22 de Novembro de 2024

O geólogo 'escorraçado' do Brasil por sugerir à Petrobras que procurasse petróleo no mar


“Há tanto petróleo no fundo do mar – e tão forte é a sua pressão – que o melhor técnico da Petrobras ainda não conseguiu dominar inteiramente o jorro”.

Foi assim que o então repórter do jornal O Estado de S. Paulo Paulo Barbosa de Araújo descreveu a cena que testemunhara no dia anterior, rodeado de técnicos da empresa norte-americana Zapata Drilling Company no alto da plataforma de exploração Vinegaroon, não muito longe da arrebentação das ondas da orla de Aracaju (SE).

Era começo de outubro de 1968 e, na semana anterior, a Petrobras havia anunciado ao mundo o que se esperava há quase quatro décadas: o Brasil tinha petróleo no mar.

Já aposentado, sentado no escritório de casa, no Estado de Indiana, nos EUA, o geólogo norte-americano Walter Karl Link não se surpreendeu com a notícia. Tampouco se orgulhou.

Havia nele apenas um senso de justiça: sete anos antes, ele havia deixado o Brasil escorraçado pela imprensa, por autoridades e por diretores da própria Petrobras por sugerir que a empresa mudasse a estratégia de perfurar poços em bacias terrestres (onshore) e fosse atrás dele, justamente, no oceano (offshore).

“Link era um cientista muito sério. Imagino que ele tenha ficado mais satisfeito com a comprovação científica do seu trabalho do que com qualquer questão pessoal”, acredita a pesquisadora Drielli Peyerl, da Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos, que passou anos estudando a vida do geólogo durante seu pós-doutorado, nos EUA.

“Hoje, fica evidente que ele sofreu com o contexto da época: a Petrobras era seguida por todo mundo e ele havia chegado ao Rio de Janeiro como o responsável por fazê-la encontrar petróleo no território do Brasil. Quando ele notou que, em terra, não havia tantas bacias, foi uma frustração não só política e econômica para o país, mas também social – e até da ordem da identidade nacional”, completa ela, que também é pesquisadora do Instituto de Energia e Meio Ambiente e do Researcher Centre for Greenhouse Gas Innovation da Universidade de São Paulo (USP).

Peyerl conheceu a história de Walter Link na década passada, quando estudava os investimentos pesados que a Petrobras fez desde o início para formar técnicos brasileiros que fossem capazes de achar e explorar petróleo. Era uma fixação que atravessara todos os governos desde os tempos de Getúlio Vargas até o regime militar.

Enquanto fazia entrevistas na empresa, não raro ela ouvia alguém contar, com diferenças sutis, uma mesma história: a do geólogo “mais famoso do mundo” em sua época que, contratado pela Petrobras para transformar o Brasil em autossuficiente na produção de petróleo, jamais foi ouvido na única certeza que carregava: que a exploração brasileira deveria ser offshore – porque, em terra, o esforço seria menos promissor.

Quase 15 anos após descobrir sua primeira jazida de petróleo, em um bairro do subúrbio de Salvador (BA), o Brasil estava dividido. O palco era o Congresso, onde bancadas e setores empresariais defendiam que empresas petrolíferas estrangeiras que já atuavam no país – principalmente subsidiárias da Standard Oil Co. e a Anglo-Mexican Petroleum Co. –, mantivessem o status. Ao mesmo tempo, havia a defesa da presença mais intensa do Estado no mercado de energia, que se expressava sob o famoso slogan “O Petróleo É Nosso”.

Esse conflito entrou nos anos 1950 como principal dilema político do Brasil, conhecido como “problema do petróleo”: de um lado, os “entreguistas”, a favor das empresas estrangeiras e, do outro, os “nacionalistas”, exigindo um papel mais intervencionista do Estado.

A fundação da Petrobras, no início de outubro de 1953, foi a consequência final dessa divisão: uma empresa financiada com investimentos públicos e privados, mas gerida pelo governo – o que garantia o monopólio público sobre qualquer lugar onde houvesse petróleo no território nacional. Parte dessa estrutura legal se mantém há exatos 70 anos.

Pouquíssimo tempo depois, sem saber por onde começar a procurar novos poços, a novíssima estatal foi atrás de Walter Link nos Estados Unidos. Em 1954 ele era, de fato, um dos geólogos mais famosos do mundo, cuja carreira começara na fase final da Standard Oil Company, gigante norte-americana que se desintegrou a partir de 1911, mas se consolidara ao longo do século colaborando com países como Venezuela, Equador, Suriname e Indonésia a encontrar suas próprias jazidas do “ouro negro”.

