"No Peru, é muito difícil conseguir documentação. Eu praticamente não existia no Peru. Não consegui abrir conta no banco", conta Andreina Veliz Ramirez, imigrante venezuelana de 37 anos.
Hoje, ela mora em Rio Branco, no Acre, depois de quase cinco anos no país vizinho, onde trabalhou como auxiliar de cozinha e vendedora ambulante.
Andreina foi um dos 3.375 venezuelanos que ingressaram no Brasil em 2022 pela fronteira do Acre com o Peru, um aumento expressivo em comparação com 2021 quando 1.862 entraram, e com 2020 quando 572 entraram, segundo dados coletados pela Polícia Federal no município fronteiriço de Assis Brasil e obtidos pela BBC News Brasil.
No passado haitianos eram maioria, mas hoje, os venezuelanos são, com quase exclusividade, o maior grupo estrangeiro que entra no Brasil pela fronteira com o Acre.
Desde o ano de 2020, mais de 8,5 mil venezuelanos cruzaram a fronteira Brasil-Peru-Bolívia pela cidade de Assis Brasil. Só até 12 de setembro deste ano, foram 2.706.
Especialistas locais ouvidos pela BBC News Brasil explicam que o endurecimento das regras da migração no Peru e Chile, incluindo a militarização das fronteiras desses dois países, contribuem para esse aumento de migrantes venezuelanos para o Brasil.
O número crescente de imigrantes já sobrecarrega abrigos, segundo as autoridades locais, e desperta temores de uma nova "crise migratória", como visto no Estado em 2013 e 2021.
Esses receios são acentuados por um decreto governamental do Peru, que pretende expulsar estrangeiros indocumentados, que entrará em vigor em 28 de outubro.
"Esta nova política do governo peruano nos preocupa muito, porque seremos aquele local para onde os imigrantes vão recorrer na primeira hora”, diz Letícia Mamed, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Acre (Ufac) que estuda migração no Brasil.
"Não consigo nem imaginar como isso não vai sobrecarregar nossas bases de apoio aqui, porque elas existem, mas são pequenas", acrescenta.
"A expectativa é exatamente essa, que haja uma intensificação dos fluxos aqui pela nossa fronteira, o que é bastante complicado porque hoje já temos um fluxo muito intenso."
Procurado pela BBC News Brasil, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no Brasil, reconheceu a gravidade da situação do Acre e afirmou que "a América Latina e o Caribe enfrentam uma crise de deslocamento sem precedentes, tanto em sua complexidade quanto em sua escala".
"O deslocamento forçado na região, inclusive através das fronteiras do Acre, está sendo gerado por causas básicas, contínuas e intensas, como violência, insegurança, desigualdade e violações dos direitos humanos", observa o Acnur.
"Esta situação é agravada pelo aumento da xenofobia e pelo pesado tributo que a pandemia da covid-19 causou às pessoas mais vulneráveis da região."
Semana passada, a Anistia Internacional lançou o relatório "Regularizar e Proteger: Obrigações internacionais para a proteção dos cidadãos venezuelanos" que destacou o "crescente êxodo de venezuelanos" e "o fracasso da Colômbia, Peru, Equador e Chile em cumprir suas obrigações".
"Diante de uma crise sem precedentes na região, Colômbia, Peru, Equador e Chile não conseguiram ou não quiseram proteger aqueles que fogem da Venezuela. As diversas medidas e programas que estão a implementar para lhes oferecer o estatuto regular de migrantes não cumprem os padrões definidos pelo direito internacional. Estes Estados têm a oportunidade e a obrigação de proteger com urgência os mais de 5 milhões de venezuelanos nos seus territórios", afirmou Ana Piquer, diretora para as Américas da Anistia Internacional.
As autoridades do Acre já sentem a pressão migratória. O Estado tem três casas de passagem, locais onde os imigrantes podem tomar banho, comer e dormir e depois seguir viagem.
Uma fica em Assis Brasil, na fronteira com o Peru, outra em Brasiléia, a duas horas de carro da fronteira, e outra em Rio Branco.
Aurinete Brasil, assessora técnica regional da organização humanitária Cáritas no Acre, conta à BBC News Brasil que, quase todos os dias, cada casa está operando perto ou acima da capacidade.
Às vezes, estes locais recebem até o dobro de pessoas do que o número máximo para o qual foram planejados, observa a assessora.
"O Acre não tem condições hoje de acolher 200 pessoas, se chegarem ao mesmo tempo", diz ela.
