O americano Bill Frelick não se impressiona facilmente: com 30 anos de experiência documentando agruras de refugiados em travessias perigosas pelo mundo, o representante da ONG Human Rights Watch achava já ter visto de tudo.
“Achei que já não ficaria mais chocado ou horrorizado, mas me enganei”, ele conta.
O motivo do choque são os relatos compilados por seus colegas na fronteira entre Arábia Saudita e Iêmen, onde imigrantes desarmados - incluindo crianças - dizem ter sido alvejados à queima-roupa pelas tropas sauditas, para impedir que entrassem no país.
A BBC News Brasil entrevistou Frelick, que é diretor da divisão de refugiados e direitos migratórios na HRW, e Julia Black, integrante do Projeto de Imigrantes Desaparecidos da Organização Internacional para Migrações (OIM) da ONU, para mapear essa e outras seis das fronteiras marítimas e terrestres consideradas hoje extremamente perigosas para estrangeiros que tentam migrar sem documentos.
São ambientes hostis, repletos de armadilhas naturais, muitas vezes controlados por traficantes humanos ou fortemente observados por guardas armados.
Mesmo com tantos riscos, muitos imigrantes enxergam essas travessias como a única forma de fugir de circunstâncias ainda piores de pobreza e violência em seus países de origem.
Confira abaixo as sete fronteiras consideradas mais perigosas.
Pouco monitorada por agências estrangeiras, a fronteira saudita-iemenita tem recebido um enorme fluxo de migrantes da Etiópia, um foco de pobreza e conflitos no Chifre da África.
A jornada desses etíopes começa em outras fronteiras perigosas, com Djibouti, Eritreia e Somália. Daí eles fazem uma arriscada travessia pelo Golfo de Áden e atravessam um país em guerra civil, o Iêmen.
E quando chegam na divisa com a Arábia Saudita muitas vezes são recebidos a explosivos e tiros à queima-roupa, disparados pelas forças de segurança, segundo um recente relatório da Human Rights Watch que entrevistou centenas de imigrantes e cruzou esses relatos com imagens de satélite e de celular.
A BBC também conseguiu contato com sobreviventes: um deles, Mustafa Soufia Mohammed, 21, contou ter perdido uma perna, ao levar um tiro tentando cruzar a fronteira, um ano atrás:
“Fomos alvejados enquanto caminhávamos. Imediatamente, deitamos no chão. Mas, quando tentei levantar e andar, parte da minha perna não estava mais lá”, relatou Mustafa.
“Estamos falando de imigrantes facilmente identificáveis, que não são combatentes (extremistas vindos do Iêmen), que não estavam armados e não representavam ameaça alguma”, aponta Bill Frelick, da HRW, à BBC News Brasil.
“E mesmo assim estão sendo alvejados com tanta violência, em um nível chocante mesmo para alguém já calejado como eu. (...) E o mais chocante é a sensação de impunidade, de que você pode simplesmente matar sem nenhuma preocupação em ser responsabilizado.”
O relatório da HRW identificou 28 episódios de matanças entre março de 2022 e junho deste ano, com “no mínimo 655 mortes, mas é provável que elas estejam na casa dos milhares”. Segundo Nadia Hardman, autora do relatório, “demonstramos factualmente que os abusos são amplos e sistemáticos e podem representar crime contra a humanidade”.
O governo da Arábia Saudita afirma que leva as acusações a sério, mas rejeita fortemente a alegação de que haja matanças sistemáticas e em larga escala.
Em referência a acusações semelhantes feitas por investigadores da ONU, o governo saudita afirmou que “as autoridades do reino não encontraram informações nem evidências que confirmem ou sustentem essas alegações”.
Uma selva inóspita, extremamente úmida, compacta e considerada quase intransponível. Trata-se da Passagem de Darién, na divisa entre Colômbia e Panamá, disputada por madeireiros ilegais, traficantes humanos e de drogas e guerrilheiros remanescentes do conflito colombiano. E onde moram tribos indígenas, que temem que essa disputa destrua suas terras ancestrais.
E por ali passaram em 2022, segundo o governo panamenho, 248 mil migrantes - principalmente de Venezuela e Haiti - para começar a perigosa jornada a pé por toda a América Central, com a expectativa de chegar aos Estados Unidos.
