22 de Novembro de 2024

‘Ninguém nos disse que essas balas poderiam matar’: as vítimas de celebrações com tiros


Em média, balas perdidas causadas por tiroteios comemorativos no Líbano ceifam sete vidas todos os anos. A cada nova vítima, o debate sobre a razão pela qual esta cultura persiste no país volta à tona.

Carine Torbey, da BBC Árabe, foi em busca de respostas.

Naya tinha apenas sete anos quando foi atingida por uma bala disparada por alguém de um bairro próximo para comemorar o sucesso de um candidato no vestibular. Ela estava brincando inocentemente no parquinho de sua escola em agosto, quando foi atingida na cabeça.

Naya passou 23 dias em coma antes de morrer devido aos ferimentos, gerando uma onda de indignação nas redes sociais.

Uma usuária lamentou a insuportável sensação de perda com a morte de Naya e seu medo de que algo semelhante pudesse acontecer com seus próprios filhos.

Mas em casos de homicídios imprudentes como este, a única informação que pode ser verificada é normalmente a identidade da vítima. O assassino geralmente permanece um criminoso anônimo, livre para levar sua própria vida e talvez alheio ao mal que causou.

“Durante longas noites rezei por Naya quando ela entrou em coma, semanas antes de morrer”, diz Hasmik Harpoyan. Ela não conhece Naya nem sua família - mas tem uma boa ideia de como eles se sentiram.

Há poucos meses, o filho de 13 anos de Harpoyan, V. Christ, jogava uma partida de futebol em um estádio a oeste da capital, Beirute.

Ele foi atingido por uma bala entre as costelas, mas sobreviveu milagrosamente.

A bala ainda está cravada no peito de Christ. Ele me mostra um pequeno ponto em seu corpo onde a bala o atingiu.

Ele não se lembra de ter ouvido o som de balas naquele dia. Tudo o que ele lembra é que de repente sentiu uma dor muito forte nas costas, a ponto de não conseguir mais respirar.

Seu treinador não conseguiu entender por que Christ estava chorando até descobrir manchas de sangue – ele o levou direto para o hospital.

Christ nem sabia o que significava o termo “bala perdida”. Mas hoje, sempre que ouve algum barulho, treme.

“Qualquer som, seja de balas ou de fogos de artifício, me faz perder a cabeça. Corro para a esquerda e para a direita, procurando algo para me esconder.”

Quando a polícia chegou ao hospital, aconselhou a família a registrar uma denúncia anônima.

Eles ligaram de volta para a família de Christ duas semanas depois para dizer que conseguiram identificar 12 pessoas que haviam atirado para o alto naquele dia - eles estavam de luto pela perda de um ente querido. Mas a polícia não conseguiu identificar exatamente quem disparou a bala que feriu o menino.

A família de Christ não apresentou queixa contra ninguém, embora seja ilegal disparar tiros para o ar no Líbano. Desde 2016, quem comete o crime pode ser punido com pena de prisão de seis meses a três anos, multa e confisco de armas.

Se os tiros resultarem em morte, a pena será de trabalhos forçados.

“Mesmo que eu acusasse alguém, ele entraria na prisão por uma porta, sairia por outra e depois viria para minha casa”, diz Harpoyan, ecoando um sentimento geral de que os atiradores são protegidos por líderes políticos e que fazer acusações pode resultar em perseguição.

É certamente verdade que poucas pessoas cumprem penas pelo crime.

Na última véspera de Ano Novo, 242 suspeitos foram identificados por relação com crimes de tiros comemorativos, segundo o jornal libanês Al-Qaws.

O periódico concluiu que não foram tomadas quaisquer medidas contra 186 destes. Outros foram detidos temporariamente, enquanto apenas dois permanecem presos.

Analistas especulam que os detidos provavelmente não conheciam nenhum político ou pessoa influente para socorrê-los.

Vários estudos demonstraram que, embora a velocidade de uma bala em queda seja muito inferior à de uma bala que acabou de ser disparada, ainda é suficiente para ser fatal.

Quando uma bala é disparada, ela é empurrada pela expansão dos gases na câmara em grande velocidade – que pode ser superior a 1.500 metros por segundo (m/s) em uma arma de alta velocidade.

