muito contente", desabafou a avó, uma indígena huitoto. O luto e o medo abriram espaço para a alegria em reverem as crianças. "Sofri muito. Sepultei minha filha e, quatro dias depois, comecei a orar pelos netos. Vou recuperar o que morreu em mim". Ela relatou que recebeu a notícia sobre o resgate às 17h30 de sexta-feira (hora local). "Meu filho telefonou e me disse: 'Nós os encontramos'. Depois, minha sobrinha Olga. Por fim, um morador da nossa comunidade disse que estava com eles no helicóptero."

Horas depois, a avó tornou a falar com a reportagem, desta vez diante das crianças, no Hospital Militar. O reencontro tinha ocorrido às 4h (6h em Brasília). "Eles estão muito mal. Não os deixam comer. Agora estou olhando para eles. A bebezinha e os meninos... Apenas Lesly falou comigo. Ela afirmou que o avião tinha caído", comentou. Segundo María Fátima, a sabedoria indígena ajudou os netos. "Eles viviam de pepa de monte (tipo de semente). Nós, indígenas, sabemos o que é pepa de monte e o que não presta. Toda a água da vida matou-lhes a sede. Essas coisinhas que eles comiam por aí", disse. "Eles viram a mamãe morta e reuniram forças."

Fidencio Valencia (C), o avô dos meninos: "Como avô, trabalhei muito espiritualmente"
Fidencio Valencia (C), o avô dos meninos: "Como avô, trabalhei muito espiritualmente" (foto: Juan Barreto/AFP)
 

Fidencio, 47, disse ao Correio sentir "alegria" e "satisfação". "Dou graças a Deus por todas as pessoas que me apoiaram na busca e nas orações. Quero agradecer ao presidente e aos militares", relatou. Ele garante ter uma explicação para os netos estarem vivos. "Foi a parte espiritual que trabalhamos. Como avô, trabalhei muito espiritualmente para que o conhecimento indígena fosse válido para eles." Segundo Fidencio, a alegria, a paz e a tranquilidade foram essenciais para as crianças. 

"Devo agradecer a Deus por estarem com vida. Eu lhes dei alegria. Fiquei contente, vendo os meninos e as meninas emocionados. As meninas, que são tão guerreiras... As crianças ficaram caminhando pela selva. Nada lhes aconteceu. Não se encontraram com nenhum animal. Nada, nada", desabafou Fidencio. 

De acordo com o avô, os quatro netos estão "muito acabados". "Pouco a pouco perguntamos algumas coisinhas para eles, mas precisamos deixar que descansem. Estão assustados, por seus corpos e por todos os ruídos da selva. Quase nada falaram", comentou Valencia.

A ex-senadora Ingrid Betancourt, mantida refém pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) entre 2002 e 2008 na selva de Guaviare, classificou como "muito extraordinário o fato de as crianças terem sobrevivido por 40 dias". "A ação dos militares foi decisiva. Mas, restam perguntas: como percorreram os 5km que as separavam do avião? A distância é enorme, avançar na selva é muito difícil, principalmente quando não se tem facões ou botas. Receberam ajuda de comunidades indígenas? Tiveram acesso a mantimentos lançados de helicópteros?", questionou ao Correio. Ingrid lembrou que a selva reúne animais ferozes, excesso ou falta de água, árvores que despencam, buracos, "muros" de vegetais, rios caudalosos e doenças, como leishmaniose e malária.

 

De que maneira seus netos sobreviveram em um ambiente tão hostil?

A floresta, a água e os espíritos da mata os protegeram. A natureza os protegeu. Assim como as palavras de nossos anciões, do Criador. Acreditamos no mesmo Deus. Os homens dialogam, à noite, espiritualmente. Nós abríamos a mente e pedíamos que o Criador protegesse as crianças, que se encontravam na selva. 

Em algum momento, a senhora perdeu a esperança de
encontrá-los com vida?

Não, nunca pensei que pudessem estar mortos. As pessoas me diziam: "Há vida! Há vida, avozinha, na sombra. As crianças estão protegidas! A Mãe Natureza as têm! Temos que dar luz, força e ânimo. Vamos fazer orações!". Eu, como avozinha, também pedi muito ao meu Criador. Os outros avós fizeram o mesmo. O Pai Celestial... Nós somos indígenas. Temos muita fé! Muita fé espiritualmente... 

O que a senhora poderia dizer sobre seus netos?

Primeiro, tenho que agradecer ao Criador, como é um costume de nosso povo. Eles estão desnutridos neste momento. Quero agradecer, em primeiro lugar, e abraçá-los. Dar graças ao Senhor. Quero protegê-los. Quero falar com eles. Sei que não vão falar, pois estarão assustados. Eles se entendem comigo. (RC)

"Fui um dos guias caninos que procurou as crianças na selva durante oito dias. Eu e meus companheiros fomos retirados da floresta na quinta-feira, um dia antes do fim do resgate. Todos os momentos de busca aos meninos foram difíceis, porque as condições que encontramos lá foram extremas. Tudo tem veneno, há animais que podem te picar. Não sabíamos se havia dissidências de grupos guerrilheiros na região, nem se existia alguma mina terrestre. A selva é muito densa e quase era impossível caminhar por ela. Todos os dias ficávamos molhados. 

É um milagre. Para nós, que levamos todo o equipamento completo, a selva foi muito dura. Agora, as crianças nada tinham nas mãos. Não sabemos como explicar. Será preciso esperar que elas comecem a falar. Lesly, a garota de 13 anos, foi a responsável pela sobrevivência dos irmãos. Ela manteve o moral elevado de todos. Foi quem fez com que seguissem em frente. Como são indígenas, a menina sabia como improvisar um abrigo e quais frutas podiam comer. Ela sabia tudo isso. Por isso, conseguiram sobreviver. Agora, há uma equipe buscando Wilson, um dos cães farejadores, que se encontra desaparecido. Estive com outro cão, Tellius, um pastor belga. Os cães se metiam em partes onde pessoas não cabiam. Eles fizeram varreduras na selva mais densa e emitiam sinais."

Carlos Villegas, 37 anos, guia canino da Defesa Civil da Colômbia e membro da equipe de buscas às crianças. Depoimento ao Correio por telefone

"Para a Colômbia, esta é uma notícia de esperança, depois de semanas de angústia. Não se sabia se as crianças continuavam vivas. Tudo isso depois de notícias ruins, escândalos políticos, assassinatos e um auge da violência. A selva é outro planeta, um mundo hostil para o ser humano. Na selva amazônica, o ser humano é uma presa para outros animais mais fortes e astutos. Mas, também, é a última trincheira da natureza. Se a destruirmos, os seres humanos deixarão de existir."

Ingrid Betancourt, ex-senadora colombiana, mantida refém pelas Farc na selva entre 2002 e 2008

Em 8 de junho, quando a busca pelas crianças havia ficado em segundo plano em meio a uma crise de governo provocada por um escândalo de escutas telefônicas, os militares relataram que Wilson, um cão farejador envolvido na busca, havia desaparecido na selva. O pastor belga de seis anos foi o cachorro que encontrou a mamadeira de Cristín no meio da vegetação. Segundo boletim do Exército, é possível que ele tenha ficado "desorientado" com a "complexidade do terreno". Os militares também encontraram as pegadas do cachorro próximas às dos menores. Ontem, o Exército anunciou, por meio do Twitter: "A busca não terminou. Nossa premissa: ninguém fica para trás. Os soldados continuam a operação para encontrar Wilson". 

Fonte: correiobraziliense

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