Já esperando pelas críticas dos “nacionalistas”, a empresa correu a argumentar que a contratação de Link era temporária, e que seu trabalho seria mais treinar profissionais brasileiros para o futuro próximo do que ditar os passos produtivos da companhia.

Não era mentira: seu contrato tinha, de fato, duração até o final de 1960. Das portas para dentro, porém, todo mundo sabia que o plano era outro: entregar a ele o cobiçado cargo de diretor do Departamento de Exploração e, em troca, saber o mais rápido possível sobre as “possibilidades petrolíferas do Brasil”, como o próprio geólogo contou em um relatório que escreveu antes de voltar ao seu país.

“Era uma posição mais importante do que a da própria presidência da Petrobras, porque enquanto uma era essencialmente política, a outra dava sentido à existência da empresa – que, naquela época, era achar petróleo no território brasileiro. O fato dele ser estrangeiro também colaborou para colocá-lo diante nos holofotes”, explica Peyerl.

O jornalista Norman Gall, correspondente de diversos veículos da imprensa norte-americana no Brasil desde os anos 1950, foi uma das poucas pessoas que conseguiram conversar com Link para além das pressões políticas que ele sofria dentro e fora da Petrobras. Gall, que aos 90 anos ainda vive em São Paulo, o entrevistou várias vezes.

“Ele veio sabendo que ocuparia um posto importante e que, por causa disso, teria que lidar com as críticas da imprensa e dos políticos”, conta Gall.

“Lembro, sobretudo, que ele ainda falava com certa excitação sobre a possibilidade de tirar petróleo do Rio Madeira, na Amazônia, que confirmava um mapeamento feito antes mesmo da fundação da Petrobras”, continua ele, citando um poço explorado por pouco tempo na cidade de Nova Olinda do Norte, hoje no Amazonas.

Walter Link arregaçou as mangas, de fato, em 1955, viajando pelas áreas onshore que a Petrobras e o Conselho Nacional de Petróleo (CNP), entidade que a antecedera, haviam mapeado no território brasileiro desde a década de 1930.

Segundo relatórios da época analisados pela BBC News Brasil, ele passou por estados como Paraná, Maranhão, Rio Grande do Norte e no Amazonas – que voltou a ser um dilema para a companhia neste ano por causa da bacia na Foz do Rio Amazonas, onde a empresa pretende investir, mas esbarra na resistência do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente.

Desde os seus primeiros relatórios, Link já expressava certa desilusão.

“Ele viu como muitos documentos produzidos sobre o tema no início da República já eram pessimistas. Geólogos estrangeiros diziam que não havia petróleo no país desde a década de 1900, por exemplo. Conforme ele ia a campo, os diagnósticos iam se confirmando”, explica Drielli Peyerl.

Ainda assim, empolgado com o projeto da Petrobras, o geólogo voltou aos Estados Unidos no ano seguinte com a missão de formar um time de técnicos que o ajudasse no desafio. Em paralelo, conseguiu que a estatal investisse em uma estrutura ampla, que incluía desde laboratórios de paleontologia até técnicos em palinologia – ramo da ciência que estuda palinoformos, como grãos de pólen, por exemplo.

Em 1956, com os primeiros resultados em mãos, ele tomou duas decisões importantes: avançar no recém-criado programa baiano, onde havia chances sólidas de tirar o fóssil da abundante bacia do Recôncavo e, ao mesmo tempo, focar nas duas principais bacias sedimentares que conseguira mapear melhor — a do Solimões, no Amazonas, e a do Paraná, no Sul do país.

Link já colecionava alguns insucessos, como uma perfuração no Sergipe que não tinha achado nenhum resquício de petróleo, como contou um ex-funcionário da equipe dele à Folha de S. Paulo em 2003. Foi puro azar, porque, anos depois, muito perto dali se estabeleceria o maior campo terrestre da Petrobras no Brasil: o de Carmópolis, vendido à espanhola Carmo Energy em 2021.

Norman Gall lembra que o petróleo brasileiro recebia atenção mundial em meados dos anos 1950, muito por conta do imaginário de que o país possuía grandes bacias repletas de petróleo intocado.

“Os jornais norte-americanos me pediam constantemente para acompanhar o que ele estava fazendo na Petrobras e, principalmente, se ele tinha achado alguma coisa”, relembra aos risos.

Nos anos seguintes, porém, os problemas foram tomando conta da mesa de Link. O diagnóstico era que as bacias estavam em regiões de difícil acesso, sobretudo na Amazônia, o que dificultaria o escoamento da produção e a logística dos equipamentos. Ele chegou a destinar 60% dos recursos do seu departamento para a exploração do Solimões, mas havia outro entrave ainda mais grave para seus planos: a falta de tecnologias e, principalmente, de técnicos qualificados para avançar no projeto – o que o geólogo procurou resolver criando centros de pesquisa e treinamento dentro da própria Petrobras.

