23 de Novembro de 2024

Sambaquis: as descobertas sobre as monumentais construções de 8 mil anos no litoral do Brasil


Por sete milênios, a costa litorânea do que viria a ser conhecido como Brasil foi habitada pelos sambaquieiros.

Esses povos construíram os sambaquis, monumentos de até 40 metros de altura feitos a partir de conchas, ossos, areia e terra, onde até hoje é possível encontrar restos humanos.

Mas a história desses ancestrais é cercada de mistérios. De onde eles vieram? E por que sumiram ou foram substituídos por tupis, jês e outros povos indígenas que habitavam o litoral quando as naus Pedro Álvares Cabral chegaram ao país em 1500?

Um estudo recém-publicado no periódico Nature Ecology & Evolution fornece algumas respostas para essas perguntas.

Uma equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e de uma série de outras instituições nacionais e internacionais fez o sequenciamento genético dos fósseis de 34 indivíduos que viveram em quatro diferentes regiões do país num passado longínquo — um deles tem 10 mil anos de idade.

Os resultados mostram, por exemplo, que os povos sambaquieiros eram heterogêneos — e o contato deles com outras populações do interior foi mais complexo do que se pensava.

O arqueólogo André Strauss, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e um dos autores do trabalho, explica que os sambaquis são “grandes montes de conchas que estão dispersos pela costa brasileira, especialmente no Sul e no Sudeste”.

“Muitos deles têm proporções monumentais, de 30 a 40 metros de altura”, caracteriza ele.

“Eles foram construídos pelas civilizações que ocuparam o litoral Atlântico entre 8 mil e 2 mil anos atrás.”

Acredita-se que a subsistência dessas pessoas estava baseada numa economia mista, que combinava o consumo de peixes, frutos do mar e plantas. Também é possível que eles caçassem alguns animais terrestres e praticassem horticultura.

“Os sambaquis são produto da deposição planejada e de longo prazo de conchas, restos de peixes, plantas, artefatos, restos de combustão e sedimentos locais, e foram utilizados como marcadores territoriais, moradias, cemitérios e/ou locais cerimoniais”, resume o artigo da Nature.

Alguns deles, inclusive, trazem centenas ou até milhares de indivíduos enterrados.

O sambaqui Capelinha, por exemplo, foi identificado à beira de um rio no Vale do Ribeira, em São Paulo, e tem 10,4 mil anos. Mas há outros monumentos do tipo que são mais recentes, com cerca de 1,3 mil anos.

Para fazer a análise, os 34 indivíduos foram divididos em quatro grandes grupos, segundo a localização geográfica: a Baixa Amazônia (nas proximidades da Ilha de Marajó, no Pará), o Nordeste, a região de Lagoa Santa (em Minas Gerais) e a Costa Atlântica Sudeste/Sul, que concentra a maioria dos sambaquis.

Lagoa Santa, aliás, é a terra de Luzia, o fóssil humano mais antigo já encontrado na América do Sul, com cerca de 13 mil anos.

Vale destacar aqui que alguns dos 34 indivíduos estavam relacionados aos sambaquis, mas outros são mais antigos ou mais recentes — e ajudaram a fazer comparações entre os genes para entender as relações entre os diferentes povos ao longo da história.

A partir da análise genética dos fósseis, os cientistas esperavam encontrar pistas sobre a origem dos sambaquieiros.

“O estudo da história genética das populações da costa leste da América do Sul revelou que uma cultura temporalmente e geograficamente tão gigantesca quanto a associada aos sambaquis não foi praticada por um único povo”, resume o paleogeneticista Cosimo Posth, da Universidade de Tübingen, na Alemanha, e um dos autores do artigo.

Na própria conclusão da pesquisa, os cientistas destacam essa heterogeneidade: entre sambaquieiros do Sul e do Sudeste da costa brasileira, há uma diferença genética entre os indivíduos analisados. E isso contraria o que é observado nos registros arqueológicos, que destacam similaridades entre esses grupos.

