No ano em que as temperaturas da atmosfera e do oceano bateram recordes mês a mês, a vitalidade do planeta nunca esteve tão baixa, e uma das consequências é que a Terra aproxima-se dos pontos de inflexão ou virada, quando já nada mais pode ser feito para evitar o colapso de um sistema. Um artigo produzido com base em estudos feitos por mais de 15 mil cientistas e um relatório da Universidade das Nações Unidas indicam, a um mês da 28ª Conferência do Clima (COP28), em Dubai, a urgência na adoção de medidas que viabilizem o futuro da humanidade.
Desde 1992, uma coalizão de pesquisadores que, hoje, representam 163 países, acompanha o que chamam de "sinais vitais" da Terra, 35 medidas que monitoram questões como concentração de gases de efeito estufa, integridade das geleiras e preservação de espécies, entre outros. Agora, 20 delas chegaram a extremos recordes, aproximando o planeta do estado terminal, segundo os autores. "A vida no planeta Terra está sitiada e estamos, agora, em um território desconhecido", escreveram.
Em um artigo publicado na revista BioScience, uma equipe de 10 autores, liderada por William Ripple e Christopher Wolf, da Universidade Estadual de Oregon (OSU), nos Estados Unidos, destaca que, embora os alertas sejam feitos há décadas, pouco foi realizado para evitar que a Terra chegasse a esse ponto. Os cientistas ressaltam que as inundações na China e na Índia, as ondas de calor no mundo inteiro e a tempestade mediterrânea que levou à morte de milhares na Líbia são alguns dos sintomas da perda de vitalidade do planeta, e que devem se agravar no cenário business as usual (jargão que representa uma situação sem mudanças).
"Sem ações que abordem a raiz do problema, que é a humanidade tirar mais da Terra do que ela pode oferecer com segurança, estamos no caminho de um potencial colapso dos sistemas naturais e socioeconômicos e rumo a um mundo com calor insuportável e escassez de alimentos e água doce", destaca Wolf, principal autor. "Até 2100, cerca de 3 a 6 bilhões de pessoas poderão se encontrar fora das regiões habitáveis da Terra, o que significa que enfrentarão calor intenso, disponibilidade limitada de alimentos e taxas de mortalidade elevadas."
Particularmente preocupantes, dizem os autores, são os subsídios aos combustíveis fósseis, que duplicaram para mais de US$ 1 bilhão (em torno de R$ 4,99 bilhões) entre 2021 e 2021; os incêndios florestais canadenses, que lançaram mais de 1 gigatonelada de carbono na atmosfera em 2023; e os 38 dias, também deste ano, com temperaturas globais registradas excedendo os níveis pré-industriais em mais de 1,5ºC.
Paris
Em 2009, na COP15, na França, um documento histórico foi assinado: o Acordo de Paris, segundo o qual os signatários se comprometiam a limitar em 1,5ºC o aumento da temperatura até 2100, tendo em comparação os níveis pré-industriais, do século 19. Porém, pouco foi feito até agora, e essa marca não será alcançada.
Para um dos coautores do artigo, Luiz Marques, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não há meios de se cumprir com a meta. "Essa hipótese, que era a meta mais audaciosa do Acordo de Paris, não foi e não será alcançada. A temperatura mundial nos primeiros meses do El Niño é tão extrema, que agora é quase certo que a temperatura média dos últimos 12 meses excederá 1,5ºC em maio de 2024 ou antes", destacou Marques, em uma palestra no Instituto Humanitas da Unisinos.
Há até razões para acreditar, sugerem os autores do artigo, que a temperatura média da superfície global registrada em julho foi a mais elevada observada na Terra em 100 mil anos. Os autores também levantam preocupações sobre os riscos relacionados segurança alimentar, observando que cerca de 735 milhões de pessoas enfrentaram fome crônica em 2022 — um aumento de aproximadamente 122 milhões desde 2019.
Uma falha em agir rapidamente, alertam, poderia resultar em mais de metade da população mundial "confinada para além da região habitável" da Terra, sujeita a um calor letal, com disponibilidade limitada de alimentos e mortalidade elevada. "A vida em nosso planeta está claramente sitiada. As tendências estatísticas mostram padrões profundamente alarmantes de variáveis e catástrofes relacionadas com o clima", disse, em nota, o coautor William Ripple.