Corpos de 51 imigrantes foram identificados na selva em 2021, segundo a OIM, que estima que o número real de mortes deva ser muito maior - já que a maioria nunca é encontrada.
Por conectar a América do Sul e o Caribe às Américas Central e Norte, a Passagem de Darién é uma das que Bill Frelick, da HRW, chama de “funis” do mundo:
“Basta olhar o globo terrestre para identificar onde são as portas de entrada para os continentes - é onde haverá questões migratórias graves”, diz ele à BBC News Brasil.
Outro país de posição geográfica e migratória igualmente complexa, por fazer a conexão entre diferentes continentes, é a Turquia.
Um fluxo de migrantes que tem crescido em particular é o de afegãos, desde a tomada do governo do país pelo Talebã, em 2021. Eles atravessam uma perigosa rota na fronteira entre Irã e Turquia, com a intenção de chegar à Europa.
São horas de caminhada em um terreno montanhoso e árido, sob a mira de forças de segurança e de gangues de sequestradores.
Essas gangues prendem, abusam sexualmente e torturam afegãos - e registram em vídeo, para depois pedir resgate aos parentes das vítimas.
A BBC teve acesso a relatos e a vídeos de vítimas, muitas das quais ficam acorrentadas pelo pescoço e presas por cadeados no topo de uma montanha, implorando pela libertação.
"A quem estiver vendo este vídeo: fui sequestrado ontem, eles estão exigindo US$ 4 mil (cerca de R$ 19,5 mil) para cada um de nós. Eles nos espancam dia e noite sem parar", diz um homem, com o lábio ensanguentado e o rosto coberto de poeira.
Outro vídeo mostra um grupo de homens completamente nus, rastejando na neve enquanto alguém os chicoteia por trás.
Frelick diz que, em outras fronteiras da Turquia, distintos perigos também são enfrentados por quem tenta passar.
Na fronteira com a Bulgária, a Human Rights Watch documentou no ano passado que “autoridades búlgaras batem, roubam os pertences, despem e usam cães policiais para atacar afegãos e outros solicitantes de refúgio e migrantes, para depois empurrá-los de volta para a Turquia”.
Dez homens afirmaram que foram deixados descalços e só com a roupa de baixo sob temperaturas congelantes do inverno.
A Bulgária não respondeu ao relatório, mas em outras ocasiões negou dar tratamento desumano aos imigrantes.
Na Ásia, uma fronteira tem testemunhado a morte e a perseguição de centenas de milhares de pessoas do grupo étnico rohingya, que a ONU descreve como “a minoria mais perseguida do mundo”.
O governo de Mianmar é acusado de ter lançado em 2017 uma mortal campanha militar perto da fronteira com Bangladesh. As autoridades negam, mas foram documentadas dezenas de aldeias rohingyas incendiadas, milhares de assassinatos e estupros e o êxodo forçado de 700 mil pessoas dessa minoria, principalmente para Bangladesh e Tailândia.
A fuga era por terra, em áreas enlameadas e sujeitas a doenças infecciosas, ou por mar, em embarcações que muitas vezes não resistiam à viagem.
No total, a ONU estima que 1 milhão de rohingyas vivam hoje em Bangladesh, na região de Cox’s Bazar, onde fica o maior campo de refugiados do mundo.
Os conflitos na fronteira entre Mianmar e Bangladesh continuam.
O Mar Mediterrâneo, que faz a fronteira marítima entre a Europa e países da África e do Oriente Médio, é considerado a travessia marítima mais mortal do mundo. Já foi chamado pelo papa Francisco de “o maior cemitério da Europa”.
A OIM, a Organização Internacional de Migração da ONU, documentou 441 mortes ali só no primeiro trimestre de 2023. É o maior número desde 2017.
As travessias são feitas em embarcações improvisadas e superlotadas, frequentemente pilotadas por gangues e traficantes de pessoas, e sob resistência de muitas autoridades europeias.
Um dos episódios mais dramáticos aconteceu na costa da Grécia, onde um barco superlotado naufragou em junho.
Cerca de 600 pessoas ficaram desaparecidas no mar, a maioria vinda de Paquistão, Síria e Egito.
A Guarda Costeira grega é investigada não só por suposta omissão, mas sob suspeita de ter contribuído para a instabilidade do barco. As autoridades gregas negam - e dizem que a embarcação recusou ajuda antes de naufragar.
