Nos últimos anos, uma "competição" informal e velada passou a dominar as rodas de conversas de psiquiatras e especialistas em medicina do sono brasileiros: saber quem atendeu o paciente que tomou a maior quantidade de comprimidos de Zolpidem num único dia.
O remédio usado no tratamento contra a insônia, disponível no mercado há mais de 30 anos, ganhou protagonismo maior na última década, pela junção de uma série de fatores que você vai conhecer ao longo desta reportagem, como uma facilidade na prescrição médica e um apelo quase irresistível para um problema relativamente comum — a dificuldade para dormir.
Alguns médicos ouvidos pela BBC News Brasil contam que é cada vez mais frequente receber no consultório indivíduos que ingeriram 40 ou 50 unidades do fármaco de uma só vez.
"Nós já internamos pessoas que tomaram 300 comprimidos de Zolpidem num dia", relata o psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Programa de Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq-FMUSP).
O especialista aponta que essa medicação virou uma das drogas de abuso no Brasil — e, guardadas as devidas proporções, chega a comparar o que acontece no país com o cenário de abuso de opioides que assola os Estados Unidos.
Para a neurologista Dalva Poyares, do Instituto do Sono, em São Paulo, a situação já pode ser classificada como um problema de saúde pública.
"O consumo de Zolpidem aumentou quase que numa progressão geométrica, e falamos aqui de um medicamento que está relacionado à dependência e abuso", alerta ela.
Falando em dados, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) calcula que 13,6 milhões de caixas dessa medicação foram vendidas em 2018. Dois anos depois, em 2020, esse número saltou para 23,3 milhões — um crescimento de 71% em poucos meses. Desde então, essas estatísticas nunca ficaram abaixo da casa dos 20 milhões anuais.
O psiquiatra Lucas Spanemberg, do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), concorda com a avaliação de seus colegas. “Eu trabalho na Unidade de Internação Psiquiátrica do Hospital São Lucas, em Porto Alegre, e temos recebido casos dramáticos de dependência de Zolpidem”, diz ele.
"Já lidei com pacientes que tomavam duas ou três caixas inteiras [com 30 comprimidos cada] numa noite. Os familiares precisaram nos mostrar as fotos das embalagens, porque era algo inacreditável", complementa o médico.
Entre os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, há um consenso sobre a necessidade de aumentar o controle sobre as vendas de Zolpidem no país — e ampliar a conscientização sobre o uso adequado do fármaco tanto entre médicos quanto na população.
O Zolpidem foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória dos Estados Unidos, em 1992.
No Brasil, ela está disponível desde meados dos anos 1990 e já aparece em algumas listas de órgãos públicos precursores da Anvisa (que só foi criada em 1999).
Poyares observa que, nesses primeiros anos de presença nas farmácias, o Zolpidem tinha um preço mais elevado e não era alvo de muitas propagandas voltadas à classe médica ou ao consumidor final.
Mas tudo mudou a partir de 2007, quando a patente da medicação expirou. Com isso, abriu-se a possibilidade de outros laboratórios começarem a fabricar o produto como um genérico.
Hoje em dia, uma rápida pesquisa no site de qualquer rede de drogarias revela que há pelo menos 14 empresas diferentes que produzem e comercializam versões do Zolpidem no Brasil.
"E algumas dessas indústrias têm uma grande força de venda. O que vimos foi uma propaganda em massa ao passo que novas fabricantes apareciam no mercado", observa a neurologista.
Bernik chama a atenção para as regras de prescrição e compra do Zolpidem no Brasil.
Segundo a legislação sanitária vigente no país, existem diferentes tipos de receitas médicas, que são usadas de acordo com a classificação de determinada substância farmacêutica.
Para as mais simples, basta que o médico faça uma prescrição comum, dessas que vem numa folha de papel ou em aplicativos e arquivos de computador.
A seguir, vem a receita C1 Branca. Ela traz os dados do profissional da saúde e do paciente (como nome, documento e endereço), além da identificação do comprador e do fornecedor. Além disso, ela é emitida em duas vias, sendo que a primeira fica retida na farmácia. Há a possibilidade de emiti-la de forma digital.
