22 de Novembro de 2024

A busca pelos segredos do cemitério de estrangeiros de Niterói do século 19


Cimetière. Cemetery. Friedhof. Cementerio. Kirkegård. Cimitero. Cemitério. Marinheiros e viajantes franceses, ingleses, alemães, espanhóis, dinamarqueses, italianos e portugueses, quando desembarcavam no Rio de Janeiro cerca de 150 anos atrás, certamente não queriam ter um lugar assim como destino.

Mas, como comprova um estudo arqueológico que vem sendo feito por pesquisadores em Niterói, esta foi praticamente a única experiência em solo nacional reservada a centenas de estrangeiros, principalmente europeus, que aportaram no Brasil na segunda metade do século 19.

Curiosamente, chamado por um nome que nada tinha de estrangeiro: Jurujuba, emprestado da enseada onde o cemitério se localizava. A palavra é derivada da expressão tupi “ajuru juba”, que significa “papagaios amarelos”, como indígenas da região acabaram se referindo aos franceses que no século 18 chegaram ali — porque eram loiros e tagarelas.

Em 1º de janeiro de 1851, o então presidente da Junta de Higiene Pública, Francisco de Paula Cândido (1805-1864) mandou instalar no local um lazareto, com capacidade inicial para abrigar 30 pessoas. Lazareto é um local destinado a manter em quarentena pessoas com alguma doença contagiosa, ou alguma suspeita do tipo.

Era uma medida do Império, na gestão de d. Pedro 2º (1825-1891), para evitar que doenças como varíola, febre amarela, tifo e tuberculose se disseminassem pela região. Inaugurou-se o tal lazareto e, no caso da chegada de qualquer embarcação com sintomáticos no porto do Rio, o marinheiro ou viajante em questão era rapidamente levado para a quarentena.

“Mas o que foi criado naquelas redondezas como um lazareto, para acolher as pessoas que chegavam pelo mar com doenças infecciosas, em 1856 se transformou em hospital, o Hospital Marítimo Santa Isabel”, conta à BBC News Brasil o historiador Victor Andrade de Melo, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Melo é um dos pesquisadores que, contratados pelo Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), dedicam-se a estudar essa área.

Mas falávamos do cemitério. Eram tempos bastante precários para o tratamento de doenças infectocontagiosas, aquele século 19 sem antibióticos e outros medicamentos contemporâneos. Portanto, ir para o Hospital Marítimo significava, em boa parcela dos casos, ingressar num corredor da morte.

“Nesse lazareto, depois hospital, muitas pessoas vinham a falecer. Porque eram doenças infecciosas, epidemias, e não havia ainda grandes avanços na medicina para tratar. Como era muita gente, muitos estrangeiros marítimos que vinham no trânsito de mercadorias por meio naval para o Brasil, pessoas que chegavam sem família, era impensável levar o corpo de volta [ao país de origem]”, contextualiza Melo.

Niterói inaugurou apenas em 1856 seu primeiro cemitério público, o do Maruí. “Do outro lado da cidade”, situa o historiador. “Antes, sempre que morria alguém de doença infecciosa no lazareto, era preciso atravessar a baía de Guanabara para enterrar no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Isso começou a se tornar difícil, um incômodo para a população, que achava que era um risco ter corpos com doenças infecciosas transportados pela baía.”

De acordo com o historiador e arqueólogo André Leonardo Chevitarese, professor da UFRJ que foi assumiu a coordenação desse projeto de pesquisa do IAB, estima-se que dos anos 1850 até o fim da década de 1870 tenham sido de 1 mil a 2 mil estrangeiros mortos após internações nesse lazareto ou no hospital que o sucedeu.

“Estamos falando de viajantes que chegaram aqui no Rio não necessariamente porque jogaram suas âncoras aqui. Eles poderiam estar vindo para ficar ou estar de passagem, indo para outro destino”, diz Chevitarese à BBC News Brasil.

Em 1858, decidiu-se inaugurar um cemitério ao lado do Hospital Marítimo Santa Isabel. Nascia o Cemitério de Jurujuba, com a vocação de ser o último lar de marinheiros e viajantes estrangeiros. “Na maioria dos casos, europeus, principalmente viajantes ingleses e franceses, mas também alemães, suecos, poloneses, italianos, portugueses, espanhóis”, conta o historiador. “Eram doentes de sarampo, de tifo… Fosse a doença que fosse, a inspetoria de saúde mandava o barco vir para cá.”

