À beira de uma floresta em chamas no nordeste da Grécia, moradores choravam e gritavam vendo as chamas descerem a encosta em direção às suas casas.
“Mande aviões agora, caso contrário o fogo virá para cá”, implorou um homem para o céu do crepúsculo.
Então, um após o outro, aviões apareceram em meio à fumaça no topo da colina, apagando o incêndio. Horas depois as chamas recomeçaram.
Durante semanas, a população de Lefkimi sentiu-se desamparada enquanto quase 1 mil km da floresta que fornecia seus meios de subsistência queimavam.
A floresta também é uma rota conhecida de migrantes que tentam entrar na Europa. Um grupo de corpos carbonizados foi encontrado amontoado na floresta, um punhado de pertences pessoais deixando pequenas pistas sobre quem poderiam ser.
As carcaças de um número incontável de animais estão espalhadas, e os bichos sobreviventes não têm para onde ir.
A comunidade foi instruída a sair dali por segurança, mas muitos recusaram.
“Apocalíptico” e “inimaginável” são as palavras que os gregos usaram para descrever o que aconteceu na região de Evros. O fogo começou em 19 de agosto, durou mais de duas semanas e tornou-se o maior incêndio florestal já registrado na Europa.
Entre a população, há raiva e dúvidas sobre as causas, a resposta e o que fazer agora - mas, fora da Grécia, há alertas de que incêndios florestais só irão aumentar e ser mais frequentes.
Ao lado de uma estrada de terra que serpenteia pela floresta de Dadia há uma placa queimada que diz: “A floresta é valiosa. Proteja-a." Ao redor, a terra está queimada e as árvores enegrecidas permanecem despojadas de suas folhas.
A fumaça gruda nas roupas e fica presa na garganta. Existem poucos sinais óbvios de vida nas áreas atingidas pelo fogo, além de insetos ocasionais lutando entre as cinzas ou o som de um pássaro cantando.
Na aldeia de Lefkimi, um pai abraça o filho adolescente, murmurando palavras reconfortantes. Uma mulher rega suas flores de costas para as chamas que se aproximam.
À medida que novos incêndios irrompem - estimulados por ventos rápidos e mutáveis - andorinhas fogem em revoadas, disparando através da fumaça. Aviões e helicópteros lançam água sobre a paisagem, criando uma névoa sobre chamas alaranjadas.
No chão, os bombeiros da Grécia e de toda a União Europeia dirigem-se em filas em direção às árvores em chamas, enquanto os caminhões o seguem.
Às vezes, quando o fogo é apagado, escavadeiras são trazidas para derrubar árvores, removendo qualquer coisa que possa entrar em combustão novamente.
Todos os bombeiros com quem a BBC conversou disseram que esse foi o incêndio florestal mais difícil com o qual eles já lidaram.
Os bombeiros têm dificuldade dar conta das muitas frentes que surgem à medida que as chamas são carregadas pelo vento e percorrem a vegetação densa. Tudo piora à noite, quando não há apoio aéreo.
Muitos aqui são voluntários. Numa clareira, encontramos um grupo de homens da cidade portuária de Tessalônica, a quatro horas de carro.
“O terreno está tão feio, tão violento, tão difícil”, diz Stelios Vairlis, de 53 anos, um experiente bombeiro voluntário motivado pelo seu “amor pela natureza” e por seus filhos.
Ele morou na região durante o serviço militar na década de 1980 e descreve a floresta como uma “jóia” da Grécia.
“É... Era uma floresta muito bonita”, diz ele emocionado.
A União Europeia (UE) lançou seu sistema de monitoramento no ano 2000, mas diz que dados de monitoramento mais antigos, desde os anos 1980, mostram que nenhum incêndio florestal foi comparável a esse.
Portugal sofreu um grave incêndio em 2017 que matou dezenas de pessoas, mas mesmo esse não foi tão grande nem tão violento quanto o da Grécia neste ano.
Especialistas da UE alertam para uma “tendência crescente de grandes incêndios” nos últimos anos, que deverá continuar e piorar.
O Comissário Europeu para a Gestão de Crises, Janez Lenarcic, disse que a área queimada na UE até agora este ano é mais de 40% maior do que a média dos últimos 17 anos.
A BBC acompanhou o controle do incêndio em Evros. Mas depois da tragédia, as comunidades foram deixadas com cicatrizes profundas e duradouras.
No estacionamento de um hospital na cidade de Alexandroupolis, contêineres frigoríficos guardam os corpos das pessoas mortas. Acredita-se que todos sejam migrantes e dois eram crianças – com idades entre 10 e 15 anos.
Dezoito corpos foram encontrados em 22 de agosto, irreconhecíveis. Alguns claramente se amontoaram enquanto as chamas vinham em sua direção.
“Talvez eles tenham entendido que não havia como escapar e essa foi a última tentativa desesperada de ficarem juntos, como um último momento de vida”, reflete o legista Pavlos Pavlidis.
