Em seu último livro, Diferentes, o primatólogo holandês Frans de Waal, autor de obras de referência sobre temas como empatia, solidariedade e competição, apoia-se em quase cinquenta décadas de observações e pesquisas com chimpanzés, bonobos e humanos para mostrar os últimos avanços científicos, assim como seu próprio entendimento sobre os debates e as questões contemporâneas acerca de sexo e gênero.
"As pessoas têm comumente usado as palavras sexo e gênero como se fossem sinônimos", afirma Frans de Waal à BBC News Brasil.
"São termos não só distintos, mas que mudaram de significado ao longo dos últimos vinte anos, assim como devem ser vistos de outra forma daqui mais vinte anos."
Em Diferentes, lançado em junho no Brasil, o autor apresenta uma página com um glossário com explicações, pelo ponto de vista da biologia e da primatologia, para "sexo", "gênero", "papel de gênero", "identidade de gênero", "transgênero", "transexual" e "intersexo".
"O sexo é biológico, já o gênero, cultural, pois é o papel de cada sexo na sociedade. A identidade de gênero tem fator biológico e por isso que se pode nascer com um sexo, dependente do seus cromossomos, mas com outra identidade de gênero. É o que mostra a Ciência e, também, as observações de primatas – e, para mim, humanos são primatas – na natureza", diz de Waal à BBC News Brasil.
A narrativa do primatólogo segue a tradição de relatos de naturalistas, como os do alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) em seus textos sobre explorações nas Américas, os do inglês Charles Darwin (1809-1882) em seu clássico A Origem das Espécies (1859) ou como tem sido o trabalho da inglesa Jane Goodall desde os anos 1960, observando chimpanzés.
De Waal, hoje com 74 anos, começou suas pesquisas de campo nos anos 1970 e, desde então, publicou dezessete livros sobre suas descobertas.
Alguns deles são best-sellers, figurando em listas de mais vendidos em países como os Estados Unidos. Caso de Chimpanzee Politics: Power and Sex among Apes ("Política dos Chimpanzés: Poder e Sexo entre Primatas", em tradução livre), de 1982, e Our Inner Ape ("Nosso Primata Interior", em tradução livre), de 2005.
Membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos e da Academia Real de Ciências e Artes da Holanda, é hoje professor da Universidade de Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos, e diretor no centro de pesquisas com primatas Yerkes National Primate, na mesma cidade.
Em 2007, pelo sucesso de seus best-sellers, foi eleito uma das cem pessoas mais influentes do planeta no tradicional ranking anual publicado pela revista americana Time.
Nos seus livros, ressalta-se o estilo de escrita no qual mescla narrativas de experiências que teve com animais, em especial na primatologia, com descrições de descobertas científicas.
Uma das histórias que ele conta em Diferentes, sua mais nova obra, publicada no Brasil pela editora Zahar, é a da (ou do, como se verá) chimpanzé Donna. Nascida fêmea, ela, porém, se comportava como do gênero masculino.
Um adendo importante para de Waal é que, para ele, "macho e fêmea são referentes ao sexo biológico, enquanto me refiro a gênero como masculino e feminino, além de todas as variantes de cores que há entre esses polos".
O primatólogo relata que Donna desenvolveu pelos mais longos que os das fêmeas e conseguia eriça-los, como só é comum entre machos da espécie.
Andava mais na companhia dos machos, que não tinha interesse sexual por ela (assim como Donna não tinha por eles), e agia da mesma forma, como em brincadeiras de simulação de agressividade.
Escreveu de Waal, no livro: "Quem a via, podia jurar que ali estava um macho". O primatólogo diz não poder afirmar que se tratava de um transexual, "pois para animais é impossível de saber".
Todavia, ele conclui em Diferentes: "O melhor modo de descrevê-la talvez seja como um indivíduo em grande medida assexual de gênero inconforme".
Ao longo do livro de quase 600 páginas, o primatólogo trata de diversos aspectos das questões de gênero e sexo, que vão desde como bebês brincam ao feminismo e movimentos de solidariedade entre mulheres, assim como com comparações com fêmeas de bonobos e chimpanzés.
Há também um capítulo inteiro dedicado a, como o autor destaca no título do mesmo, "sexo com o mesmo sexo".
"Outra confusão comum é entre identidade de gênero e orientação sexual. O segundo, que também tem fator biológico, justamente por ser comum em outras espécies na natureza e, então, se nasce assim, é uma questão de por quem se tem atração", diz De Waal à BBC News Brasil.
O primatólogo conta a história de casais de pinguins do mesmo sexo. Como uma que ganhou o noticiário em 2004, de Roy e Silo, dois machos que chegaram a chocar um ovo e criar juntos o bebê, no zoológico do Central Park, em Nova York.
Sua especialidade, entretanto, é a observação de primatas. Entre bonobos, por exemplo, que se trata de uma sociedade matriarcal, todos os indivíduos, machos e fêmeas, costumam ser bissexuais.
"Nós, humanos, somos muito categóricos, assim como preconceituosos. Animais, não. Os bonobos, em cativeiro ou na natureza, têm uma vida sexual bem variada, com relações com propósitos de prazer e de vínculos sociais. São formas de estreitar laços, principalmente entre as fêmeas", afirma de Waal.
