Pesquisadores do Instituto de Biomedicina e Saúde de Guangzhou, na China, criaram um órgão humanizado dentro de outro animal. Os rins cresceram dentro de embriões quiméricos de porcos, que continham uma combinação de células humanas e suínas. Esta é a primeira vez que cientistas conseguem cultivar um órgão sólido humanizado em outra espécie. Trabalhos anteriores geraram apenas tecidos humanos, como sangue ou músculo esquelético, usando uma abordagem semelhante.
Segundo o artigo, publicado, nesta quinta-feira (07/09), na revista Cell Stem Cell, a equipe optou por criar rins porque eles são um dos primeiros órgãos a se desenvolverem no corpo humano e um dos mais transplantados. "Nossa abordagem melhora a integração das células humanas nos tecidos receptores e nos permite cultivar órgãos humanos em porcos", enfatiza, em nota, Liangxue Lai, autor sênior do trabalho.
A pesquisa inédita envolveu uma série de etapas. Primeiro, a equipe criou um nicho dentro do embrião de porco para que células humanas não tivessem que competir com as do animal. Eles usaram a técnica de edição genética chamada CRISPR para modificar o embrião suíno unicelular, excluindo dois genes necessários para o desenvolvimento renal. Dessa forma, não surgiram rins de porcos nos embriões suínos.
Em seguida, os cientistas usaram células estaminais pluripotentes humanas, as que têm potencial de se desenvolverem em qualquer tipo de célula, para se transformarem em uma estrutura semelhante às primeiras células embrionárias humanas. Esse material foi, então, implantado em embriões de porcos — o que faz com que passem à condição de quimera. Por fim, o grupo transferiu 1.820 embriões quiméricos em 13 porcas.
Os pesquisadores coletaram cinco quimeras para análise: duas no 25º dia após o procedimento e três no 28º dia. Descobriram que os embriões quiméricos tinham rins considerados normais para o tempo de desenvolvimento, e os órgãos eram compostos por 50% a 60% de células humanas. No período avaliado, as estruturas estavam no estágio mesonefro, a segunda fase do desenvolvimento renal. Os órgãos formaram túbulos e botões de células que se tornariam ureteres conectando o rim à bexiga.
O objetivo a longo prazo é melhorar a tecnologia a fim de que ela seja usada no transplante de órgãos em humanos. No entanto, os cientistas reconhecem que o trabalho será complexo e poderá levar muitos anos. No trabalho atual, os rins tinham células vasculares derivadas de porco, e isso poderia causar rejeição do órgão caso ele fosse transplantado para uma pessoa nessas condições.
Elber Rocha, nefrologista e coordenador do programa de Transplantes do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, conta que uma das grandes dificuldades enfrentadas, atualmente, para a realização da cirurgia é a disponibilidade de órgãos. "Essa questão tem sido uma preocupação em todo o mundo devido à crescente demanda e à escassez de doações."
Para o especialista, os órgãos criados por cientistas poderão amenizar esse obstáculo. "No momento, a utilização de órgãos humanizados, como citado nesse artigo, ocorre de forma apenas experimental. A expectativa é de que, em algum momento, essa estratégia possa ser empregada de forma mais abrangente."
Coautor do ensaio, Miguel Angel Esteban enfatiza a importância das etapas já concluídas. "Antes de chegarmos a esse estado tardio de produção de órgãos que podem estar na prateleira para a prática clínica, esse método fornece uma janela para estudar o desenvolvimento humano. Você pode rastrear as células humanas que está injetando e manipulá-las para estudar doenças e como as linhagens celulares são formadas", indica.
Gustavo Guilherme Arimatea, mestre em bioética e nefrologista do Hospital Universitário de Brasília (HUB), conta que há grandes preocupações quanto ao uso de técnicas de quimerismo. "Existe a hipótese de que possam surgir tecidos neurológicos ou reprodutivos humanos em quimeras, o que, supostamente, permitiria o desenvolvimento de uma consciência humana em um ser de aparência suína, por exemplo, ou até mesmo a possibilidade de que essa quimera gerasse um feto humano", diz.
Há ainda, segundo o especialista, dúvidas quanto ao status moral de uma quimera animal-humano. "Humanos e animais recebem tratamentos diferentes do ponto de vista das prerrogativas éticas e legais. Como deveria ser tratado um ser com características tanto humanas quanto animais? É uma reflexão importante, mas ainda não há uma resposta amplamente aceita para essa pergunta."
Os pesquisadores do instituto chinês relatam que avaliaram se as células humanas estavam presentes em outros tecidos nos embriões quiméricos, o que poderia gerar problemas éticos. "Vimos poucas células neurais humanas no cérebro e na medula espinhal e nenhuma célula humana na crista genital, o que indica que as células-tronco pluripotentes humanas não se diferenciaram em germinativas", afirmam, em nota.
"A escassez de órgãos para transplante impacta o mundo inteiro, sendo que o Brasil tem, hoje, o maior sistema público de transplante. Diferentemente de criar órgãos humanos em animais, já aconteceram alguns procedimentos, ainda de forma experimental e controlada, de implante de órgãos — coração e rins — suínos em humanos. Essas cirurgias foram realizadas em pacientes com morte encefálica e têm se mostrado uma possibilidade de investigação. O Brasil está na vanguarda quando o assunto é esse, já com pesquisas muito promissoras. Há uma unidade de laboratório especializado para a modificação genética em porcos na Universidade de São Paulo, e está em construção outra unidade, de maior escala, no Instituto de Pesquisas Tecnológicas. A produção de animais humanizados, conhecidos como quiméricos, também poderá ser em escala industrial. Porém, está mais distante da realidade."
Giuseppe Cesare Gatto, nefrologista do Hospital Universitário de Brasília
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