Outros corpos foram encontrados nas proximidades. Pavlidis acredita que eles estavam tentando escapar.
Ele diz que foram coletadas amostras de DNA, mas os resultados ainda não saíram. Por enquanto, ainda não se sabe os nomes e nacionalidades das vítimas.
O legista tira de sua mesa um grande envelope de papel e coloca sobre ela quatro embalagens plásticas transparentes. Elas contêm os únicos itens sobreviventes do grupo: um anel de prata, um relógio, um telefone e uma bateria portátil.
Pavlidis espera que estes itens possam ser pistas das identidades das vítimas. Ele acredita que é provável que haja mais vítimas na floresta que não foram encontradas – migrantes que estavam tentando entrar no país.
Esta região, perto da fronteira com a Turquia, é uma rota comum de entrada na União Europeia. A polícia estima que cerca de 900 pessoas por dia atravessaram a fronteira em agosto.
Essa migração continua depois do incêndio. Vários grupos são parados pela polícia, incluindo uma mãe e dois filhos.
Um homem carregando uma mochila e caminhando por entre as árvores carbonizadas diz que veio do Marrocos. Outros membros do seu grupo foram levados pela polícia, explica, mas ele escapou e se escondeu na floresta em chamas durante três dias, observando os aviões no alto combatendo os incêndios.
Embora as causas do enorme incêndio florestal ainda não sejam conhecidas, a maioria das pessoas entrevistadas pela BBC em Evros acredita que os migrantes foram os responsáveis - talvez por tentarem cozinhar ou manterem-se aquecidos. É uma afirmação também feita pelo primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis.
Alguns sugerem que uma faísca inicial pode ter vindo de um raio.
Muitos acreditam que o incêndio não seria tão devastador se o governo tivesse dado uma resposta melhor.
Moradores de áreas como Lefkimi dizem que se sentem esquecidos. Ambientalistas afirmam que a floresta cresceu sem controle - aumentando a quantidade de vegetação que poderia queimar.
Na área donde os 18 corpos foram encontrados, uma luva médica azul jaz no solo devastado, único sinal de que ali foram encontrados cadáveres.
As carcaças de javalis e coelhos jazem nas cinzas, junto com cascos de tartaruga carbonizados e quebrados.
Os animais que sobreviveram ao desastre vivem agora num deserto de cinzas - que antes era um ecossistema próspero, composto em grande parte por pinheiros e carvalhos.
O Parque Nacional da Floresta Dadia-Lefkimi-Soufli era famoso pelas suas aves de rapina e abrigava três das quatro espécies de abutres da Europa: o abutre-preto, o grifo-eurasiático e o abutre-do-egito. Mas os silvicultores dizem que o principal local de nidificação foi completamente destruído.
Alguns estão otimistas de que os abutres continuarão a utilizar uma segunda área menor na floresta, onde ainda existem algumas árvores que podem sustentar ninhos, mas há outras dúvidas sobre o futuro do ecossistema.
“Temos que pensar no que aprendemos na escola com a pirâmide alimentar – as aves de rapina no topo, depois todos os níveis dos outros animais até às pequenas presas”, diz Dora Skartsi, que dirige a Sociedade para a Proteção da Biodiversidade da Trácia.
Essa pirâmide não pode funcionar “até que todas as espécies recolonizem as áreas queimadas”, mas ela teme que a mudança climática e as condições de seca prejudiquem a regeneração da floresta da qual todos dependem.
Dirigindo pelas vastas áreas afetadas pelo incêndio, é possível ver aves de rapina circulando no alto.
A ambientalista Elzbieta Kret, que veio da Polônia para cá há 16 anos, observa os pássaros com fascínio.
“Estou tentando entender se eles estão voando porque tudo continua normal ou se estão voando por aí dizendo ‘O que aconteceu aqui? O que aconteceu com nossos ninhos? Qual é o nosso futuro?’”, diz ela.
Com uma nota de otimismo, ela decide que a natureza é mais resiliente que as pessoas. “Acho que eles estão dizendo: OK, sobrevivi, vamos passar para a próxima página.”
Próximo a Lefkimi, o criador de cabras Kleanthis Raptis leva uma jovem cabra ferida para um local seguro. Ele diz que dezenas de seus animais morreram em poucas horas.
“Estou muito triste. O que vou fazer com isso agora?”, diz ele, segurando um sino retirado do pescoço de uma cabra morta.
Muitos dos que vivem nestas pequenas comunidades dependem da floresta para a sua subsistência – com a exploração madeireira, a caça e o pastoreio.
É a segunda vez que a pequena propriedade de Kleanthis pega fogo, mas o homem de 56 anos não se imagina vivendo em outro lugar porque para ele a floresta significa “saúde, oxigênio, trabalho, aventura e relaxamento”.
Paschalis Christodoulou, presidente da Associação de Apicultores de Evros Central, tem 120 colmeias de abelhas e correu para retirá-las de Evros quando o fogo começou.
