A recente onda de golpes militares na África é um sinal de alerta para todo o mundo.
De 2020 para cá, os militares assumiram o poder em diversos países do continente africano: Mali, Guiné, Burkina Faso, Níger e, mais recentemente, no Gabão, país centro-africano rico em petróleo, no último dia 30 de agosto.
No Chade, após a morte do presidente em batalha contra os rebeldes em 2021, os militares ignoraram a Constituição e, simplesmente, transferiram o poder para seu filho.
Também em 2021, os militares do Sudão destituíram o primeiro-ministro – que eles próprios haviam indicado – e decidiram liderar o país de forma independente. E, em 2023, irromperam conflitos entre dois grupos rivais da junta militar, causando milhares de vítimas.
Diversos outros países africanos presenciaram tentativas de golpe fracassadas (Gâmbia, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe). Em Serra Leoa, houve uma conspiração militar que não teve sucesso.
Em algumas nações, as juntas militares anunciaram que irão entregar o poder para governos eleitos, mas apenas depois de um período de transição, que deve durar vários anos. E nada garante que esse período não seja ampliado com o pretexto de combater ataques jihadistas, como no Mali ou em Burkina Faso, ou para possibilitar as transformações que as juntas militares considerarem necessárias.
Cada vez mais autoridades influentes do setor militar estão decidindo que podem moldar o futuro dos seus próprios países, em conjunto com grupos de apoiadores.
Na história da África, especialmente na maioria dos países de fala francesa do continente, não é rara a ocorrência de golpes de Estado.
Mas, nos últimos três anos, sua incidência aumentou significativamente, em comparação com o período entre 2000 e 2020, marcado pela predominância de governos democraticamente eleitos e altas taxas de crescimento econômico na maioria dos países africanos.
Foi nessa época que ocorreu a formação da União Africana, que trouxe uma onda de previsões otimistas sobre o futuro do continente.
Mas a pandemia de covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia trouxeram fortes consequências sociais. A inflação elevou os preços dos alimentos e dos combustíveis, exacerbando os problemas econômicos e as contradições políticas já existentes nos países africanos.
No Mali, Burkina Faso e no Níger, por exemplo, ocorreu a ativação de grupos jihadistas, que fizeram com que o oeste africano passasse a ser, desde 2012, uma das regiões mais voláteis do planeta. Já na Guiné e no Gabão, houve acusações de fraude e autoritarismo por parte dos presidentes eleitos.
Um fator significativo na maioria dos países africanos permanece sendo a explosão populacional. O número de jovens cresce constantemente e não há empregos suficientes. Com isso, o apoio aos governos eleitos não foi suficiente durante os golpes de Estado, enquanto as praças centrais das cidades ficavam repletas de jovens insatisfeitos, em apoio aos militares.
Os responsáveis pelos golpes militares usaram os sentimentos antiocidentais, especialmente antifranceses, ao máximo possível.
Quase todos os países que sofreram golpes de Estado são antigas colônias francesas. Nelas, a França exerceu grande e duradoura influência dentro do conceito “Françafrique”, ou “África francesa” – um sistema de fortes laços políticos e econômicos com influência sobre as políticas doméstica e externa dos países africanos.
Durante a Guerra Fria, a França apoiou a troca de poder em alguns países africanos. Mas, mesmo mais recentemente, presidentes franceses – em especial, Nicolas Sarkozy, que exerceu a presidência entre 2007 e 2012 – foram acusados de interferir nos assuntos internos de algumas nações africanas, especialmente com a participação ativa da França na guerra na Líbia contra Muammar Khadafi, em 2011.
Nos últimos anos, a França vem tentando construir uma nova imagem entre os países africanos, mas existem acusações generalizadas da prática de “dois pesos, duas medidas”.
O presidente Emmanuel Macron, por exemplo, condenou os golpes de Estado no Mali e no Níger, cujos militares tentaram romper relações com a França. Mas o mandatário francês se manteve fiel ao líder militar do Chade, Mahamat Déby, que busca manter relações com Paris.
As juntas militares do Mali e de Burkina Faso começaram ativamente a estabelecer relações com opositores do Ocidente, principalmente com a Rússia. E a junta de Burkina Faso, liderada pelo capitão Ibrahim Traoré, também anunciou seu desejo de estabelecer relações próximas com a China, o Irã, a Coreia do Norte e a Venezuela.
Os apoiadores dos militares usam a França e outros países do Ocidente como bode expiatório. Eles os acusam de opor-se às mudanças e de causar todos os problemas.