“É importante mostrar que culturas e genes nem sempre andam juntos. Combinar arqueologia e pesquisa genética pode nos dar um cenário mais preciso de como eram esses indivíduos que habitaram a região costeira”, complementa Posth.

Outra descoberta importante: os povos que moravam na costa brasileira há milhares de anos descendem dos mesmos ancestrais que vieram para as Américas cerca de 16 mil anos atrás.

Esses indivíduos que chegaram ao continente a partir da Beríngia (uma ponte terrestre que se formou entre Ásia e América do Norte por causa da glaciação) e deram origem a todas as populações indígenas, como os próprios tupi.

Os resultados da pesquisa recente reservaram ainda outras surpresas.

“Um aspecto importante que observamos é o fato de o povo de Luzia [em Lagoa Santa] não ter desaparecido há 9 mil anos, como se imaginava. Para nossa surpresa, encontramos evidências em alguns sambaquis da sobrevivência, ainda que parcial, daqueles grupos que foram os primeiros brasileiros”, chama a atenção Strauss.

“Essa permanência dos grupos relacionados à Luzia até 2 mil anos atrás era algo completamente inesperado que nosso trabalho acabou encontrando.”

A geneticista Tábita Hünemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, conta que um dos objetivos do estudo era detalhar melhor quem eram essas pessoas que habitavam a costa brasileira antes da chegada dos tupis e por que elas desapareceram.

“E nós confirmamos que eles não eram uma população isolada do resto do continente. De alguma maneira, eles interagiam com os povos que viviam no interior”, destaca a especialista, que também assina o artigo.

Strauss aponta que a pesquisa também baixou as expectativas sobre o tamanho desses povos ancestrais.

“Antes, achávamos que os sambaquieiros eram extremamente densos e populosos do ponto de vista demográfico, mas tudo indica que a realidade não era bem assim.”

“Há 2 ou 3 mil anos, essas populações tiveram números reduzidos, e nos perguntamos o que será que aconteceu para explicar esse fenômeno”, diz o arqueólogo.

Hünemeier acrescenta que a chegada dos europeus a partir de 1500 também representa uma enorme barreira para conhecer mais sobre esse passado remoto da América do Sul.

“Precisamos ter em mente que, a partir da colonização europeia, a população local foi reduzida em 98%. Com isso, muitas linhagens e variantes genéticas foram perdidas”, calcula ela.

Para Strauss, ainda é necessário entender melhor a origem e o fim dos sambaquis.

“Essas construções surgiram e esses indivíduos viraram os reis da costa. De repente, há 2 mil anos, eles desapareceram. O que aconteceu? Uma calamidade climática? Uma implosão social interna?”, questiona ele.

Vale destacar aqui que, mesmo com a redução das expectativas sobre a densidade populacional, os sambaquieiros continuam a ser considerados o maior fenômeno demográfico da América do Sul pré-colonial, atrás apenas das civilizações andinas.

O arqueólogo avalia que o trabalho recém-publicado apresenta algumas pistas.

“Nossos dados mostram que, há 2 mil anos, começam a aparecer nos sambaquis uma assinatura genética típica dos grupos ancestrais jê, que habitavam o interior da região Sul, e se deslocaram até o litoral. É possível que isso tenha impactado de alguma maneira a existência dos sambaquieiros”, diz.

Mais ou menos nessa mesma época, as construções monumentais da costa começaram a apresentar uma inovação: a presença de cerâmicas. Até então, elas traziam conchas e ossos — e essa nova tecnologia veio justamente desses povos interioranos ancestrais.

Ou seja: em vez de uma substituição completa de sambaquieiros por outros povos, o que provavelmente ocorreu foi uma mudança gradual de práticas, com adoção de novas tecnologias, práticas e culturas.

Para Hünemeier, a aliança entre genética e arqueologia permite juntar as peças desse intrincado quebra-cabeças.

“Ainda existem muitos buracos e questões em aberto, mas aos poucos restauramos a história da chegada do ser humano na América do Sul.”

Fonte: correiobraziliense

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