"Infelizmente, as nossas fronteiras, nosso Estado, não tem uma política adequada, uma política de acolhimento, integração, proteção ao migrante e refugiado. Assim como a maioria dos Estados", acrescenta. "O Brasil abre os braços, mas não abraça."
Ela destaca as violências sofridas no Estado por imigrantes que não têm onde ficar.
"Se ele [o imigrante] não tiver dinheiro para pagar uma noite no hotel, ele acaba nas ruas, vulnerável a todo e qualquer tipo de violência", afirma.
"Pode ser abordado por narcotraficantes, também por pessoas em situação de rua que estão em situação de dependência de drogas, [pode sofrer] violência. Já acolhemos muitas imigrantes que foram violentadas nas ruas. Se for mulher a violência é dobrada, triplicada."
Em junho deste ano, o governo do Estado montou uma sala de emergência — uma espécie de gabinete de crise « para colher informações dos órgãos policiais e das instituições que trabalham com atendimento a imigrantes para monitorar as fronteiras do Acre.
Uma equipe interministerial do governo federal visitou o Estado no mês seguinte com o objetivo de conhecer as dificuldades nos serviços oferecidos aos migrantes.
"A missão do governo federal realizou visitas técnicas a autoridades locais para tratar da situação migratória em municípios do Acre. Visitou casas de passagem, com o intuito de conhecer a realidade local e definir estratégias de apoio ao Estado e aos municípios, por meio de um esforço interministerial", informou o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.
"A questão migratória é uma demanda intersetorial, que exige políticas transversais nas três esferas de governo. Cabe ao MDS assegurar o acesso de imigrantes, inclusive aqueles que não possuem documentação, a todos os serviços, programas, projetos e benefícios da Assistência Social, em igualdade de condições com os nacionais."
A BBC News Brasil também solicitou um posicionamento à secretaria de Direitos Humanos do Acre, liderada pelo pastor Alexander de Carvalho, mas depois de quase duas semanas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A pasta, porém, enviou por engano para a BBC uma resposta direcionada para uma outra autoridade que confirmou que o "Estado do Acre é visto como uma porta de entrada do Brasil".
A principal rota de entrada de venezuelanos no Brasil continua sendo Roraima, Estado que faz fronteira com a Venezuela e que também registrou aumento de fluxo esse ano, com média mensal de cerca de 12 mil venezuelanos que entram no país pelas cidades Pacaraima e Boa Vista, segundo o General Helder de Freitas, coordenador Operacional da Operação Acolhida, programa que reassenta Venezuelanos no Brasil.
A partir de Roraima, desde 2018, mais de 100 mil imigrantes foram reassentados em todo o Brasil, muitos nos Estados do Sul do país, como parte do programa Operação Acolhida, segundo dados do governo federal, que opera o programa.
Autoridades do Acre e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil esperam que o governo federal adote um programa similar para o Estado, adequado às necessidades e realidade local do Acre.
O Brasil é o terceiro país que mais recebe refugiados e imigrantes venezuelanos na região (477.493, em agosto de 2023), atrás da Colômbia (2,9 milhões) e do Peru (1,5 milhão), de acordo com a Plataforma de Coordenação Interinstitucional para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V).
Os venezuelanos começaram a deixar o seu país em números significativos em meados da década de 2010. Muitos venezuelanos procuram melhores oportunidades e condições de vida no exterior.
A emigração em massa da Venezuela ganhou impulso por volta de 2015 devido a uma grave crise econômica e política que assolou o país, caracterizada por hiperinflação, escassez de alimentos e medicamentos, instabilidade política e agitação social.
Até hoje, segundo a Acnur, mais de 7,7 milhões de Venezuelanos deixaram o país em busca de uma vida melhor e a maioria – mais de 6,5 milhões de pessoas – foi acolhida em países da América Latina e Caribe.
Em discurso no Dia da Independência do Peru, em 28 de julho, a presidente Dina Boluarte classificou alguns imigrantes no país como "criminosos" e apelou por uma mudança no código legal nacional para facilitar deportações.
Também reforçou que, quando o atual prazo para solicitar a regularização temporária expirar em 28 de outubro, não haverá mais regularizações, e o país passará a deportar os imigrantes indocumentados.
"Não haverá prorrogação. Aqueles que não cumprirem [o prazo para solicitar a regularização] serão expulsos do país", disse ela.
Para Cécile Blouin, professora da Universidade Católica do Peru, o discurso reflete o clima atual no Peru.
"Em 2017, você tem o primeiro momento de recepção de migrantes venezuelanos. E você tem o momento de acolher, [quando se dizia]: 'Ah, eles estão fugindo desse terrível governo de esquerda e temos que ajudá-los'. Mas isso não durou muito", diz a pesquisadora especialista em migração, asilo, fronteiras, gênero e racismo na América do Sul, com foco na Região Andina.