“A persistente crise humanitária no Mediterrâneo é intolerável. Com mais de 20 mil pessoas mortas nessa rota desde 2014, temo que essas mortes tenham sido banalizadas. Os Estados precisam responder”, declarou recentemente Antonio Vitorino, chefe da OIM.
E mesmo antes de chegar ao Mar Mediterrâneo, muitos migrantes africanos passam por duras jornadas pelo Saara, cruzando um deserto hostil e países instáveis.
Várias fronteiras ali são perigosas, de países como Mauritânia, Argélia e Mali.
Frelick, da Human Rights Watch, acha que é possível que o volume de mortes de migrantes nessa região seja semelhante ou até superior às registradas em travessias marítimas - mas não são documentadas.
E, entre essas fronteiras, as da Líbia se destacam pelos relatos particularmente assustadores.
“Fiz entrevistas muito tristes com pessoas que atravessaram a Líbia vindas da Somália e da Eritreia, passando pelo Saara, onde traficantes colocam gotas de gasolina na água para impedir as pessoas de se hidratarem”, afirma Frelick. “Daí eles prendem essas pessoas e pedem resgate para suas famílias. Quando não recebem o dinheiro, largam as pessoas para morrerem no deserto.”
A ONU fez recentemente uma investigação na fronteira líbia com o Sudão. E descobriu que migrantes pegos ali estavam sendo levados por criminosos para armazéns, onde passavam por sessões de tortura e abusos sexuais e eram deixados sem comida.
Os criminosos mandavam vídeos dessas pessoas para os parentes delas, com pedidos de resgate. As que não sobreviviam ao martírio eram enterradas em valas comuns no deserto.
A OIM considerou a divisa entre México e EUA “a rota migratória terrestre mais mortal do mundo” em 2022, ao documentar 686 mortes ou desaparecimentos ali ao longo de 12 meses.
“O número representa quase metade das 1,4 mil mortes e desaparecimentos de migrantes documentadas no continente americano em 2022, o ano mais letal desde que o Projeto de Migrantes Desaparecidos da OIM começou suas atividades, em 2014”, afirma relatório da entidade.
Os riscos são muitos: desde ficar à mercê da violência de gangues ou ser preso pelas autoridades, até levar picadas de cobra venenosa e padecer do calor ou do frio extremos.
A lista acima é de fronteiras onde uma grande quantidade de abusos, riscos e mortes foi identificada e documentada recentemente, mas ela não chega perto de contemplar todas as fronteiras e travessias perigosas usadas por imigrantes.
Frelick, da HRW, e Julia Black, da OIM, chamam a atenção também para:
Ao mesmo tempo, Black ressalta que, em meio aos horrores da guerra na Ucrânia, o acolhimento dado pelos países europeus aos refugiados ucranianos é uma história de sucesso.
“Todos os Estados europeus decretaram uma lei temporária de proteção que permite aos ucranianos cruzarem as fronteiras com segurança. E embora muitos milhões de pessoas tenham abandonado a Ucrânia, registramos cerca de uma dúzia de mortes”, afirma Black à BBC News Brasil.
“Se você comparar isso com quase qualquer outro movimento em massa de refugiados, especialmente de Síria, Iraque, Etiópia, a escala de mortes é incomparável”.
“A existência de formas legais para as pessoas se moverem, para pedirem refúgio e para chegarem onde querem chegar é algo que previne mortes e salva vidas”, prossegue Black. “Então quero enfatizar que a questão aqui não é que as pessoas estejam migrando, mas sim que elas não estão encontrando uma forma segura e legal de fazer isso.”
Questionada pela reportagem se era possível traçar um panorama global da situação dos migrantes, ela respondeu:
“É difícil ter certeza, porque não temos os dados sobre tantas rotas, não temos o quadro completo. Mas o cenário que temos não é bom. No ano passado, registramos um recorde de mortes nas Américas. Este ano caminha para ser o mais mortal de que se tem notícia no Mediterrâneo Central. Para mim, esses são alertas bastante sombrios.”
Fonte: correiobraziliense
Utilizamos cookies próprios e de terceiros para o correto funcionamento e visualização do site pelo utilizador, bem como para a recolha de estatísticas sobre a sua utilização.