O procedimento conhecido como transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas (TACTH) é comumente empregado no tratamento de cânceres. Envolve a coleta de células-tronco a partir da medula óssea ou do sangue do próprio paciente, seguida de quimioterapia e administração de anticorpos. O tratamento também é utilizado contra a esclerose múltipla remitente-recorrente, mas não de forma ampliada. Um novo estudo, porém, traz resultados que podem torná-lo uma escolha terapêutica mais comum: durante 5 anos, a abordagem conseguiu mitigar a atividade da doença autoimune em até 73% dos pacientes.
"As nossas descobertas demonstram que o TACTH para EM recorrente-remitente é viável no âmbito dos cuidados de saúde regulares e pode ser realizado sem comprometer a segurança", enfatizam, em nota, os autores do estudo, publicado na edição de ontem do Journal of Neurology Neurosurgery & Psychiatry. O trabalho foi conduzido por cientistas da Universidade de Uppsala, na Suécia.
Ronaldo Maciel, neurologista do Hospital de Base do Distrito Federal, explica que a forma remitente-recorrente da EM é conhecida pelos chamados surtos. "A inflamação aguda do cérebro, da medula e de nervos ópticos ocorre de forma abrupta e imprevisível, sendo nomeada de surto. As repetições desses surtos aliada ao aparecimento de lesões no sistema nervoso central podem provocar incapacidade física e mental", detalha. "Os sintomas são variados, sendo os mais comuns dormência persistente em áreas do corpo, perda visual, desequilíbrio, incoorde nação, fadiga, fraqueza muscular e visão dupla", lista.
Para o trabalho, os cientistas testaram a segurança e a eficácia do TACTH quando utilizado em cuidados de saúde de rotina, não em condições de ensaios clínicos, que são cenários controlados. Eles identificaram 231 pacientes com esclerose múltipla remitente-recorrente, sendo 64% mulheres. Os participantes tinham a doença por mais de 3 anos e haviam recebido cerca de dois tipos de tratamento padrão antes de passarem pelo transplante. Aqueles que receberam o TACTH tinham, em média, 31 anos.
O bom funcionamento e a segurança do transplante foi avaliado por meio da análise de dados coletados pelo registro sueco de EM. A equipe examinou os prontuários médicos eletrônicos dos pacientes durante os 100 dias seguintes ao procedimento. Eles não encontraram evidência de atividade da doença em 73% dos voluntários tratados com o TACTH após 5 anos. No prazo de 10 anos, a taxa caiu para 65%. Entre os pacientes, 149 também tinham alguma incapacidade inicial. Após o transplante, 54%, apresentaram melhoras no quadro, 37% permaneceram estável e 9% tiveram uma piora.
Ana Cláudia Pires, neurologista do Hospital Anchieta, em Brasília, explica que, com a técnica, as células-tronco do próprio paciente são coletadas e armazenadas. Depois há as sessões de quimioterapia para destruir as células imunológicas que estão atacando o sistema nervoso central, e, por fim, a reintrodução das células-tronco. A expectativa é de que, com isso, o sistema imunológico do paciente seja reconstruído. "A aplicação desse tratamento para a esclerose múltipla tem sido associada a uma redução do surgimento de surtos e a uma melhora na qualidade de vida. No entanto, são necessários maiores estudos para fortalecer as evidências do uso dessa terapia para a esclerose múltipla remitente-recorrente", sublinha.
Guilherme Olival, neurologista da Beneficência Portuguesa de São Paulo, reforça que, devido aos grandes impactos que causa no corpo, a terapia deve ser usada apenas em casos extremos. "Ela difere das outras abordagens da esclerose justamente pela intensidade de ação e também pela agressividade. Não é um tratamento que indicamos para todos os pacientes justamente por conta dos riscos envolvidos. É uma abordagem que, mesmo nos melhores centros do mundo, tem uma mortalidade associada porque apaga a imunidade do paciente", justifica.
Do total de participantes do estudo, cinco precisaram de cuidados intensivos e 61 desenvolveram infecção bacteriana dentro de 100 dias após o tratamento. A contagem baixa de glóbulos brancos acompanhada de febre alta, conhecida como neutropenia febril, foi outro efeito secundário comum, afetando 68% dos doentes. Infecções virais foram verificadas em 13% dos pacientes. Em três, houve reativação do vírus herpes zoster e outros três tiveram uma infecção fúngica localizada confirmada. Nenhuma morte foi identificada em decorrência da administração do tratamento.
Além disso, conforme os pesquisadores, durante o período de acompanhamento de 5,5 anos, foi possível observar alterações na taxa de recidiva, que girava em torno de 1,7 no ano anterior ao TACTH e caiu para 0,035 após o uso da técnica. Ou seja, um paciente que teve, em média, 1,7 recaída um ano antes dos tratamentos adicionais passou a ter o problema 30 anos após o transplante autólogo.
Apesar de ser uma pesquisa sem um grupo comparativo — o que, de acordo com investigadores, não permite se chegar a conclusões definitivas —, é importante olhar para o transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas como uma alternativa viável para cuidar de quem tem esclerose múltipla, defendem. "Nosso estudo corrobora os resultados observados no único ensaio clínico randomizado realizado até o momento. Acreditamos que o TACTH poderia beneficiar um número maior de pacientes e deveria ser incluído como um padrão de tratamento para a doença altamente ativa", reforçam, em nota.
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