Mas ele diz que era a hora errada para movê-las, e muitas das abelhas estavam do lado de fora quando ele transportou as colmeias para uma caminhonete, sendo picado enquanto trabalhava.
A área criada como habitat para abelhas foi completamente devastada.
Ele estima que metade das abelhas foram queimadas no fogo, mas está mais preocupado com a perda de plantas para a polinização dos insetos.
“O problema para nós é o dia seguinte. Precisamos do pólen. O que vai acontecer agora?”, diz Christodoulou. “Como pessoa, sou otimista, mas a lógica e a realidade dizem que precisaremos de pelo menos quatro a cinco anos para entender (a extensão do estrago).”
Janez Lenarcic afirma que as alterações climáticas estão acelerando a propagação, duração e intensidade dos incêndios florestais em todo o continente.
Em Evros também existe uma preocupação generalizada de que o verão quente e seco tenha ajudado a alimentar o incêndio. Vários moradores contam que rezam pedindo por chuva.
Para Lenarcic, da UE, isso mostra como se tornou muito mais difícil conter os incêndios - e que eles “se propagam e atingem cada vez mais a interface entre terras selvagens e áreas urbanas”.
Nos primeiros dias do incêndio em Evros, as chamas aproximaram-se de Alexandrópolis, obrigando o seu principal hospital a transferir os seus pacientes para uma balsa atracada no porto. Moradores de comunidades próximas correram para a cidade para escapar.
Os moradores de Kirki, a noroeste, foram levados de ônibus para um local seguro quando as chamas se aproximaram no final de agosto.
Dirigindo até lá agora, é preciso atravessar por quilômetros de paisagem enegrecida, onde as árvores se erguem esqueléticas em um tapete de cinzas.
“Veio de muito longe, mas numa noite queimou tudo”, diz Michalis, de 81 anos, que viveu na aldeia durante toda a sua vida.
Ao regressar no dia seguinte a ter fugido do incêndio, encontrou a sua casa ilesa, mas outros choraram ao verem as suas casas destruídas.
“É o mesmo para todos nós. Somos todos locais. Meu coração está em chamas”, diz ele.
Michalis aponta para a paisagem montanhosa queimada ao seu redor. Ele se lembra dos dias de infância brincando na floresta.
A comunidade encolheu à medida que ele envelheceu, mas ele espera que a floresta traga memórias semelhantes às pessoas no futuro.
“A nova geração viverá para ver esta floresta novamente. Mas eu sou muito velho. O dano está feito."
Nos arredores de Alexandroupolis, Vasilis Adamidis, de 28 anos, olha impotente para um olival queimado que foi passado de geração em geração em sua família.
Ele e o irmão deram os primeiros passos no bosque, e o avô cresceu com as árvores, depois de ajudar a plantá-las ainda criança.
“Ele costumava conversar com elas. Ele podia sentir o que a árvore precisava”, diz Vasilis.
Ele ainda não tem certeza de quantas das 3 mil oliveiras da família sobreviveram de alguma forma, mas andando pelo bosque a devastação é óbvia.
Quando o fogo se aproximou, Vasilis ligou para os bombeiros para ouvir que não havia pessoal para ajudar. As chamas logo chegaram à sua propriedade e ficou claro que tentar enfrentá-las sozinho seria fatal.
“Uma grande parte das nossas vidas é o olival, por isso quando ele começou a arder, um pedaço de nós também pegou fogo”, diz-me com lágrimas nos olhos.
“Só foi necessária uma noite. Nada mais. E toda essa vida, todo esse esforço acabou”, diz ele.
Os produtos de Vasilis - incluindo azeite de luxo - são vendidos em toda a Europa e ele fala com igual paixão sobre o cultivo do negócio e das azeitonas.
Grande parte da maquinaria derreteu no fogo e Vasilis estima que levará pelo menos 10 anos para voltar à “uma boa produção”, mas nunca mais será o que era antes.
Ele diz que a destruição em Evros deveria ser uma lição para a Europa e o mundo.
“Pode acontecer com qualquer um”, diz ele, enquanto acaricia seu cachorro Rocco, que se perdeu no incêndio e foi encontrado, dias depois, a quilômetros de distância do olival, com o pelo chamuscado e a pele em carne viva ao redor dos olhos e do nariz.
Tais catástrofes têm um impacto muito além das comunidades locais mais afetadas.
“As pessoas deveriam saber desde cedo que os produtos que comemos – os vegetais, a fruta, a carne – não vêm do mercado. Vem da natureza. De lugares como este. É importante para todos nós”, diz ele.
O avô de Vasilis está agora na casa dos 90 anos. A sua família não lhe contou que o bosque que ele ajudou a plantar desapareceu. “Seriam as últimas palavras que ele ouviria.”
*com informações e fotografia de Giorgos Moutafis e Daphne Tolis
Fonte: correiobraziliense
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