Classificada como pandemia em março de 2020, a covid-19 deixou quase sete milhões de mortos em todo o planeta, segundo a última atualização da Organização Mundial da Saúde (OMS). Passados quase três anos do primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus, cientistas de todo o mundo continuam investigando os efeitos do período crítico da doença na população. Segundo uma pesquisa realizada no Reino Unido, detalhada na última edição da revista The Lancet Healthy Longevity, a emergência sanitária acelerou em 50% o declínio cognitivo de adultos com mais de 50 anos. Mesmo pessoas que não contraíram o Sars-CoV-2 foram impactadas.
Anne Corbett, professora de pesquisa sobre demência na Universidade de Exeter e principal autora do artigo, associa as conclusões da pesquisa sobre a saúde mental dos britânicos às restrições sociais impostas para o controle da doença. "As descobertas sugerem que os confinamentos e outras restrições que experimentamos durante a pandemia tiveram um impacto real e duradouro na saúde do cérebro em pessoas com 50 anos ou mais, mesmo após o fim das medidas de isolamento", assinalou, em um comunicado à imprensa. "Isso levanta a importante questão de saber se as pessoas correm um risco potencialmente maior de declínio cognitivo que pode levar à demência", acrescentou a pesquisadora.
Para o trabalho, as equipes lideradas pelo King's College London e pela Universidade de Exeter, na Inglaterra, analisaram as respostas de testes de função cerebral, feitos on-line por mais de três mil adultos, que já participavam de outro estudo sobre saúde mental, nomeado Protect, anterior à covid-19. Todos os voluntários, com idade entre 50 e 90 anos, moram no Reino Unido. Feito remotamente, a pesquisa avaliou a memória de curto prazo e a capacidade de realização de tarefas complexas.
Os pesquisadores analisaram os dados coletados antes da pandemia — entre março de 2019 e fevereiro de 2020 — e os compararam a informações obtidas nos dois primeiros seguintes. Ao observar os resultados, os especialistas verificaram que o declínio cognitivo acelerou significativamente no primeiro ano da covid-19, com uma alteração de 50% na taxa. Esse percentual foi ainda mais alto quando a análise se concentrou apenas em pessoas que já apresentavam uma leve queda nas funções cerebrais antes do isolamento.
Impacto prolongado
De acordo com o artigo, os cientistas se surpreenderam ao constatar que essa tendência de aceleração continuou no segundo ano da crise de saúde global, indicando consequências que ultrapassaram o período inicial de 12 meses de confinamento. Os pesquisadores acreditam que esse impacto é particularmente relevante para ações de saúde pública voltadas a questões mentais.
"O estudo atual sublinha a importância do monitoramento cuidadoso das pessoas em risco durante grandes eventos, como a pandemia. Conhecemos muitos dos perigos de um declínio ainda maior e agora podemos adicionar a covid-19 a essa lista. Do lado positivo, há evidências de que mudanças no estilo de vida e uma melhor gestão da saúde podem influenciar positivamente o funcionamento mental", disse, em nota, Dar Aarsland, professor de psiquiatria para idosos e pesquisador ligado ao King's College London, que não participou do trabalho.
Neurologista da Beneficência Portuguesa, de São Paulo, Alex Machado Baeta explica que há quatro fatores que agem como uma base para a manutenção da função cognitiva: exercícios físicos, atividades intelectuais, boa alimentação e evitar o isolamento. Segundo o especialista, essa receita deixou de ser seguida por uma grande parte da população durante a fase crítica da covid-19. "Na pandemia as pessoas deixaram, ou então reduziram, a quantidade de exercícios, desbalancearam a dieta, ingerindo mais 'besteiras' e se isolaram socialmente. Isso favoreceu o declínio cognitivo, não só onde a pesquisa foi feita, mas também no Brasil e em outros lugares."
O desequilíbrio em algumas questões citadas por Baeta também foi abordado no estudo. A pesquisa observou que o declínio da acuidade mental parece ter sido agravado por fatores como o aumento da solidão e da depressão, diminuição das atividades físicas e maior consumo de álcool. Ainda de acordo com os autores, trabalhos anteriores têm demonstrado que ser uma pessoa ativa, tratar o transtorno depressivo, retornar à vida em comunidade e o restabelecimento de conexões sociais são formas eficientes de manter a saúde cerebral.
Frederico Jorge, neurologista do Hospital Santa Catarina-Paulista, em São Paulo, considera que os temores provocados pela covid-19 também influenciaram negativamente na forma que o cérebro trabalha. "Com medo a pessoa não quer mais viajar, mesmo sabendo que a pandemia está terminando, não quer mais se socializar. Então, ela muda o padrão de relacionamento, tem um trauma. Para o cérebro isso é péssimo, tanto para o desenvolvimento dele, quanto para seu fortalecimento", assinalou.
De acordo com os pesquisadores, agora, é importante garantir amparo às pessoas com declínio cognitivo precoce, especialmente porque há alternativas viáveis para reduzir o risco futuro de demência. "Portanto, se você está preocupado com sua memória, a melhor coisa a fazer é marcar uma consulta com seu médico de família e fazer uma avaliação", reforçou Anne Corbett.
O neurologista Frederico Jorge enfatiza ser também necessário o engajamento da comunidade para que pessoas com perda cognitiva sejam cuidadas, em especial os mais velhos, que são marginalizados nesse cenário. "Esse declínio pode ser reversível conforme a gente assuma os cuidados de incluir novamente esses indivíduos na sociedade. Deve haver campanhas, apoio, suporte e adaptação. Mas temos que lembrar que estamos falando de pacientes que estão entrando na terceira idade, que tem uma perda neuronal natural, e que essas pessoas já são colocadas em segundo plano na sociedade, a pandemia não é vilã sozinha", concluiu.
"O isolamento teve um impacto muito grande no psicológico de cada um. Percebemos que, mesmo sem qualquer histórico psiquiátrico, a incidência de patologias como depressão, ansiedade, insônia, aumentaram de forma significativa. Os motivos para isso são muitos, mas, dentre os fáceis de descrever, estão o isolamento social, a diminuição do convívio familiar, muitas vezes até a dificuldade de fazer um acompanhamento médico adequado nesse período. Ao considerar uma população específica, que são aquelas pessoas que já apresentavam algum quadro de distúrbio cognitivo, ou um paciente de maior idade, que até então não aparentava ter nenhum problema. Qualquer tipo de evento com impacto na saúde dessas pessoas pode incorrer num prejuízo, inclusive cognitivo. Isso já é muito conhecido. Uma infecção, ou um problema cardiológico, acabam agravando (a questão neurológica), mesmo sem ter uma relação direta. A pandemia foi um evento desse tipo. O isolamento provocado pela pandemia certamente acelerou e agravou a perda funcional."
André Borba, coordenador da equipe de Neurocirurgia e de Dor do Hospital Anchieta
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