Cerca de 155 mil pacientes renais crônicos, que fazem tratamento de diálise nas mais de 867 unidades pelo Brasil, estão hoje, dia 31 de agosto, o Dia D da Diálise, em luta pela garantia do tratamento que lhes garante a vida. A mobilização é uma iniciativa da Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT), que, desde 2018, chama a atenção para as dificuldades enfrentadas para melhorar a assistência aos pacientes renais crônicos. A maior preocupação hoje é com a sustentabilidade do sistema, trazendo desafios de gestão às clínicas que permanecem em funcionamento.
A o longo desses cinco anos, a crise se intensificou devido à defasagem da tabela Sistema Único de Saúde (SUS) e algumas unidades começaram a fechar as portas. Outras deixaram de atender pacientes encaminhados pelo SUS. Somente nos últimos seis anos, 42 clínicas não conseguiram se manter e foram à falência, sendo seis apenas em 2023. De acordo com os administradores, os repasses feitos pelo Governo Federal tornaram-se insuficientes diante dos aumentos de custos. Clínicas contratadas pelo SUS não conseguem ampliar o número de vagas no Brasil e algumas já fecharam diante do recebimento de um repasse defasado. Dívidas se acumulam.
Conforme a ABCDT, sem recursos, muitas clínicas deixaram de fazer investimentos. E, na atual conjuntura, podem vir a fechar. Estamos agora apelando para o Governo Federal, para Estados e Municípios em busca de auxílio financeiro. Os cofinanciamentos são necessários. Hoje, apenas os estados do Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Distrito Federal e Bahia complementam os custos da diálise. E os pacientes renais crônicos dependem da diálise para sobreviver. Quando os rins param de funcionar e filtrar o sangue, somente uma máquina é capaz de realizar essa tarefa. E todo paciente dialítico precisa da terapia ao menos por quatro horas, três vezes por semana, até que possa conseguir um transplante renal, se estiver apto.
A ABCDT destaca que, depois de imensa luta, conseguiu um reajuste de 10,3% do Ministério da Saúde. A tabela SUS estabelece os valores a serem pagos às clínicas. Mas, segundo a instituição, ainda é abaixo dos custos e não resolve as dificuldades.
"Usamos máquinas e insumos importados, cujos preços aumentaram muito nos últimos anos. O SUS pagará R$ 240 por diálise, contra um custo médio de R$ 302 por sessão. É um déficit de R$ 62. Com a grande defasagem no valor do reembolso, a maioria das prestadoras de serviço ao SUS precisou recorrer a empréstimos. Muitas clínicas estão endividadas e há um risco real de desassistência no setor", explica o nefrologista e presidente da Associação Brasileira de Centros de Diálise e Transplante (ABCDT), Yussif Ali Mere Júnior.
Outros desafios se impõem na nefrologia brasileira
Um estudo recente feito pela ABCDT chama a atenção para a diferença do crescimento de pacientes e procedimentos feitos no âmbito do SUS e na rede privada. Há 11 anos, o SUS atendia a cerca de 78 mil pacientes - que realizavam 12 milhões de procedimentos anuais e a rede privada tinha 7,3 mil pacientes, com 1,3 milhão de sessões de diálise por ano. De lá pra cá, houve crescimento de 33% no SUS, chegando a 17.5 milhões de procedimentos para quase 104 mil pacientes.
Já na rede privada o incremento foi de 108%, passando para cerca de 2 milhões de procedimentos em quase 15 mil pacientes até o ano de 2021. No ano de 2022 ainda não há o número de procedimentos realizados na rede particular e o percentual pode ser um pouco maior.
A hemodiálise pediátrica ambulatorial começou no SUS em 2014 em 54 cidades, com 133 pacientes e hoje apenas 44 continuam com o serviço. O número de pacientes cresceu em 40% e chegou a 187 em 2021, mas a modalidade seguiu sem reajuste desde 2014 – esse ano terá apenas 2,7% de reajuste. Há um desestímulo para o seu crescimento. Entre 2012 e 2021, 10 municípios deixaram de ofertar a modalidade pediátrica, sobrecarregando os municípios que permaneceram realizando o tratamento.