É esse o terreno, precisamente, que os pesquisadores estão revirando. E além de ossadas, estão encontrando outros elementos — ou a ausência deles — que ajudam a contar a história do local.

Exatamente onde era o lazareto, hoje fica uma escola, o Colégio Estadual Matemático Joaquim Gomes de Sousa. Quando o Hospital Santa Isabel fechou as portas, no início do século 20, no endereço passou a funcionar um abrigo para crianças que precisavam se isolar de familiares com tuberculose. Mais tarde, o local foi transformado em escola de enfermagem. Depois, um educandário para menores carentes.

Ao longo de todo esse tempo, o apelido ficou: Casa da Princesa. A referência é à Isabel (1846-1921), a filha mais velha de d. Pedro 2º. Até porque o antigo hospital se chamava Santa Isabel também na ideia de reverenciá-la.

“Essas instalações foram reformadas [ao longo do tempo] mas estão lá no entorno do cemitério”, pontua Melo.

O cemitério em si teve outra trajetória. “Ele funcionou até 1898, mas desde os anos 1880 já se tinha noção de que não dava conta. O terreno não era muito adequado para sepultamentos, era muito beira-mar, o mar vivia invadindo, inundando a região”, relata o historiador.

Em 1898 foi inaugurado um outro cemitério, o de São Francisco Xavier, que existe até hoje. “E o de Jurujuba entrou em processo de desativamento, foi sendo desativado com o decorrer do tempo”, acrescenta. “Algumas estruturas foram transferidas para o novo e foi feito um chamamento público para que as famílias recolhessem os restos mortais [de seus parentes] e levassem para o de São Francisco Xavier.”

Evidentemente que ninguém se preocupou com os estrangeiros ali sepultados, a um oceano de distância de seus familiares.

“A partir de 1910 a gente já não ouve falar desse cemitério. Quem recolheu os corpos recolheu, quem não recolheu ficou por ali. E tudo foi abandonado, até porque havia uma série de preocupações no que se refere à contaminação do solo, já que o espaço foi majoritariamente utilizado para enterrar pessoas vítimas de doenças infecciosas”, conta Melo.

Nos anos 1950, o terreno foi cedido para a Associação dos Servidores Públicos do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo era que eles erguessem ali um hospital. “Foram cinco anos de construção até o hospital ser inaugurado. É possível que nesse processo tenham encontrado algumas evidências do cemitério antigo, como ossos e lápides, mas naqueles anos de 1950 ainda era muito inicial a preocupação com arqueologia no Brasil”, lamenta Melo. “Então não devem ter tido cuidado, deixaram para lá, jogaram fora.”

O hospital funcionou até a década de 2000, quando a prefeitura de Niterói assumiu o controle do endereço e o transformou na Maternidade Municipal Alzira Reis.

No ano passado, obras para uma ampla reforma e ampliação se iniciaram. Quando o terreno foi aberto para a construção, ossadas acabaram encontradas. Foi quando os arqueólogos e historiadores foram contratados: agora é preciso verificar toda essa história.

Em casos assim, a legislação determina que o trabalho de prospecção arqueológico seja realizado. A Empresa Municipal de Moradia, Urbanização e Saneamento (Emusa) de Niterói encarregou então o Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) de conduzir o trabalho. Tudo com autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

“Já se sabia que ali havia sido um cemitério, mas ninguém sabia exatamente onde estava e como funcionava. Meu trabalho foi buscar as evidências em jornais e documentos, tudo o que havia sobre o cemitério, para compararmos com o que encontramos e fomos encontrando nas escavações”, explica Melo.

O trabalho arqueológico foi dividido em três fases. A primeira, nos meses de abril e maio. A segunda, de julho a setembro. E uma terceira que ainda deve ocorrer nos próximos meses.

Todo o material encontrado está sendo levado para análises laboratoriais, que podem revelar mais detalhes sobre a história do antigo hospital e do cemitério.

“A curadoria dos acervos coletados ainda está no início e apenas confirma a função e a antiguidade do sítio, um cemitério do século 19, mas esperamos que os achados tragam resultados relevantes, em especial para a identificação das doenças que levaram tantas pessoas ao óbito”, comenta à reportagem a arqueóloga Josefa Jandira Neto Ferreira Dias, vice-presidente do IAB.