Interlocutores da empresa ouvidos pela BBC News Brasil se repetem em dizer que esse é o legado mais evidente de Link, conclusão que aparece também nas memórias de Carlos Walter Marinho Campos, ex-diretor de Exploração da companhia – que o homenageou dando seu sobrenome à bacia que hoje se estende do Rio de Janeiro ao Espírito Santo.

“Ele deixou em nós a mentalidade, mas também os procedimentos necessários de uma indústria petrolífera”, escreveu.

Os ânimos mudaram em junho de 1959, quando Link apresentou um artigo técnico em um congresso global de energia, em Nova York, nos EUA, contando ao mundo que o Brasil só possuía uma única bacia de onde se podia tirar petróleo para vender e consumir: a do Recôncavo baiano, com capacidade de mais de 1 bilhão de barris. No debate com os especialistas presentes, ele também reclamou da falta de instrumentos, tecnologia e de mão de obra.

“Eu não sei de onde o petróleo vem, mas nós acreditamos, ou desejamos, que o que temos chamado de xisto de Ponta Grossa, acima de Furnas e abaixo de Itararé, seria o lugar mais provável para encontrá-lo. (...) Se nós tivéssemos estrutura acho que também acharíamos algo na bacia do Paraná. Devo admitir que estamos absolutamente perplexos sobre o que fazer”, afirmou Link, segundo os autos do encontro.

Assim que o leram, os outros diretores da Petrobras ficaram estarrecidos.

“Imagina você dizer à comunidade internacional, em um momento de corrida intensa, que o Brasil não tinha quase petróleo nenhum? O impacto político foi imediato – e o econômico era questão de tempo”, observa Drielli Peyerl.

Walter Link, no entanto, já não vislumbrava sua permanência na Petrobras. A imprensa seguia questionando seus vencimentos altos – de cerca de 125 mil cruzeiros mensais (aproximadamente R$ 45 mil em valores atualizados) –, enquanto a empresa sofria pressões políticas por manter um quadro estrangeiro com poder significativo de decisão.

A acusação mais contumaz era que Link era um infiltrado das petrolíferas norte-americanas que haviam herdado a estrutura da Standard Oil – a Exxon e a Mobil. Estava no rol dos “entreguistas”, mas disfarçado.

O que definiria a passagem do geólogo no Brasil, porém, viria a seguir: um documento de cerca de dez páginas que Walter Link entregou, em meados de 1960, nas mãos do então presidente da Petrobras, o coronel do Exército Idálio Sardenberg.

Conhecido imediatamente pelo símbolo inequívoco do seu sobrenome, o Relatório Link era uma análise técnica assinada por ele e outros 14 técnicos da companhia em que se dizia objetivamente que o Brasil deveria parar de procurar petróleo em bacias sedimentares (onshore), onde não encontraria muita coisa, porque elas eram geologicamente muito antigas, e “investir em plataformas continentais” ou, em outras palavras, no mar.

Link e seu time ainda sugeriam que a empresa investisse na exploração e produção de petróleo em outros países do continente sul-americano. À época, Equador e Venezuela já eram potenciais nomes regionais do setor.

“O documento teve impacto também porque Link escreveu de forma direta: ‘as bacias sedimentares brasileiras não apresentam indícios de produção em larga escala de petróleo e as pesquisas precisam ser redirecionadas para o mar”, revela Drielli Peyerl.

“Na verdade, ele não aguentou tanto descontentamento e pressão: mesmo com gente de dentro da Petrobras pedindo para ele ficar, ele resolveu partir. Não teria clima ainda que quisesse. No dia do embarque, muita gente foi ao aeroporto fotografá-lo indo embora.”

“Como o conheci, imagino que ele estava aliviado. Apesar da pressão que recebeu, ele era muito honesto. O relatório é uma prova disso, já que ele foi contratado para apresentar justamente uma conclusão contrária” completa Norman Gall, que escreveu reportagens sobre a crise envolvendo o geólogo e o Brasil ao longo dos anos 1960.

O Relatório Link foi publicado pelos jornais brasileiros e repercutiu na imprensa internacional dias após surgir na mesa de Sardenberg, não sem endossarem as críticas que o geólogo e a Petrobras recebiam pela presença dele na estatal.

Mais do que isso, o documento trouxe à tona novamente o velho “problema do petróleo”. Sardenberg precisou ir à Câmara, semanas depois da partida, explicar a um grupo de deputados que o relatório era “sumamente pessimista” e que continha um erro estrutural: olhava para a produção petrolífera brasileira “de um ponto de vista comercial”.