Para o primatólogo, a transexualidade, por exemplo, também teria origem biológica. Além de histórias vinculadas às suas pesquisas, como a sobre a chimpanzé Donna, no livro ele compila estudos científicos de outros campos do conhecimento.
Cita-se, por exemplo, um que se tornou referência para a área, publicado em 1995, no periódico científico Nature, e liderado pelo neurocientista Dick Swaab, do Netherlands Institute for Brain Research, em Amsterdã.
Nele, descobriu-se que uma área do cérebro conhecida como núcleo leito da estria terminal é duas vezes maior no homem do que na mulher, sendo que essa diferença é replicada em pessoas transgênero, de acordo com o gênero com a qual se identificam.
"Existe essa mesma diversidade no reino animal, sendo registrada em diversas espécies", afirma de Waal. "Mas só a nossa espécie, a humana, apresenta preconceitos. Pois nada disso é um problema na natureza".
O lançamento do livro na versão original, em inglês, em 2022, provocou algumas controvérsias entre a crítica e a comunidade científica, em especial nos Estados Unidos.
Enquanto a obra foi majoritariamente elogiada pelo trabalho de observação de primatas e pela forma como aborda a questão da identidade de gênero e da orientação sexual, algumas das comparações entre chimpanzés, bonobos e humanos geraram incômodos em alguns.
Tamra Mendelson, professora de Biologia, com estudos focados em comportamento animal, da Universidade de Maryland em Baltimore, escreveu em um artigo de opinião para o jornal The Washington Post: "De Waal nunca mostra uma definição concreta de 'biologia' para se considerar. É seguro assumir que se trata de algo a ver com genética, mas a sua definição clara de gênero, como "'o papel e a posição culturalmente circunscritos de cada sexo na sociedade', parece rejeitar um papel que a genética tem e que até mesmo ele reinvindica como base biológica".
Outro ponto que incomodou Mendelson é como o primatólogo define sexo como um fator biológico ligado aos cromossomos. "É mais complicado do que isso", escreveu ela.
Em entrevista à BBC News Brasil, a bióloga explica sua crítica: "Não entendi o que De Waal quis dizer por 'biologia'. Pode se referir a muitas coisas: o DNA, gametas, hormônios, neurônios. Não sei se o Dr. de Waal estava confuso, é possível que ele não quis se perder em detalhes em um livro de apelo popular".
Já o jornal The New York Times publicou, em artigo assinado pelo jornalista Carl Zimmer: "De Waal às vezes força as evidências de acordo com o que defende. Ele defende que meninas se vestem de princesas por se sentirem bem ao se conformarem com seus próprios gêneros. De evidência, ele cita um único estudo de scanner cerebral com 19 indivíduos".
Apesar das críticas, que miraram principalmente trechos do livro nos quais De Waal ensaia sobre como meninos e meninas teriam comportamentos determinados pelo sexo biológico, é ampla a aceitação do trabalho do primatólogo.
"O comportamento animal é incrivelmente complicado", diz a bióloga Tamra Mendelson, que escreveu sobre Diferentes para o The Washington Post, à BBC News Brasil.
"Aprender sobre como agem nossos parentes mais próximos, pelo ponto de vista evolutivo, nos inspira a refletir e a criar novas hipóteses sobre nós mesmos, humanos. E as histórias dele (De Waal) sobre chimpanzés e bonobos são profundamente comoventes e, em alguns casos, inesquecíveis".
No campo da biologia, De Waal coleciona fãs. "Ele não fica preso a ideologias. Ele é intelectualmente honesto e se recusa a isso, não considera resultados só para servir de suporte a uma agenda qualquer. Isso pode até ser o motivo dele irritar alguns", diz à BBC News Brasil o biólogo holandês Leon Vlieger, em resposta por email.
Vlieger mantém um blog, o The Inquisitive Biologist, no qual, desde 2017, publica resenhas sobre livros científicos, em especial sobre obras de sua área de formação, como é o caso de Diferentes.
No texto sobre a obra do primatólogo, escreveu: "Mesmo que gostemos de pensar que escapamos de nossas raízes biológicas, nossa linguagem e intelecto são inovações evolucionárias que foram lapidadas em um corpo primata (...) É difícil discordar com a mensagem central do de Waal: 'igualdade não necessita de similaridade. Pessoas podem ser diferentes e ainda merecerem exatamente os mesmos direitos e oportunidades'".
O autor de Diferentes explica como realiza seu trabalho, de extrapolar o comportamento de bonobos e chimpanzés para humanos, e vice-versa.
"É uma triangulação entre as três espécies. Apesar de nossas maiores capacidades intelectuais, não somos tão diferentes assim desses nossos parentes mais próximos, principalmente no que diz respeito à psicologia."
Sobre as críticas, afirma que "às vezes o público também extrapola demais o que falo".
Ele exemplifica, então, pela forma como vê algumas pessoas notarem suas pesquisas com chimpanzés e bonobos, em particular as nas quais descreve como os grupos da primeira espécie são patriarcais e violentos, enquanto os da segunda são matriarcais e pacíficos.
Dessa questão, De Waal pontua: "Alguns se queixam dos meus relatos dos chimpanzés, que são agressivos e patriarcais, e aí falam de sexismo. Outros não gostam quando compartilho as observações sobre os bonobos, entre os quais as fêmeas lideram. Quero que entendam que o meu trabalho é observar e relatar. Não julgar os animais".
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