O próximo tipo de receituário é o B1, popularmente conhecido como "tarja preta". Trata-se de um talão na verdade azul que já vem impresso com a identificação do especialista e necessita de um cadastro e uma autorização específica de órgãos de vigilância sanitária. Não há a possibilidade de prescrição online aqui.
Por fim, há a receita A1. Ela é amarela e tem um uso ainda mais restrito e controlado.
Mas o que isso tem a ver com o Zolpidem? Os médicos ouvidos apontam que a forma como ele é prescrito ajudou nessa popularização recente.
Uma portaria publicada pela vigilância sanitária do Ministério da Saúde em 1998 lista os medicamentos que estão sujeitos a um controle especial.
No grupo B1, que reúne as substâncias psicotrópicas, aparece o Zolpidem. Isso significava que a compra dele estava condicionada à apresentação daquela receita azul (que é mais difícil de se obter).
Só que uma outra portaria, publicada em 2001 pela recém-criada Anvisa, modifica essa norma. A partir dali, as preparações medicamentosas à base de Zolpidem com menos de 10 miligramas por comprimido passaram a ser comercializadas com a receita de controle especial (que é branca e vem em duas vias).
Na avaliação dos especialistas entrevistados para esta reportagem, isso facilitou o acesso às drogas Z, grupo do qual o Zolpidem faz parte, no país: afinal, mesmo que esse tipo de receituário tenha algumas regras, ele pode ser facilmente prescrito por um número maior de especialistas quando comparado ao B1-azul, que fica mais restrito aos psiquiatras e médicos de unidades básicas de saúde.
"Com isso, qualquer médico ganhou uma licença especial para a prescrição de Zolpidem", observa Spanemberg.
"E essa mudança na legislação fez com que as pessoas tivessem uma menor percepção de risco, pois os comprimidos com menos de 10 miligramas deixaram de ser classificados como tarja preta", complementa ele.
A BBC News Brasil entrou em contato com o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, que foi fundador e presidente da Anvisa. A portaria sobre o receituário do Zolpidem de 2001 foi assinada por ele.
Em resposta, ele afirmou que procurou "alguns colaboradores deste tempo, mas eles não conseguiram recuperar essa decisão". O especialista também disse que não se lembra dos motivos ou do contexto que levaram à mudança das regras há 22 anos.
Por fim, Vecina Neto declarou que concorda que o uso do Zolpidem "deve ter maior controle hoje em dia".
Questionada sobre o fato, a assessoria de imprensa da Anvisa enviou uma nota à reportagem.
Nela, a agência aponta que "os critérios de prescrição de medicamentos que tenham como princípio ativo o Zolpidem foram adotados a partir de proposição realizada pela Câmara Técnica de Medicamentos (Cateme) conforme disposto no preâmbulo da Resolução da Diretoria Colegiada de número 232, de 11 de dezembro de 2001" — esse é o mesmo documento citado nos parágrafos anteriores.
Um terceiro ingrediente que ajuda a entender o interesse aumentado pelo Zolpidem na última década está relacionado justamente às promessas relacionadas ao uso dele.
Essa medicação é classificada como um hipnótico que induz o sono. Ele tem uma ação relativamente parecida a dos benzodiazepínicos — classe de drogas da qual fazem parte o clonazepam, o diazepam e o lorazepam, por exemplo, que necessitam daquele receituário B1 azul, diga-se.
Os tais benzodiazepínicos se ligam a receptores localizados na fenda sináptica — o espaço entre dois neurônios — e aumentam a afinidade das células pelo neurotransmissor ácido gama-aminobutírico, ou Gaba na sigla em inglês.
O Gaba tem uma função inibitória e, com isso, consegue "frear" ou diminuir a atividade do sistema nervoso.
Os benzodiazepínicos, porém, apresentam uma característica um tanto indesejada quando a meta é tratar a insônia: eles têm uma ação prolongada, que dura várias horas, e afeta várias instâncias do sistema nervoso.