"O que nos resta pensar é que o futuro é incerto para os pacientes renais crônicos. É importante que a sociedade saiba que essa terapia substitui a função que o rim doente não consegue mais executar e, sem esse tratamento, o paciente renal vai a óbito. Podemos dizer que o Brasil vinha, até aqui, sendo um bom exemplo de prestação de serviço nefrológico. Há pacientes renais com mais de 30 anos em diálise desde que os rins pararam. E esses cidadãos, em sua maioria, são pessoas carentes que adquirem diabetes e hipertensão e depois perdem a função renal porque se alimentaram mal por muitos anos; muitas mal têm tempo e dinheiro para comprar e produzir alimento saudável em casa, muito menos para fazer atividade física. A saúde das pessoas mais pobres é cada dia mais crítica. E, quando adoecem, não tomam os remédios necessários. Vão piorando cada vez mais", alerta Yussif.
A doença renal crônica (DRC) é uma das principais causas de morte no Brasil, com 40 mil novos casos ao ano, de pessoas com alguma disfunção renal. Muitas nem sequer chegam a descobrir a doença a tempo de tratar e acabam falecendo.
"Para se ter uma ideia, países com bom padrão de atendimento têm cerca de mil pacientes em tratamento para cada milhão de habitantes. O Brasil tem aproximadamente 550 pacientes para cada milhão de habitantes. Não é que o Brasil tem menor prevalência da doença. Temos ausência de diagnósticos e muitos vão a óbito antes de descobrirem o problema renal, que muitas vezes é silencioso", finaliza.
Clínicas de diálise em dificuldades não conseguem abrir novas vagas e fazer novos investimentos e fila de pacientes sem atendimento continua. Augusto Saboia Neto é médico nefrologista e administra duas clínicas nos municípios de Quixadá e Iguatu, no Ceará. Para gerir o serviço faz planejamentos de longo prazo, ciente que seu cliente é um paciente portador de doença crônica e precisa do tratamento pelo menos três vezes na semana para viver. O volume de dívidas, no entanto, está se acumulando e para tentar reduzir os custos, com água e luz por exemplo, investiu num poço artesiano e na implantação de painéis fotovoltaicos nas clínicas.
Augusto Saboia Neto não sabe até quando conseguirá manter a clínica em funcionamento porque os custos aumentaram muito mais do que os repasses feitos pelo governo para manter a prestação do serviço aos pacientes do SUS: " "É o que dá pra fazer em termos de gestão, mas os recursos do SUS para custeio do tratamento não são suficientes", destaca o médico.
Augusto Saboia Neto não está sozinho nesta preocupação. Cerca de 42 clínicas de diálise em todo país já fecharam as portas por insolvência financeira, sendo 6 em 2023. "Os gestores destas clínicas, que ficam na maioria no Sul do país, transferiram equipamentos e instalações para instituições filantrópicas e hospitais públicos em troca da quitação das enormes dívidas adquiridas nos últimos anos para manter a operação até então. A situação é tão crítica, que os gestores temem que isso seja um efeito cascata irreversível. Novos investimentos já deixaram de ser feitos nas clínicas há tempos. O país precisa de mais vagas para pacientes renais, abrir mais clínicas em mais cidades, os serviços precisam ser mais bem pagos, e precisamos evoluir na qualidade da diálise feita no país. São muitos desafios no cenário da nefrologia", destaca o médico nefrologista Leonardo Barberes, vice-presidente da ABCDT.
