22 de Novembro de 2024

O que está em jogo na disputa pela reencarnação do Dalai Lama


Um grupo de ateus chineses – o Partido Comunista da China – determinou há muito tempo como os grupos religiosos do país devem praticar a sua fé.

Os cristãos chineses, por exemplo, são instruídos a rejeitar a salvação pela fé e a ressurreição de Cristo. Suas crenças principais devem ser o patriotismo e o amor pelo partido.

O PC chinês também publicou diversos panfletos detalhando crenças e práticas apropriadas para os budistas e ordenou que eles adaptassem seus pensamentos a elas.

Mas as autoridades comunistas estão particularmente preocupadas com um elemento politicamente sensível do Budismo: a sucessão do atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso.

Sua linhagem reencarnatória começou no século 16. Ele irá fazer 88 anos de idade em julho e tem sido noticiado que ele sofre problemas de saúde, embora afirme que está saudável.

Nos seus veículos oficiais, como o jornal Global Times, o PC chinês defende que o governo da China é o único árbitro legítimo para todas as reencarnações de lamas budistas, independentemente de onde eles nascerem ou das suas regiões tradicionais de influência.

O Estado chinês suspeita profundamente dos fiéis religiosos e do seu possível poder de persuasão sobre ideologias rivais. Por isso, ele insiste em nomear e educar todas as figuras religiosas importantes.

Eles aprendem a propaganda do patriotismo chinês e se dedicam a reproduzir a linha do partido, mas costumam ter pouco conhecimento da sua suposta religião. Os verdadeiros fiéis reconhecem esta situação.

O Dalai Lama destacou o absurdo da posição do partido no início de 2023, ao reconhecer um menino mongol de oito anos como o décimo Jetsun Dampa, a linhagem reencarnatória mais influente da Mongólia.

A decisão irritou as autoridades chinesas, por demonstrar que o Dalai Lama mantém sua autoridade entre os budistas da região. E também demonstrou que, mesmo depois de décadas de insistentes alegações de que o PC chinês exerce a única autoridade nestes assuntos, esta é apenas uma invenção oficial.

Em 1995, o Dalai Lama proclamou um menino tibetano chamado Gendün Chökyi Nyima como Panchen Lama, o segundo lama reencarnado mais importante da sua ordem Geluk.

O partido reagiu com a prisão do menino, que tinha então seis anos de idade, junto com sua família. Eles nunca mais foram vistos.

Os budistas tibetanos acreditam que, após a morte, a consciência da pessoa migra para um novo corpo.

Para a maioria das pessoas, isso acontece involuntariamente, mas os mestres avançados podem escolher suas situações de vida. Eles são chamados de "tulkus" ("corpos de emanação").

Tradicionalmente, os tulkus exerceram a autoridade suprema sobre suas próprias sucessões. Muitos lamas publicam previsões indicando as circunstâncias do seu renascimento, incluindo o local e a época.

Na esperança de combater os planos do Partido Comunista Chinês de indicar seu sucessor, o Dalai Lama declarou que não irá renascer em nenhuma região sob o controle da China. Ele afirma que a principal tarefa do novo tulku será realizar o trabalho inacabado do seu predecessor, o que seria impossível no Tibet ocupado.

O PC chinês menciona precedentes, a maioria deles inventados ou exagerados, que, segundo eles, concedem ao partido o direito historicamente determinado de decidir todas as questões sobre a sucessão dos tulkus.

Muitos desses precedentes referem-se à "Urna Dourada", enviada para o Tibet em 1792 pelo imperador chinês Qianlong, com suas instruções de uso. Os nomes dos possíveis tulkus devem ser inscritos para sorteio e colocados na urna. O lama em exercício escolheria um deles aleatoriamente como o tulku sucessor.

Apesar das alegações das autoridades do partido de que a urna foi usada em todas as seleções de tulkus desde que foi enviada para o Tibet, fontes históricas indicam que ela foi usada apenas esporadicamente.

Além disso, não vi nenhum documento do Tibet que apresente a urna como o único fator determinante para a sucessão dos tulkus. Em todos os casos que examinei, foram realizados exames tradicionais em primeiro lugar.

Uma criança candidata, por exemplo, recebeu dois conjuntos de objetos – um pertencente ao predecessor e outro similar. O sucessor real deveria ser capaz de identificar corretamente os objetos de propriedade do seu predecessor.

Os sorteios da Urna Dourada foram realizados como uma dentre uma série de medidas para garantir que fosse selecionado o candidato correto – ou para apaziguar as autoridades chinesas.