E foi na tentativa de resolver essas questões que apareceram as drogas Z. Elas também promovem a tal ação inibitória nos neurônios e agem rapidamente, só que agem mais especificamente sobre o sono e atuam por um período menor.
"Remédios como o Zolpidem surgem justamente a partir dessa necessidade de um tratamento que comece e acabe rápido, e fique restrito ao período do sono", contextualiza o médico Almir Tavares, coordenador do Departamento de Medicina do Sono da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
"Ou seja, esse remédio traz ao paciente uma indução de sono muito rápida, em torno de 10 ou 15 minutos após tomar o comprimido. Ele acorda no outro dia sem aquela sensação de ressaca", resume Spanemberg.
Detalhe importante: à época da aprovação pelas agências regulatórias lá nos anos 1990, acreditava-se que esses remédios não levavam à tolerância ou à dependência.
"E quem não quer uma pílula que te desliga subitamente e permite despertar feliz e bem no dia seguinte? Nenhum outro medicamento disponível até então prometia esse tipo de resultado", destaca o psiquiatra.
De acordo com os médicos, essas promessas são muito atrativas — ainda mais quando pensamos num cenário em que doenças psiquiátricas como ansiedade e depressão (que afetam a qualidade do sono) ganham importância e são impulsionadas por mudanças profundas na sociedade e na forma como as pessoas interagem.
Não há como ignorar também a influência da pandemia de covid-19 e da necessidade de isolamento social nos períodos mais graves dela — não à toa, a prescrição de Zolpidem no Brasil teve um aumento de 71% em 2020, o primeiro ano da crise sanitária causada pelo coronavírus.
"Essa sensação de 'desligar a chavinha' e dormir é algo muito aditivo", atesta Bernik.
Mas, promessas à parte, o uso do Zolpidem na vida real mostrou-se um tanto mais complexo.
"Quando o Zolpidem chegou, a partir de 1992, ele trazia um apelo errôneo de que não causaria tolerância ou dependência", contextualiza Poyares.
"Só que, na prática, o mecanismo de tolerância acontece. As pessoas tomam o comprimido e dormem. Só que, a partir de determinado momento, elas começam a despertar antes da hora que desejavam", diz ela.
"Daí elas tomam um segundo comprimido ao longo da noite, quando acordam ou aumentam a dose antes de ir para a cama. E isso cria um círculo vicioso."
Segundo os especialistas, aqueles receptores cerebrais onde o Zolpidem age se tornam menos sensíveis à ação do remédio. Com o passar do tempo, portanto, cria-se a necessidade de ingerir uma quantidade cada vez maior do fármaco para alcançar o mesmo efeito do início da terapia.
Com isso, o sujeito que usava um comprimido passa para dois. Depois, para três, quatro, cinco… Até chegar a casos extremos de 300 unidades — ou dez caixas inteiras — ingeridas numa única noite.
"Esses casos em que o paciente consome dezenas ou até centenas de comprimidos em poucas horas mostram como esse processo de tolerância acontece na prática, e os receptores do sistema nervoso se tornam insensíveis ao medicamento", pontua Poyares.
Diante de um cenário tão complexo, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que o uso racional do Zolpidem requer uma série de ações diferentes.
E aqui vale reforçar que esse remédio tem, sim, uma indicação para casos específicos. De acordo com as diretrizes médicas, ele pode ajudar no início de um tratamento contra a insônia em alguns casos, se usado por poucos dias, ou para regular o descanso noturno de pessoas que fazem viagens internacionais e precisam se adequar a um novo fuso horário, por exemplo.
O problema está justamente no uso contínuo, ao longo de meses ou anos, que leva à tolerância de dosagem e à dependência de um comprimido para conseguir dormir.
“A prescrição do Zolpidem precisa ter um controle maior. Isso não garante que todos os problemas serão resolvidos, mas já melhoraria muito a situação”, opina Poyares.
Numa carta publicada na Revista Brasileira de Psiquiatria em 2018, três pesquisadoras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) questionaram se a regulação das drogas Z no Brasil está alinhada com os padrões internacionais.