Blouin critica a fala de Boluarte.
"É um discurso que reflete muita xenofobia, no governo, no Congresso, em todos os poderes do Estado, mas também na população", diz ela.
Dina Boluarte é a sétima pessoa a ocupar a presidência do Peru desde 2015, tendo substituído o esquerdista Pedro Castillo, de quem era vice, em dezembro de 2022.
Castillo sofreu impeachment pelo Congresso e foi detido sob acusações de ter tentado um golpe de Estado.
Mais de 60 pessoas foram mortas em protestos no início deste ano, e Boluarte enfrentou apelos para renunciar, com desaprovação de seu mandato por 90% da população. A rejeição ao atual Congresso peruano é ainda maior, de 94%.
Tal como o Peru, o Chile também assistiu a uma onda xenofóbica, personificada pelo candidato presidencial de direita radical José Antonio Kast, cuja derrota nas eleições de 2021 foi precedida por uma onda de violência anti-imigrantes na cidade de Iquique.
O candidato de esquerda Gabriel Boric ganhou as eleições e assumiu o poder em 2022 mas também tem trabalhado para endurecer regras migratórias. Desde fevereiro, o governo enviou tropas ao longo das suas fronteiras com a Bolívia e o Peru, a fim de impedir a entrada de imigrantes sem documentos, na sua maioria venezuelanos.
Em abril, o governo peruano declarou estado de emergência e ordenou o envio das suas forças armadas para sua fronteira com Chile, em uma decisão que foi criticada pela Anistia Internacional, e que deixou centenas de migrantes, em sua maioria venezuelanos, presos no deserto do Atacama.
Em uma coletiva de imprensa no Palácio, a presidente do Peru culpou abertamente os migrantes pelo aumento da criminalidade no país.
"Aqueles que cometem assaltos, roubos e outros atos criminosos diariamente são estrangeiros. Por isso temos que reformular a lei de imigração, olhar para essa questão da migração", disse a presidente.
"É uma retórica muito fácil, mas que não é apoiada por quaisquer fatos concretos", diz Cécile Blouin.
"Existe a ideia de que antes da migração venezuelana, o Peru era muito seguro, mas nunca foi assim. Há muitas inseguranças de longa data, sentidas pela população em relação ao crime organizado, ao tráfico de drogas e ao Sendero Luminoso [grupo guerrilheiro peruano criado nos anos 1960]", observa a professora da Universidade Católica do Peru.
Além da xenofobia, Blouin destacou as complexidades da regularização de imigrantes venezuelanos no Peru – custos financeiros, tempo, burocracia, regras complexas, deslocamento – especialmente para famílias com vários filhos.
Embora Blouin e outros especialistas ouvidos pela BBC Brasil duvidem da capacidade do Estado peruano de expulsar fisicamente centenas de milhares de pessoas, ela diz que o decreto governamental cria um "clima de medo" em que as pessoas "convivem com o receio da deportação".
"O outro problema do Peru é que a regularização não é gratuita. É preciso pagar, fazer a papelada, gastar dinheiro com isso", diz ela, sobre a taxa de regularização de 47,5 soles peruanos (R$ 62).
Andreina Veliz Ramirez, imigrante venezuelana que mora hoje em Rio Branco, Acre, diz que sabe bem das dificuldades para se regularizar no Peru.
Nascida em Guatire, a uma hora de carro da capital venezuelana de Caracas, e formada em Administração, ela deixou o emprego em um banco na Venezuela em 2017, precisamente quando o colapso econômico do país se agravou.
Chegando ao Peru, ela teve dois empregos durante pouco mais de um ano.
Pela manhã, trabalhava como auxiliar de cozinha e, à tarde, como vendedora ambulante. Depois de algum tempo comprou um freezer e bebidas e se dedicou apenas ao comércio.
Ela diz que chegou a vender até 700 garrafas de água e refrigerante num dia só, trabalhando como vendedora ambulante autônoma na cidade de Ica, a 300 km da capital peruana, Lima.
Em um dia bom, dava para ganhar 150 soles peruanos (cerca de R$ 200), diz ela. Mesmo assim, era uma vida longe de ser fácil.
"Lá [no Peru] você tem a oportunidade de ganhar muito dinheiro. Mas você vive mal, vive triste, estressada, sempre cansada", diz ela.
A dificuldade de se regularizar no país foi uma das duas principais razões para a saída, além da precariedade dos serviços públicos: a escola do filho era ruim e era preciso pagar, lembra.
