Naquele 11 de setembro de 1973, José Tohá, ex-ministro da Defesa de Salvador Allende, despertou em algum momento entre 6h30 e 7h. O telefone vermelho, usado pelo presidente para se comunicar com os assessores, tocou na residência dos Tohá, um apartamento de primeiro andar no bairro de Las Condes, em Santiago do Chile. "José Tohá levantou da cama com um pulo e me disse: 'Vou lutar'. Eu lhe perguntei: 'Onde você vai uma hora dessas?'. Esperei que ele saísse do banho. José contou-me que havia algum problema com um grupo de militares no centro da capital", contou ao Correio Moy de Tohá, 87 anos, viúva de José. Em um primeiro momento, ela não se preocupou e imaginou que fosse algo passageiro. "Pensei que Pinochet fosse colocar ordem naquilo. Não foi o que ocorreu. Fui me vestir, quando o telefone tocou novamente", lembra. Do outro lado da linha, estava Salvador Allende.
"José tinha partido rumo ao Palácio de La Moneda. Allende me disse: 'Moy, vou lhe pedir um favor, mas enorme. Vá voando para Tomás Moro (a casa do presidente) e impeça a todo o custo que Hortensia (a primeira-dama) venha ao La Moneda", relatou Moy, que era muito amiga da esposa de Allende. De acordo com ela, Hortensia Bussi tinha ido ao palácio, em 29 de junho de 1973, durante o Tanquetazo — uma tentativa de golpe de Estado fracassada contra o governo socialista de Allende. "Salvador se deu conta que a situação seria mais complicada e quis impedir que Hortensia fosse até lá", disse. O Tanquetazo levou José a renunciar ao cargo de ministro da Defesa, o qual ocupava desde 28 de janeiro de 1972.
Por volta das 11h, Moy ligou a televisão. "Vi o bombardeio ao La Moneda e acompanhei o último discurso de Allende. Telefonei para Hortensia e lhe pedi, por favor, que não saísse de Tomás Moro. Ela me respondeu que acabara de entrar no carro", afirmou. Os golpistas tinham acabado de lançar a primeira bomba contra a residência do presidente. "Hortensia saiu às pressas e se dirigiu à casa de Felipe Herrera, então presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Comecei a me comunicar com o Ministério da Defesa, telefonando de minha casa. Eu conhecia todo o corpo de generais. Queria ter notícias sobre José. Mas, depois do bombardeio, perdeu-se a comunicação com La Moneda", acrescentou.
O general César Benavides atendeu à ligação e pediu que Moy ficasse tranquila, pois José tinha sido visto saindo da chancelaria, na parte de trás do palácio, e atravessou o pátio para entregar-se no Ministério da Defesa. Ele foi detido e levado à Escola Militar, também em Las Condes. "Voltei a me comunicar com Benavides. Ele me disse que as pessoas que tinham sido presas em La Moneda estariam soltas na manhã seguinte. Era mentira. Pude apenas mandar uma escova de dentes para José e outras coisas pequenas", comentou Moy.
Ela soube pela Cruz Vermelha Internacional que o marido estava detido na Ilha Dawson e sofria de desnutrição aguda. Enviado a um hospital de Punta Arenas, José foi torturado e o mandaram de volta à ilha. "Ele acabou torturado em mais três locais e entregaram o meu marido morto, depois que tive uma conversa longa com Pinochet em seu gabinete, em 15 de março de 1974", disse a viúva. "Eles me ligaram em casa e disseram que eu fosse ao Hospital Militar para retirar o cadáver."
Moy reforça que o golpe militar foi planejado nos Estados Unidos. "A CIA (Agência Central de Inteligência) reconheceu sua intervenção no Chile. Ela o fez à sombra de um personagem sinistro de Agustin Edwards, dono do jornal El Mercurio. Os civis da direita e empresários chilenos se uniram a alguns generais do Exército e conspiraram para o golpe", explicou.
A viúva de José Tohá se sente traída por Pinochet, com quem manteve uma relação próxima antes do golpe. "O Augusto Pinochet que conheci nada tinha a ver com o Augusto Pinochet que acabou sendo ditador. Era um homem tímido, inseguro, muito pouco culto e com uma linguagem um pouco limitada. Demonstrava muita lealdade ao presidente Allende, ao governo e ao meu marido, que era seu chefe direto. Pinochet era um ser bastante opaco e de muito pouca personalidade. Jamais imaginava que ele seria capaz de liderar um golpe. Pinochet não tinha capacidade para negociar nada." Depois da manifestação das esposas dos generais contra o então comandante-em-chefe, Carlos Prats, Pinochet assumiu o posto. Até derrubar Allende.