Elas lembram, por exemplo, de um alerta emitido pela FDA dos EUA em 2012 sobre o risco de indisposição, cansaço e falta de atenção no dia seguinte após o uso do Zolpidem.
As autoras ainda consideram a regulamentação do remédio no Brasil "fraca" e alertam que “a falta de controle e orientação médica pode contribuir para problemas de dependência”.
Uma sugestão dos médicos ouvidos para esta reportagem é justamente voltar a usar aquela prescrição B1, do talão azul, para as drogas Z, a exemplo do que sempre ocorreu com os benzodiazepínicos.
Algo parecido aconteceu na França em 2017, quando as autoridades sanitárias locais aumentaram o nível de exigência para a obtenção do Zolpidem
Questionada se algo parecido pode ocorrer no Brasil, a Anvisa respondeu que a revisão das listas de medicações que necessitam de uma receita especial "é um processo dinâmico e contínuo, fundamentado em evidências científicas e informações, com vistas à avaliação de risco".
"Sendo assim, a partir desse acompanhamento, alterações nos critérios de controle podem ocorrer sempre que necessário", aponta a agência.
Já o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) afirmou que concorda com as normas atuais em vigor no Brasil. A entidade "concorda com e reforça o cumprimento das regras vigentes no Brasil, alinhadas às normas internacionais".
"A dispensação e o consumo de todo e qualquer medicamento de prescrição — os chamados medicamentos tarjados, nas cores vermelha e preta — devem seguir a orientação do profissional de saúde habilitado para tanto, para garantir o uso racional e correto dos produtos e, assim, zelar pela saúde dos pacientes e pela saúde pública no país de um modo geral", diz o texto.
Os médicos também chamam a atenção para o mercado paralelo de venda e compra de medicamentos que acontece nas redes sociais e em grupos de mensagem.
"Como disse uma paciente minha, enquanto você não descobre o mercado paralelo, precisa ir ao médico e pedir receita do Zolpidem", relata Bernik.
"Chega uma hora que o paciente vai a cinco ou seis médicos, que passam a suspeitar que ele está tomando duas ou três caixas por dia, quando o limite é de uma caixa por mês no máximo."
"Mas, na internet, no mercado paralelo, esse limite não existe. Lá, é possível encontrar traficantes que anunciam esses produtos", conta o psiquiatra.
Além de controle e fiscalização, os entrevistados também apostam no caminho da conscientização e do uso racional dessas medicações — e esse trabalho pode começar pela classe médica.
"Muitas vezes, os primeiros pacientes são os próprios médicos. Eles se autoprescrevem essas medicações para aguentar os plantões e a demanda de trabalho", observa Tavares.
"E precisamos deixar claro que esses remédios não são panaceias ou cosméticos", pontua ele.
Por fim, os especialistas lembram que remédio nenhum é capaz de resolver a insônia de forma satisfatória e de uma vez por todas.
"Não podemos medicalizar o sono", diz Tavares.
"O fármaco é uma ferramenta dentro de um projeto terapêutico que envolve uma série de outras medidas absolutamente fundamentais, chamadas de higiene do sono", detalha Spanemberg.
"Falamos aqui de orientações e mudanças ambientais e comportamentais que aos poucos fazem o cérebro aprender que é hora de dormir", complementa o psiquiatra.
Isso envolve, por exemplo, restringir o contato com as telas de celulares e televisores algumas horas antes de ir para a cama ou limitar o consumo de bebidas estimulantes (como o café) a partir de determinada hora da tarde.
Para aqueles que já usam o Zolpidem, Poyares sugere observar o padrão de sono — e buscar a ajuda de um profissional, se necessário.
"Repare se, antigamente, um comprimido era suficiente e agora você acorda antes da hora, ou precisa de dois para ter o mesmo efeito", destaca a "eurologista.
“Nesse caso, procure um especialista para que ele adeque a prescrição ou modifique o tratamento", conclui ela.
Fonte: correiobraziliense
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