“Mas a Petrobras não concorda com essa opinião, pois para o Brasil o problema do petróleo é de interesse nacional e não comercial”, disse ele à época.

Ainda assim, o “problema do petróleo” escalou tanto que, em meados do ano seguinte, se metamorfoseou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados.

“Talvez tenha sido a primeira crise da história da Petrobras”, sugere Peyerl.

De fato, em fevereiro de 1961, ainda antes da CPI, Sardenberg foi preso acusado de ato de indisciplina contra Jânio Quadros, depois de criticar publicamente o então presidente do país em meio a uma discussão sobre a situação financeira da companhia.

Ele passara os meses anteriores se explicando sobre a quantidade de barris que o Brasil produzia e o quanto essa margem podia aumentar.

Foi seu substituto, Geonísio Barroso quem expressou de forma mais inequívoca o tamanho do impacto do Relatório Link sobre a Petrobras. Chamado para depor na CPI em maio de 1961, ele disse que o documento criou um “clima emocional” pesado dentro e fora da empresa e que, para aplacá-lo, havia ordenado a realização de novos estudos que provassem as previsões “excessivamente pessimistas” de Walter Link.

No final, as pesquisas contratadas reforçaram a tese do geólogo.

O próprio Link foi perguntado, na ocasião, sobre a crise – e respondeu enfático.

“Não é o petróleo o grande problema do Brasil. É a política”, disse ao jornal carioca Última Hora.

“Na verdade, ele nunca ficou muito amargurado com essa história. Amava muito o Brasil, assim como muitos outros norte-americanos daquele tempo”, relembra Gall.

Drielli Peyerl encontrou recentemente cartas que Link trocou com colegas brasileiros depois de voltar para os Estados Unidos. Em uma delas, enviada em março de 1962 para o paleontólogo Frederico W. Lange, ainda lotado na Petrobras, ele questionava a si mesmo se o esforço que havia feito durante a década anterior surtira algum efeito.

“Eu sempre senti que você teria problemas quando eu fosse embora, mas nunca imaginei que, em tão pouco tempo, a empresa completaria seu ciclo e retornaria para o velho regime da CNP”, escreveu, citando a instituição que dera origem à companhia e que insistia em procurar petróleo onshore.

“O sangue, o suor e, sim, até algumas lágrimas, foram derramados por nada”.

A desilusão tinha sentido e objeto: naquele mesmo mês, a Petrobras usara a descoberta de novas áreas de exploração na Bahia para criticar nomeadamente as previsões do geólogo, dizendo que os achados as contrapunham.

Na entrevista coletiva de anúncio da novidade, o então presidente da empresa, Francisco Mangabeira, disse que as bacias baianas superavam o que estava no Relatório Link e, mais do que isso, que, “se a Petrobras tivesse seguido as recomendações daquele relatório, já teria abandonado os trabalhos de exploração em outros Estados”.

Em outra correspondência, de maio de 1963, também remetida a Frederico Lange, Link ainda se mostrava preocupado com a crise que seu prognóstico causou no Brasil.

“Você não sabe o quanto eu lamento que tudo tenha acontecido do jeito que aconteceu. Eu esperava, para o seu bem e para o bem do seu país, que algo muito construtivo e duradouro pudesse ser criado a partir da coisa toda”.

Naquele ano, em paralelo às investidas no território (com a descoberta de Carmópolis em 1963, no Sergipe, que ajudou a acalmar os ânimos políticos), a Petrobras já admitia internamente seguir o conselho de relatório de Walter Link e começar a procurar petróleo offshore. Em 1968, quando finalmente o encontrou no litoral do Sergipe, usava uma plataforma arrendada da Zapata Drilling Company. O poço estava a 28 metros de profundidade.

Demoraria mais quase duas décadas para a previsão se concretizar totalmente: em setembro de 1984, a estatal anunciou a descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro em águas profundas (mais de 300 metros), no campo de Albacora, na bacia de Campos (RJ). O pré-sal, símbolo da autossuficiência brasileira no fóssil, é de 2008.

Mas Link não pôde usufruir do reconhecimento: em 1982, ano em que receberia a maior honraria da profissão, o Sidney Powers Memorial Award, medalha concedida pela Associação Americana de Geólogos de Petróleo (AAPG, na sigla em inglês), ele morreu em sua casa, em Indiana.

O Brasil, por sua vez, se consolidou como um explorador offshore. Hoje é o nono maior produtor de petróleo do mundo, com 3,2 milhões de barris de petróleo por dia. Segundo os dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), quase a totalidade (98%) deles saem do mar.

Fonte: correiobraziliense

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