Quando a informação sobre os estertores dos preparativos para o golpe chegaram à região de Coquimbo, no centro-oeste do Chile, 460km a noroeste de Santiago, Marisa Matamala, então com 33 anos, sabia tudo o que precisaria fazer. Médica lotada na direção zonal de saúde da comuna de La Serena, era uma das principais dirigentes do Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR). Às 6h de 11 de setembro de 1973, ela escutou na rádio que os homens da Marinha estavam em Valparaíso planejando a tomada de poder.
"Eu me comuniquei com outro companheiro para que nos preparássemos para o que tínhamos previsto. Tive que ir ao meu trabalho, pois estava combinado que tomaríamos uma decisão, caso o golpe ocorresse", conta ao Correio. "Esperamos e começamos toda a coordenação com os trabalhadores dos bairros industriais. Todos queriam defender seus postos de trabalho. O que chegava de Santiago era a recomendação para mantermos a calma e não enfrentarmos os militares. Foi difícil saber como deveríamos atuar. O povo tinha o desejo de defender o governo de Allende. Escutar o último discurso de Allende foi um momento muito importante. Isso permitiu que as pessoas compreendessem a magnitude dos eventos."
Em seu pronunciamento, pouco antes de se matar, Allende afirmou: "Esta será, seguramente, a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês". "A Força Aérea bombardeou as torres da Rádio Portales e da Rádio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção, e serão elas o castigo moral para os que traíram o juramento que fizeram", disse o presidente. "Só tenho a dizer aos trabalhadores: não renunciarei! Pagarei com a vida pela fidelidade do povo." E encerrou assim: "Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Estou certo de que, pelo menos, haverá uma lição moral que punirá o crime, a covardia e a traição."
Marisa e os demais militares do MIR ficaram tocados com o discurso de Allende. Ela lembra que todas as pessoas queriam fazer o que sonhavam, defender o governo de Allende. "O bombardeio de La Moneda e o pronunciamento do presidente foram o que mais nos impressionou. Vivemos aquele dia com profunda emoção. Tínhamos de fazer o que era preciso e seguir adiante. Foi uma descoberta. Nos momentos de maior tensão, a emoção não nos permitia nem sequer chorar", confidencia. Com a imposição do toque de recolher, Marisa e os colegas de movimento tiveram que buscar refúgio nas chamadas "casas de segurança" — abrigos preparados para aquele dia. "Tivemos que abandonar nossos carros ou escondê-los em outros imóveis. Vieram os abraços de despedida com todas as pessoas com quem encontrávamos, pois não sabíamos o que iria passar, se estaríamos vivos ou mortos no dia seguinte. Cada abraço era como uma conspiração, como se disséssemos 'Aqui estamos e seguiremos lutando'. Sempre terminávamos com a frase 'Sorte, companheiro!"
Ela e dois outros diretores do MIR se refugiaram em um casa de segurança. "O mais impressionante foi a decisão do povo de lutar e defender seu governo. Foi algo incrível e grandioso. O bombardeio a La Moneda foi o ato mais bárbaro que poderíamos imaginar", desabafou Marisa. No mesmo dia do golpe, ela passou para a clandestinidade e assim permaneceu até 5 de fevereiro de 1975. "Fui presa e levada, com outro companheiro, à Villa Grimaldi, onde fiquei 15 dias sendo torturada. Vi companheiros morrerem. Dividi uma cela muito pequena com outra companheira, Carmen Díaz Darricarrere, em que uma precisava ficar deitada e outra sentada. Um dia, os militares tiraram Carmen dali e disseram-lhe que seria levada a Puerto Montt. Depois, soubemos que Puerto Montt era o código que usavam para designar prisioneiros e prisioneiras que seriam lançados ao mar", lembra. Marisa foi levada ao campo de detenção Cuatro Álamos, onde teve os ferimentos tratados, antes de ser levada aos campos de concentração de Tres Álamos e de Pirque. Em outubro de 1977, exilou-se na Suécia.
Em Villa Grimaldi, a médica foi submetida a torturas sistemáticas. "Eles me davam golpes em todo o corpo. Ficava amarrada a uma cadeira, que caía. Recebia chutes e era colocada em uma cama metálica, onde aplicavam choques elétricos em todo o corpo. Introduziam eletrodos em minha vagina, além das mãos deles. Tocavam uma música estridente, que, no meu caso, foi o Concierto de Aranjuez. Nunca soube o motivo. Golpeavam meus ouvidos, fazendo-os estalar", relatou. A tortura física se somava à psicológica. Por várias vezes, Marisa foi tirada da cela e levada um pátio, com dois outros prisioneiro, para fuzilamentos falsos. "Gritavam 'Disparem!'. "Tínhamos os olhos vendados o tempo todo. Aprendemos a olhar levantando muito a cabeça e enxergando para baixo. No caso dos fuzilamentos, colocavam em nós um capuz grande, davam a ordem de disparo e depois reagiam com gargalhadas."
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