O Dalai Lama declarou que está aberto a um processo que inclua sorteios retirados da urna, mas insiste também nos métodos de sucessão padrão desenvolvidos pelo Budismo Tibetano.

A maioria das discussões públicas sobre a sucessão concentra-se em afirmações e argumentações com bases históricas, mas a lógica subjacente dos dois lados raramente é mencionada.

O Budismo Tibetano defende que, à medida que a morte se aproxima, os níveis de consciência mais grosseiros se dissipam. No momento da morte, manifesta-se a consciência mais sutil, a "Clara Luz". Em seguida, a pessoa entra no "estado intermediário" (bardo) e renasce em outro corpo.

A principal base do renascimento é a consciência. Ela é comparada com um rio, que flui de um momento para outro e cada momento é condicionado pelos momentos que o precederam. Não é como uma alma porque é impermanente, está em mutação.

A maioria dos budistas acredita que o renascimento é determinado pelo seu carma do passado, mas os tulkus podem escolher conscientemente sua situação na próxima vida.

Um dos principais absurdos das alegações do Partido Comunista chinês sobre sua autoridade sobre este processo é o fato de que seus membros seguem a filosofia marxista do materialismo dialético, que rejeita a ideia de renascimento e a transferência de consciência entre os corpos.

Por isso, quando o partido designar alguém como "Dalai Lama", será como nomear um agente dos correios – um cargo supervisionado pelo governo, que pode ser conferido a qualquer pessoa.

Mas os budistas tibetanos acreditam que o reconhecimento de um Dalai Lama é muito mais do que isso. É o resultado de uma série de exames rigorosos, elaborados para determinar uma pessoa única, cuja consciência é a continuação do seu predecessor.

Depois do desaparecimento de Gendün Chökyi Nyima, em 1995, o governo promoveu uma cerimônia para nomear outro menino como Panchen Lama.

Os Panchen Lamas desempenharam, muitas vezes, papéis importantes no reconhecimento dos Dalai Lamas. O PC chinês declarou seus planos de usar seu Panchen Lama para escolher o Dalai Lama que ficará sob seu controle.

O Dalai Lama declarou em diversas ocasiões que o povo tibetano irá rejeitar a escolha da China. E os tibetanos exilados planejam empregar métodos tradicionais para identificar o sucessor de Tenzin Gyatso.

Inevitavelmente, outros países serão arrastados para este misterioso conflito, baseado em precedentes religiosos de séculos atrás que poucos irão compreender.

Depois que cada lado anunciar seu respectivo Dalai Lama, qual será o efeito sobre os budistas tibetanos no Tibet e suas práticas religiosas? Provavelmente, será muito pequeno.

O Panchen Lama do Partido Comunista Chinês é considerado pelos tibetanos uma alta autoridade do governo e é tratado com o devido respeito. Mas ele não tem autoridade como mestre religioso.

E, apesar das tentativas do governo de promovê-lo, ele não tem a formação, o conhecimento e o carisma necessários para sua função de tulku. Ele raramente visita o Tibet e não demonstrou aptidão para os aspectos religiosos do seu cargo.

O futuro Dalai Lama nascido no exílio irá receber a formação tradicional das mais estimadas figuras do Budismo Tibetano. Já o seu rival do PC chinês irá se formar em uma escola do governo e se tornará um porta-voz do partido.

O primeiro provavelmente irá seguir as pegadas de Tenzin Gyatso, tornando-se um porta-voz do Budismo reconhecido internacionalmente. Enquanto isso, o último irá imitar o Panchen Lama do partido, repetindo qualquer mensagem que seus senhores ordenarem que ele ofereça aos budistas tibetanos.

A sobrevivência futura do Budismo Tibetano não está garantida. Os tibetanos se identificam esmagadoramente como budistas e a maioria reverencia profundamente o Dalai Lama, apesar das décadas de propaganda tentando demonizá-lo.

O governo vem impondo cada vez mais restrições às práticas religiosas. Existem também obstáculos econômicos para as pessoas que quiserem manter seus compromissos religiosos tradicionais.

Esta luta entre a tradição e o controle do Partido Comunista provavelmente irá se desenvolver pelas próximas décadas e o futuro parece cada vez mais sinistro para quem desejar resistir.

* John Powers é professor de estudos do Budismo da Universidade de Melbourne, na Austrália.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.

Fonte: correiobraziliense

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