“As expectativas já foram em parte alcançadas, pois com a descoberta das sepulturas remanescentes, se confirmou a existência do cemitério do final do século 19”, comenta à BBC News Brasil a arqueóloga Cassandra Ribeiro, uma das que estão trabalhando nas escavações.

Em conversa com a reportagem, a arqueóloga e historiadora Lydia de Carvalho atenta para uma curiosidade: a falta de adereços normalmente encontrados em cemitérios. “No início da pesquisa, estávamos esperando encontrar signos que remetessem ao sagrado, como cruz, coisas assim. Mas não encontramos”, diz ela. “Acabamos encontrando fragmentos de elementos bastante comuns que nos dão informações relevantes. Existe um grande potencial analítico ali.”

As pesquisas ainda são incipientes. Mas talvez essa ausência de ornamentos e símbolos próprios a um ambiente como este se explica justamente pela condição dos sepultados: estrangeiros longe das famílias, sem ninguém preocupado em prestar as últimas homenagens.

“A descoberta das sepulturas remanescentes são de fatos as [conclusões] mais importantes, ainda que diversos tipos de material arqueológico tenham sido também identificados no sítio”, complementa Ribeiro. “Temos faianças [tipo de cerâmica] e cerâmicas portuguesas, alças de caixão em metal, mármores com inscrições, além dos próprios vestígios de ossos humanos.”

A arqueóloga salienta que ficou surpresa com “a presença das sepulturas remanescentes”. “Pois a construção de um hospital impacta muito a área onde ele está assentado. Não somente o prédio em si, mas toda a estrutura hidráulica e elétrica necessária para o seu funcionamento”, comenta. “A área do sítio arqueológico fica em meio urbano, então além do hospital temos comércios, domicílios e rodovias. Tudo isso contribui para uma destruição iminente de sítios arqueológicos e a descoberta das sepulturas é, por si só, simplesmente surpreendente.”

No laboratório do IAB as peças ainda estão em fase preliminar de higienização e análise. “A previsão é que terminaremos em seis meses”, diz à reportagem o historiador Alessandro Silva, coordenador do laboratório.

“Por se tratar de um sítio histórico onde os relatos indicam um antigo cemitério, nosso olhar acaba voltado para esse contexto. Mas nosso grande objetivo é preencher algumas lacunas históricas”, comenta.

Historiador especializado em bioarqueologia, João Gustavo Alves Chá Chá conta à reportagem que a partir do material encontrado vai ser possível descobrir “o sexo dos indivíduos, a idade, o tipo de vida que eles tiveram, o tipo de alimentação e até algumas doenças”.

“Com isso, esperamos entender um pouco mais sobre o lazareto que funcionou naquele local”, diz ele, que trabalha em uma equipe de sete pessoas no laboratório.

Chá Chá afirma que os indícios são de que os ossos foram muito remexidos, provavelmente pelas obras que ocorreram no terreno ao longo do século 20. “Encontramos os ossos mas notamos que eles foram revirados, espalhados. Mas foi encontrada uma sepultura com um esqueleto praticamente completo”, relata.

O problema também é geográfico. Como na região, próxima ao mar, a partir de 130 centímetros de profundidade já se encontra água, essa característica contribui para acelerar a deterioração dos restos mortais.

“Mas vamos extrair informações importantes. Apareceram muitos dentes [nas escavações], um material que estamos começando a olhar agora”, exemplifica Chá Chá.

Em paralelo aos achados, ocorre a chamada educação patrimonial. E isso também pode ajudar até mesmo em novas descobertas. Como conta à reportagem o historiador William Cruz, as informações sobre o estudo em andamento foram compartilhadas primeiramente com os funcionários da maternidade e os trabalhadores na obra de ampliação do complexo. “Um trabalhador pode de repente encontrar um material enquanto estiver fazendo sua atividade e, como ele já passou pelo processo de educação patrimonial, ele vai se atentar e chamar o responsável pela arqueologia”, diz Cruz.

Em breve, escolas da região e a comunidade do entorno também devem ser informados sobre o trabalho de pesquisa arqueológica e histórica.

Fonte: correiobraziliense

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