O porteiro Oswaldo de Jesus Santos, de 68 anos, trabalhava normalmente num sábado de 2020 quando sentiu uma forte dor no peito.
Como o incômodo não ia embora, ele resolveu ir ao pronto-socorro no dia seguinte, onde recebeu o diagnóstico de tuberculose.
Sem perceber melhora dos sintomas após passar pelo tratamento inicial, Santos marcou uma nova consulta, fez exames e recebeu a notícia: a origem do problema, na verdade, era um câncer no pulmão.
Natural de Itagibá, na Bahia, e residente em São Paulo há 50 anos, Santos diz que a descoberta do tumor não gerou medo de imediato. "Eu logo pensei: se tiver jeito, a gente tira o ‘bicho’ fora. E, se não tiver, eu vou para o buraco mesmo", diz, em tom de brincadeira.
Mesmo com a aparente serenidade e abnegação, Santos não poderia imaginar que, poucos meses após a notícia, ele seria um dos únicos três brasileiros a ser submetido a uma cirurgia inovadora e pouco difundida no país.
Em resumo, o pulmão direito dele, que estava acometido pela doença, foi completamente retirado do corpo e operado numa mesa de cirurgia à parte, onde as massas tumorais foram removidas.
Poucas horas depois, esse mesmo órgão foi reimplantado de volta no tórax do porteiro — onde continua a funcionar até hoje.
Essa operação — conhecida como autotransplante — permitiu que a doença de Santos fosse controlada.
Passados três anos do procedimento, período em que ele continuou a fazer acompanhamento e exames regulares, ainda não há evidência de recaídas ou de que o tumor tenha retornado.
Mas esse método, claro, não está indicado para todos os pacientes com câncer de pulmão — e exige uma extensa avaliação da equipe médica antes de ser realizada.
Atenção: a reportagem traz fotografia que pode ser sensível para algumas pessoas e detalha, em texto, como funciona a cirurgia de autotransplante.
O cirurgião torácico Marcos Samano, da Rede D’Or São Luiz, em São Paulo, foi o responsável pelos primeiros três autotransplantes de pulmão no Brasil. Ele é professor de cirurgia torácica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Samano conta que leu artigos sobre essa modalidade de cirurgia há cerca de 12 anos. "Ela combina duas experiências e especialidades médicas distintas: a oncologia e a área de transplantes", comenta o especialista.
Das três cirurgias realizadas por Samano até o momento, duas aconteceram pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo ele, a decisão de apostar nesse tipo de operação só veio depois de muito debate entre os especialistas, que se reuniram num comitê para avaliar os prós e contras de fazê-la em cada paciente.
Nas três situações, a conclusão do grupo foi a de que os indivíduos (dois homens e uma mulher) apresentavam as condições para serem submetidos ao procedimento, que poderia trazer mais benefícios do que seguir com outros tratamentos-padrão, como a quimioterapia e a radioterapia.
Aliás, o próprio avanço dos demais recursos terapêuticos contra o câncer de pulmão permitiu que o autotransplante se transformasse em uma possibilidade em certos casos.
"Os medicamentos disponíveis atualmente permitem reduzir significativamente o tamanho do tumor", diz Samano.
Com isso, logo após os ciclos iniciais de terapia, as operações se transformam em uma alternativa para lidar com essas massas cancerosas diminutas.
"Antigamente, esses indivíduos nem eram considerados elegíveis para cirurgia. Mas isso mudou", comemora Samano.
Tomada a decisão de partir para o bisturi, o paciente é submetido a uma série de exames prévios.
Esses testes têm dois objetivos principais: primeiro, garantir que a pessoa reúne as condições de passar pelo procedimento; segundo, ajudar a equipe médica a planejar em detalhes todos os passos da intervenção.
O procedimento em si demora cerca de oito horas. Basicamente, o paciente recebe a anestesia e é deitado de lado. A equipe, formada por Samano e outros 11 profissionais, faz a incisão pela lateral do corpo, na altura das costelas e abaixo da axila.
Após fazer os devidos cortes em camadas mais superficiais — pele, tecidos conjuntivos e músculos, por exemplo —, os especialistas alcançam o lobo do pulmão que está acometido pelo tumor.
Para fazer a retirada, os especialistas separam as três estruturas principais que conectam o pulmão com o resto do corpo: uma veia, uma artéria e um brônquio.
O órgãoé então colocado em uma segunda mesa cirúrgica. "Ali é possível trabalhar muito melhor e ‘esculpir’ delicadamente as regiões comprometidas pelo tumor", detalha Samano.
Segundo ele, esse processo leva em torno de duas horas — o órgão, em teoria, poderia permanecer fora do corpo por até seis ou oito horas.
Além de facilitar a tarefa dos médicos, o autotransplante traz outra vantagem. O corpo do paciente segue funcionando normalmente enquanto é monitorado pelo restante da equipe: o coração bate, o outro lobo do pulmão troca gás carbônico por oxigênio, e assim por diante.
"Também é possível realizar a intervenção pelo tórax, mas a margem de segurança é menor e precisamos lidar com possíveis sangramentos imprevistos", acrescenta o cirurgião torácico.
Com o lobo do pulmão "esculpido" e livre dos tumores, ele é colocado de volta no lugar de origem pelo mesmo buraco de onde foi retirado. Os médicos costuram as veias, as artérias e os brônquios, para que a comunicação com o resto organismo seja novamente restabelecida.
O autotransplante de Santos aconteceu em setembro de 2020. Ele foi internado num domingo à noite e passou pela cirurgia numa segunda-feira pela manhã.
Samano destaca que, como o órgão pertence ao próprio indivíduo, não há risco de rejeição pelo organismo. Com isso, o paciente não precisa tomar remédios mais fortes, que suprimem a ação do sistema imunológico.
"O pós-operatório é convencional, com controle da dor e acompanhamento do quadro, pois há um risco de trombose pulmonar ou outras complicações", descreve Samano.
O próprio Santos, aliás, teve uma recaída e precisou ficar alguns dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) antes de ser liberado.
Nos outros dois pacientes, esse cuidado mais intensivo nem foi necessário, segundo o médico.
Um deles, que passou pelo procedimento em 2023 no Hospital São Luiz Itaim, mas preferiu não ser identificado pela reportagem, voltou aos compromissos profissionais e praticou atividade física duas semanas após ter sido submetido ao autotransplante.
"No momento, nenhum dos três indivíduos têm qualquer evidência de que o tumor voltou", informa Samano.
Para o cirurgião, essas experiências revelam como, graças aos avanços da medicina, o tratamento do câncer fica cada vez mais personalizado.
"Nós temos que ver o paciente como um indivíduo único, que precisa ser avaliado para receber o melhor tratamento específico para o caso dele", acredita.
Passados quase três anos do autotransplante, Santos continua a fazer um acompanhamento médico a cada três meses e toma um comprimido diário para garantir uma boa respiração.
Questionado pela BBC News Brasil como se sente após esse período — e como foi passar por um procedimento praticamente inédito no país —, ele respondeu sem pestanejar.
"Se eu não fizesse a cirurgia, ia morrer. Se fizesse e desse errado, ia morrer do mesmo jeito. Então aceitei o procedimento numa boa", diz.
"E graças a Deus estou vivo para contar história até hoje", completa.
Fonte: correiobraziliense
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