Se disparadas para cima, as balas se moverão sob o efeito dessa aceleração explosiva e continuarão a subir até que a gravidade e a resistência do ar reduzam suas velocidades a zero.

Então as balas farão uma curva descendente e suas velocidades acelerarão devido à gravidade (enquanto a resistência do ar ainda as retardará).

A velocidade terminal de uma bala depende de vários fatores, como a composição da bala, a forma e o calibre e o ângulo de disparo.

De acordo com um estudo de 1962, projéteis de calibre .30 podem atingir velocidades terminais de 91 m/s à medida que caem. Pesquisas mais recentes indicaram que 61 m/s são suficientes para uma bala penetrar no crânio humano.

Um estudo de 2018 descobriu ainda que algumas balas em queda podem atingir velocidades de até 180 m/s e, portanto, podem atravessar o crânio.

Especialistas em cultura de armas argumentam que a prática decorre de pressupostos culturais que ligam as armas à masculinidade e ao ego.

Mas também sugerem que a prática da salva de gala, quando 21 tiros são disparados, ou dos disparos em funerais militares podem ter servido de inspiração para os tiros comemorativos.

Apesar das histórias trágicas, das intensas campanhas de sensibilização dos meios de comunicação e da repetida condenação do fenômeno pelas autoridades religiosas e políticas, muitos ainda insistem no hábito nas celebrações em todo o país. Mas alguns participantes estão começando a se questionar sobre o tema.

Ayman é um ex-atirador. Ele tem 31 anos e mora no oeste de Beirute.

Do telhado de seu prédio, em uma área densamente povoada, ele costumava atirar aleatoriamente para o céu sempre que tinha oportunidade.

“A primeira vez eu tinha 14 anos. Costumávamos atirar para o alto e até competir com jovens de outros bairros.”

Ayman também atirava quando ouvia falar do casamento de alguém "mesmo que não fosse um de nossos conhecidos" ou para comemorar o sucesso de alguém no vestibular. Às vezes ele fazia isso sem motivo algum.

Mas ele abandonou o hábito há vários anos.

“Quando soube que alguém foi morto por bala perdida, comecei a sentir remorso. Quando eu era criança, ninguém nos disse que isso não era masculinidade. Ninguém nos disse que essas balas eram proibidas em todas as religiões porque poderiam matar.”

Ayman não abandonou totalmente a sua arma, mas agora limita o seu uso a clubes de tiro ou áreas remotas.

A prática é comum no Oriente Médio, norte de África, América do Sul, Balcãs e partes da Ásia, incluindo Afeganistão e Paquistão.

Muitas vezes acompanha um evento feliz como a véspera de Ano Novo, um casamento, um feriado religioso ou um bom resultado em provas ou eventos esportivos.

Os disparos para cima também acontecem nos EUA, mas, segundo relatos, é muito mais provável que estejam ligados à violência nas ruas do que aos disparos comemorativos.

Em agosto, o policial jordaniano Hamzeh Al Fanatseh foi morto por uma bala perdida no dia de seu casamento.

Em janeiro, duas pessoas morreram depois que tiros comemorativos foram disparados em uma festa no Michigan, EUA. Em dezembro de 2021, várias pessoas na Carolina do Norte foram atingidas por balas perdidas, incluindo uma mulher que morreu.

Em setembro de 2021, pelo menos 17 pessoas foram mortas e 41 ficaram feridas em Cabul, no Afeganistão, depois de serem atingidos por balas disparadas por militantes talibãs que celebravam a tomada do Vale Panjshir.

Outros exemplos de mortes incluem: três pessoas nas Filipinas que foram atingidas por balas perdidas nas celebrações da véspera de Ano Novo em 2011; um noivo turco que matou três parentes depois de disparar uma AK-47 em seu próprio casamento em 2010; e três pessoas mortas em Bagdá durante as comemorações após a seleção iraquiana de futebol derrotar o Vietnã na Copa da Ásia de 2007.

*Reportagem adicional de Mark Shea e Selin Girit.

Fonte: correiobraziliense

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