"Na cidade em que morava, não podia fazer a regularização, então eu precisava ir para Lima, com meu filho pequeno", diz ela.
Frustrada, ela então ouviu que "o Brasil é melhor, a documentação é mais fácil". Chegando ao Acre, ela trabalhou em uma pizzaria em Brasiléia.
"É uma cidade pequena, com poucas oportunidades para crescer, mas eu fui acolhida muito bem", diz ela.
A rota migratória do Acre começou a receber maior fluxo de pessoas a partir de 2010, quando o terremoto no Haiti levou à entrada de grande número de haitianos, seguidos por africanos, principalmente do Senegal. Os dois grupos chegam à América do Sul via República Dominicana.
Em 2013, houve uma crise causada pela superlotação de um abrigo, que tinha capacidade para 200 pessoas, mas se tornou moradia temporária de mais de 1,3 mil, para imigrantes principalmente haitianos, na cidade de Brasiléia.
De acordo com dados do governo estadual, nos anos 2012, 2013, 2014 e 2015, o governo do Acre atendeu 42.074 migrantes, a maioria do Haiti.
Mais recentemente, em 2021, durante a pandemia, um grupo de dezenas de imigrantes, na maioria haitianos, segundo a imprensa local, ficou acampado na Ponte da Integração, que conecta Iñapari no Peru com Assis Brasil, sem possibilidade de entrar no Brasil ou voltar ao Peru.
A rota do Acre também é usada em menor escala por imigrantes que estão indo para os Estados Unidos.
No início de setembro, três motoristas de táxi foram presos pela Polícia Federal levando 22 imigrantes vietnamitas para Assis Brasil.
A rota é usada para subir pela América do Sul até o Darien Gap, passagem florestal que conecta a Colômbia com o Panamá e por onde esse ano já passaram 300 mil migrantes, segundo dados do próprio governo do Panamá. Em comparação, menos de 250 mil cruzaram a fronteira por esse caminho em todo o ano de 2022.
De Darien Gap, os imigrantes na maioria continuam subindo para os Estados Unidos, onde, só em agosto deste ano, 91 mil pessoas foram presas pela Patrulha de Fronteira na fronteira com o México, informou o jornal The Washington Post.
"Esse fluxo, que vem desde 2010, quando foi inaugurada essa rota, pelos imigrantes haitianos, nunca deixou de ser usado por imigrantes de todo o mundo", diz Letícia Mamed, da Ufac.
"Claro que esse fluxo aumenta e diminui de acordo com a geopolítica global", observa.
"Em 2010, eu imaginava que a situação dos haitianos era uma coisa passageira, relacionada ao terremoto, e que iria acabar. Mas não, na verdade os haitianos desbravaram essa rota, de acesso ao Brasil, e desde então a rota foi configurada, enraizou-se e é acessada por todas as nacionalidades que você pode imaginar."
Hoje, em Rio Branco, Andreina Veliz Ramirez mora em um apartamento de um quarto, com o filho de 8 anos matriculado em uma escola pública.
Ela vende água de coco e recebe o auxílio do Bolsa Família, direito que ela e todos estrangeiros registrados têm no Brasil.
Para os imigrantes, diz Letícia Mamed, da Ufac, mesmo que às vezes haja dificuldade para achar emprego, a rede de proteção social do Brasil pode ser considerada boa.
"Mesmo no Brasil, onde estamos nos reconfigurando economicamente e politicamente, depois dos últimos quatro anos, há uma estrutura de serviço social", diz ela.
"O Sistema Único de Saúde é uma coisa incrível para os imigrantes", afirma, lembrando que o SUS opera em regime de "porta abertas" atendendo a todos, brasileiros ou não.
"Eles consideram: 'Mesmo que eu não tenha um bom emprego aqui, tenho políticas públicas'. Então esse é um elemento que favorece para eles ficarem no Brasil ou pelo menos procurarem o Brasil até um dia poderem ir para os países mais avançados economicamente, como os Estados Unidos e locais da Europa", diz.
Mas a vida dos imigrantes no Brasil, especialmente em Estados mais pobres como o Acre, pode não ser fácil.
"É difícil ganhar dinheiro", lamenta Andreina.
"Tenho um currículo extenso mas não consigo emprego formal. Tenho um filho pequeno e não consigo ir muito longe", diz ela.
Fonte: correiobraziliense
Utilizamos cookies próprios e de terceiros para o correto funcionamento e visualização do site pelo utilizador, bem como para a recolha de estatísticas sobre a sua utilização.