Alguns dos danos provocados por ações humanas aos sistemas terrestres são tão graves que se aproximam do momento em que nada mais pode ser feito para revertê-los. A advertência é da Universidade das Nações Unidas, que lança hoje o Relatório de Riscos de Desastres Interligados 2023. O documento lista seis pontos de inflexão, ou de virada, e mostra como cada um deles pode levar a um colapso planetário.
"Os sistemas estão à nossa volta e intimamente ligados a nós: ecossistemas, sistemas alimentares, sistemas hídricos e muito mais. Quando se deterioram, normalmente não é um processo simples e previsível", diz a apresentação do documento. "Em vez disso, a instabilidade aumenta lentamente até que, subitamente, é atingido um ponto de inflexão, e o sistema muda fundamentalmente ou mesmo entra em colapso, com impactos potencialmente catastróficos."
Um exemplo são os reservatórios subterrâneos de água. Os aquíferos são um recurso essencial de água doce, mas mais da metade dos principais estão esgotando mais rapidamente do que podem ser reabastecidos naturalmente. "Se o lençol freático cair abaixo de um nível acessível aos poços existentes, os agricultores podem subitamente ficar sem capacidade de acesso à água, o que coloca sistemas inteiros de produção de alimentos em risco de fracasso. Alguns países, como a Arábia Saudita, já ultrapassaram este ponto de virada das águas subterrâneas; outros, como a Índia, não estão longe disso", assinala o relatório.
"À medida que nos aproximamos destes pontos de inflexão, já começaremos a sentir os impactos", ressalta um dos autores, Jack O'Connor, da Universidade das Nações Unidas. "Uma vez atravessado, será difícil voltar. O nosso relatório pode nos ajudar a ver os riscos que temos pela frente, as causas por trás deles e as mudanças urgentes necessárias para evitá-los."
Insuportável
Outro ponto de inflexão próximo é o de calor insuportável — alterações climáticas induzidas pelo homem que estão causando um aumento global das temperaturas, o que leva a ondas mais frequentes e intensas. Em algumas regiões, os termômetros chegarão a níveis aos quais o corpo humano não consegue sobreviver. O relatório destaca que o calor extremo foi responsável por uma média de 500 mil mortes anualmente nas últimas duas décadas, afetando desproporcionalmente os mais vulneráveis devido a idade, condições de saúde ou profissão, por exemplo.
Em algumas estações meteorológicas, já se registaram temperaturas além do ponto crítico em que o ser humano suporta. O ponto de inflexão, no caso do calor, é o chamada "bulbo úmido", acima de 35°C, que combina temperatura e umidade. Essa última, quando muito elevada, piora os efeitos do calor, pois dificulta a evaporação do suor, necessária para manter a temperatura corporal estável, evitar falência de órgãos e danos cerebrais.
As temperaturas de bulbo úmido ultrapassaram o limiar crítico em pelo menos duas estações meteorológicas, uma no Golfo Pérsico e outra na bacia do Rio Indo, diz o relatório. Segundo a Universidade das Nações Unidas, em Tóquio, até 2070, partes do sul da Ásia e do Oriente Médio Oriente irão além desse ponto regularmente. (PO)
"2023 é o ano em que os recordes climáticos não foram apenas quebrados, mas destruídos. Uma compilação de dados do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo mostra que o verão (no Hemisfério Norte) de 2023 foi o mais quente já registado e ficou 0,66°C acima da média. Com ondas de calor recorde na Europa, América e China, temperatura recorde dos oceanos e derretimento extremo do gelo marinho da Antártida, estamos sentindo todos os impactos das alterações climáticas. Os fenômenos meteorológicos extremos são, agora, comuns e pioram todos os anos — isso é um alerta aos líderes internacionais de que devemos reduzir rapidamente as emissões de carbono agora. Esperemos que esta mensagem chegue à COP28 no Dubai, e que a ação realmente aconteça."
Mark Maslin, Professor de Climatologia da Universidade College London
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