Eduardo Daher tem uma clínica em Belém do Pará e a realidade da prestação de serviço não é diferente do Ceará. Outro estado, mais de 1.600km de distância, mas com as mesmas soluções que auxiliam na redução de gastos. O administrador também investiu no poço artesiano para dissolver os custos da gestão, mas sabe que o maior peso está nas contas fixas e que não podem ser substituídas, como insumos para a realização da diálise, mas tem resolvido alguns problemas, com a produção básica de solução e ampliando também, além do SUS, o atendimento para o convênio. O malabarismo é parte integrante desta rotina, que tenta com o apoio da tecnologia driblar os problemas, a burocracia e ganhar fôlego e mais tempo para sobreviver.
Ana Paula Carvalho é paciente renal, cadeirante, dependente da hemodiálise e três vezes por semana encara o transporte público para se deslocar à clínica onde faz o tratamento. Ela mora em Belford Roxo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Para evitar qualquer atraso, sai de casa com duas horas de antecedência. Às vezes, precisa contar com a sorte, já que nem sempre a acessibilidade do ônibus está em funcionamento. De carro o trajeto duraria apenas 10 minutos. Paulinha, como é conhecida, recebe um benefício assistencial do Governo Federal e retira pelo SUS a medicação que necessita, mas os suplementos vitamínicos recomendados ao tratamento não entram na gratuidade.
Já Eduardo Moura, mora em Maricá, no interior do Rio de Janeiro, mas para fazer diálise precisa se descolar para outro município: Itaboraí, distante quase 30km. Diferentemente de Paulinha, o trajeto é compartilhado, além do motorista, com mais quatro pessoas que estão no primeiro turno da clínica de diálise da cidade vizinha, e em muitos casos esse deslocamento e o tratamento consomem entre 06 e 10 horas do dia. Ele não sabe mensurar que fatores pesam mais na vida de quem depende do procedimento para viver, mas sabe que a maior dificuldade é não ter a prestação de serviço disponível na cidade em que mora. Ele acorda às quatro todo dia.
O benefício assistencial auxilia quem não pode trabalhar, mas os custos da suplementação alimentar pesam no orçamento. Sem contar o desgaste e o cansaço de quem viaja três vezes na semana em busca de um tratamento para ter, no mínimo, mais qualidade de vida.
E tem até paciente que preferiu renunciar ao serviço de transporte, em benefício da saúde mental. "Quem faz diálise quer sobreviver e quando você compartilha esse espaço no transporte, compartilha dramas, angústias e vivências, mas quando o trajeto termina você está destruído emocionalmente de ver como as pessoas enfrentam tantas dificuldades na vida, sobretudo quando adoece", revela Karyl da Silva, também paciente renal.
Karyl conseguiu um trabalho e sua jornada começa cedo, mas precisa encerrar às 13h para dar tempo de pegar o terceiro e último turno na clínica de diálise. Ele usa o vale social para pegar o transporte público. Uma jornada que inicia às 15h e encerra às 23h30, quando retorna para casa.
Cada um dos personagens tem uma dificuldade que para um olhar menos atento parece individual, mas não é: o desafio de cada um deles é sobreviver. Cada uma dessas histórias mostra a dificuldade que os pacientes renais enfrentam para ter acesso ao tratamento que salva suas vidas, mas eles precisam de mais apoio para viver com maior qualidade de vida. Porque as vidas importam.
Com a reivindicação de um tratamento de qualidade e acesso para todos os renais crônicos, a Associação convoca clínicas, profissionais da área, pacientes e familiares para aderirem à campanha "Vidas Importam - A diálise não pdoe parar", #adialisenaopodeparar.
Peças de divulgação com apoio à causa, curiosidades e depoimentos de pacientes estão sendo divulgados no site. O ‘Dia D’ da Diálise é feito pela Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT) com o apoio da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), a Associação Brasileira de Enfermagem em Nefrologia (SOBEN), a Federação Nacional de Associações de Pacientes Renais e Transplantados do Brasil (FENAPAR) e a Aliança Brasileira de Apoio à Saúde Renal (Abrasrenal).
Utilizamos cookies próprios e de terceiros para o correto funcionamento e visualização do site pelo utilizador, bem como para a recolha de estatísticas sobre a sua utilização.