"Capitão, eu preferiria que o senhor não falasse assim comigo."
Optar por confrontar seu comandante sendo um recruta iniciante nunca é uma decisão simples. Ainda mais quando você é o "único judeu" no Exército alemão, trabalhando ao lado de soldados que lutaram sob o comando dos nazistas na Segunda Guerra Mundial.
Embora décadas tenham se passado desde que Michael Fürst ouviu comentários antissemitas em serviço, a dor ainda é fresca em sua memória, conforme contou ao programa de rádio Heart and Soul do Serviço Mundial da BBC.
“Eu nunca tinha ouvido nada assim antes, nunca!”, ele disse.
Hoje com 76 anos, Michael é advogado e presidente da Associação das Comunidades Judaicas da Baixa Saxônia. Seu escritório é repleto de livros, medalhas e fotografias.
Michael se alistou nas forças armadas alemãs - a Bundeswehr - em 1966. Ele acredita ter sido o primeiro judeu a fazê-lo depois da Segunda Guerra Mundial.
Na época, qualquer pessoa na Alemanha Ocidental cuja família tivesse sido perseguida pelos nazistas estava isenta do serviço militar.
Dois dos avós de Michael morreram nos campos de concentração, mas Michael foi criado com um sentimento de orgulho por sua identidade - tanto como alemão quanto como judeu.
Unir-se ao Exército era algo que todos os seus amigos fizeram ao sair da escola - e Michael não via razão para não fazer o mesmo.
“Eu tinha 19 anos, era muito ativo e não sabia o que fazer da vida”, ele disse.
“Portanto, só havia uma escolha: eu iria para o Exército como todos os outros.”
Outros judeus fora do círculo mais próximo de Michael discordaram da escolha. “Eles me chamavam de 'o idiota de Hanover'”, disse.
“Um 'garoto estúpido'. Amigos nos EUA, por exemplo, me disseram: 'Como você pode ir para o Exército? Como você pode viver na Alemanha?'"
"Decidir se você era mais alemão ou mais judeu era muito importante na época. Mas eu decidi ser alemão e judeu."
Durante seus dois anos na Bundeswehr, Michael diz não ter sofrido qualquer gesto de antissemitismo, exceto pelas observações feitas em uma única ocasião pelo seu comandante.
Claramente perturbado com os comentários, Michael marcou um encontro com seu capitão no dia seguinte para falar sobre o assunto e pedir para ser transferido.
“Que bom que você veio me ver, Fürst”, disse o capitão.
"Eu queria falar com você. Sou antissemita. Meus pais foram enviados durante a época nazista para o leste da Alemanha para construir uma nova vida lá. E todos os problemas que tivemos naquele período vieram dos judeus", disse.
Michael lembra, com um sorriso irônico, da tentativa do capitão de suavizar os comentários.
"Mas não tenho problemas contigo, Fürst. Podemos ser bons amigos".
“Qualquer pessoa que falasse assim hoje seria imediatamente expulsa do serviço militar”, diz Michael. “Relatei isso ao sargento-chefe, que perguntou a ele: 'Isso é verdade?' O capitão confirmou, os olhos do sargento se arregalaram e seu rosto empalideceu. No dia seguinte, fui transferido", diz.
Michael se lembra de ter servido ao lado de soldados que ainda exibiam com orgulho as suas medalhas de guerra, incluindo aquelas com a infame suástica. Hoje, o uso de tais símbolos é proibido, exceto em alguns contextos especiais, e é sujeito a punição com pena de prisão.
“Esses soldados diziam que lutaram pela Alemanha, que ganharam essas medalhas e não queriam escondê-las”, ele diz.
"Eu não tive nenhum problema com eles, e eles não tiveram nenhum problema comigo por ser judeu. Mas não falávamos sobre isso. Não era um momento de discutir antissemitismo. Isso veio mais tarde, muito mais tarde."
Michael Fürst e vários judeus da mesma idade abriram caminho para que outros se juntassem à Bundeswehr.
Esta nova geração também tem sido obrigada a defender sua escolha de carreira militar em público.
Anne, de 36 anos, se converteu ao judaísmo quando adolescente e frequentou uma escola secundária judaica na Alemanha que tinha fortes ligações com Israel. O sobrenome dela não pode ser publicado por regras sobre identificação de soldados em serviço.