O golpe de julho no Níger – um país rico em urânio e petróleo do oeste da África – foi o teste decisivo da reação do Ocidente e dos países democráticos do continente africano.
A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS, na sigla em inglês), liderada pela Nigéria, publicou um ultimato para a junta militar do Níger, exigindo a devolução do poder ao presidente eleito Mohamed Bazoum e ameaçando enviar um contingente militar de unificação para o país.
O prazo do ultimato já venceu há tempos e a ameaça de intervenção militar não se concretizou. Com isso, a única forma de combater o regime militar permanece sendo a imposição de sanções econômicas. E o não cumprimento das veementes ameaças serviu para convencer os ambiciosos militares de que a instauração de ditaduras na região não encontraria muita resistência.
Na verdade, a junta militar nigerina estabeleceu acordos de assistência mútua com os militares de Burkina Faso e do Mali, permitindo que eles enviassem tropas para o seu território no caso de intervenção da ECOWAS. E os governantes militares do Níger agora exigem que a França retire suas tropas (são 1500 militares franceses no país) e o Embaixador francês no país africano.
Até o momento, Paris ignorou as exigências por considerar que a junta militar não é um governo legítimo.
A tensão e a incerteza que envolvem o Níger fizeram com que as piores previsões, de que os sucessivos golpes militares causariam o colapso dos regimes democráticos na África, como efeito dominó, parcialmente se concretizassem.
É claro que, em alguns países africanos, os militares nunca estiveram no poder – como no Senegal, Tanzânia, Quênia e vários outros. É difícil imaginar que ocorram golpes militares nesses países.
Mas, em muitos outros, oficiais ambiciosos podem não resistir à tentação de tomar o poder, especialmente nos países de fala francesa, com suas instituições políticas frágeis e seu histórico de golpes de Estado no passado.
O mais recente golpe de Estado no Gabão também pode ser considerado um “golpe palaciano”. Afinal, o “Comitê de Transição e Restauração das Instituições” criado pelos militares foi chefiado pelo primo do presidente deposto Ali Bongo – o comandante da Guarda Republicana, general Brice Cloter Oligi Ngema.
Ngema não surgiu por acaso. Ele foi auxiliar do pai do líder deposto, Omar Bongo (1935-2009), que foi presidente do país por 42 anos.
Após a morte de Bongo, Ngema foi preterido pelo filho por algum tempo e enviado para “exílio diplomático”, como adido militar. Mas retornou ao país, em um alto cargo, em 2019.
Não surpreende ver as multidões comemorando a retirada do presidente do poder. Afinal, a dinastia Bongo governou o Gabão por 56 anos.
A oposição acusou várias vezes o então presidente de fraude eleitoral e herança de poder. Mas, como ocorre com outras juntas militares, é provável que o Gabão também tenha um governo de transição que irá retardar a realização das próximas eleições ao máximo possível.
E, se as potências ocidentais exigirem o retorno do regime democrático, os militares podem começar a procurar novos parceiros internacionais.
A instauração de regimes militares em muitos países da África pode trazer consequências catastróficas para o continente.
As juntas militares podem usar fundos orçamentários e tomar empréstimos internacionais sem o devido controle da sociedade. Elas também podem silenciar jornalistas e sua oposição insatisfeita com mais facilidade.
Como as potências ocidentais e as instituições financeiras internacionais não estão dispostas a emprestar dinheiro para regimes considerados ilegítimos, os militares continuarão a buscar apoio militar e financeiro da Rússia e da China, em troca de acesso a recursos naturais e apoio à sua política externa.
O Mali, por exemplo, que antes se absteve de votar em resoluções sobre a integridade da Ucrânia, agora votou contra uma resolução similar, em fevereiro de 2023.
Mas o auxílio russo não ajudou o Mali, nem Burkina Faso, a resolver seus problemas internos de segurança. O ano de 2022, por exemplo, foi o mais mortal nesses países, em termos de vítimas de ataques jihadistas, segundo a ONG Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED, na sigla em inglês).
Com isso, os países africanos que caíram sob regime militar podem, no final das contas, ter sua economia e instituições políticas ainda mais enfraquecidas, além de uma série de problemas de segurança sem solução e um desejo ainda maior entre os jovens de sair do seu país.
Fonte: correiobraziliense
Utilizamos cookies próprios e de terceiros para o correto funcionamento e visualização do site pelo utilizador, bem como para a recolha de estatísticas sobre a sua utilização.