Sua decisão de se tornar soldado aos 15 anos foi recebida com incredulidade por colegas e professores.
“Por que você quer estar com aqueles que mataram seis milhões de nós?”, perguntaram.
O diretor da escola sugeriu que ela trabalhasse para a Cruz Vermelha. “Eu disse que esse não era o meu caminho.”
Anne estava tão determinada a entrar no Exército alemão que pesquisou os princípios fundadores da Bundeswehr para estar preparada a responder a eventuais questionamentos sobre sua decisão.
“A Bundeswehr é uma força armada que existe para defender valores que partilhamos como sociedade – protegendo os direitos humanos e a Constituição, com base numa ordem livre e democrática”, diz ela.
"Quando você entende como esses valores foram violados pelos nazistas, você vê que as forças armadas deles foram construídas sobre uma base completamente diferente. Ainda bem que vivo em uma sociedade baseada nos princípios da Constituição alemã moderna e quero proteger isso."
Johannes, um técnico de 24 anos da Força Aérea Alemã, vai mais longe. “Há muitos cruzamentos entre os ensinamentos judaicos e os valores da Bundeswehr”, ele argumenta.
"Por exemplo, na ética judaica, todos têm direito à autodefesa. Defender os nossos valores, defender a Constituição alemã, isso é autodefesa. Então, para mim, ser judeu é muito compatível com ser soldado."
Hoje estima-se que existam cerca de 300 judeus no serviço militar alemão, muitos deles membros de famílias que vieram para a Alemanha após o desmembramento da União Soviética.
Há dois anos, militares judeus em serviço têm o mesmo acesso a cuidados pastorais religiosos que soldados cristãos.
A mudança é resultado de um acordo histórico, assinado em 2019, entre o Conselho Central dos Judeus da Alemanha e o Ministério da Defesa.
Dentro da Bundeswehr, existe agora uma capelania judaica com rabinos militares que atuam a favor dos militares judeus em serviço e que cuidam de suas necessidades religiosas e espirituais.
Os militares alemães tiveram capelães judeus no passado, mas a tradição desapareceu após a Primeira Guerra Mundial e só agora voltou à tona.
Os rabinos militares de hoje também oferecem aulas voluntárias a outros integrantes da Bundeswehr que queiram aprender sobre o judaísmo.
Zsolt Balla, um judeu nascido na Hungria, foi empossado como líder espiritual da capelania em 2021. Ele acredita que o momento da sua nomeação e da criação do rabinato militar reflete uma mudança nas atitudes alemãs em relação aos judeus - um símbolo, talvez, do acerto de contas da Alemanha com o seu terrível passado.
“Nasci na Hungria em 1979 e ainda me lembro do que significou crescer num país comunista na década de 1980”, explica ele.
“Não direi que a história foi exatamente reescrita, mas vi como as pessoas nunca conseguiram realmente confrontar os erros terríveis da Segunda Guerra Mundial e do Shoah (Holocausto) da mesma forma que a Alemanha", ele aponta.
"Talvez a razão pela qual foi feito o acordo entre as comunidades judaicas e o Ministério da Defesa alemão seja que agora atingimos um distanciamento histórico que nos permite não ficar paralisados pelo passado."
Fantasmas do passado, no entanto, ainda podem ser sentidos em muitos lugares e o antissemitismo não foi totalmente banido entre os militares alemães.
Nos últimos seis anos, referências nazistas foram encontradas em quartéis e, em 2020, foram descobertas redes privadas online onde soldados compartilhavam linguagem antissemita.
"Muitas vezes me perguntam sobre o antissemitismo", diz Zsolt Balla, com um sorriso cansado, "e minha resposta é que o que temos de compreender é que qualquer força armada - não apenas na Alemanha - onde as pessoas entram voluntariamente reúne pessoas do lado direito do espectro político. Por definição", ele diz.
“Mas para mim, desde que o sistema diga 'temos um problema e precisamos fazer algo a respeito', estou dentro”, diz ele.
"Meu trabalho é construir pontes. Criar uma capelania judaica é um desenvolvimento realmente positivo. Como judeus nas forças armadas, agora nós temos um endereço. Agora sabemos a quem recorrer se tivermos dúvidas sobre o judaísmo. Muitas pessoas na Bundeswehr nunca conheceram um judeu nas forças armadas. Mas agora eles podem dizer que sim. E isso é maravilhoso."
Fonte: correiobraziliense
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