22 de Novembro de 2024

A ocupação que se regularizou e se tornou 'mini-Bolívia' em SP


“Uma amiga chegou e falou: ‘Cosme, quer sair do aluguel? Vamos invadir um terreno ali no Parque Novo Mundo?’. Eu tinha cinco filhos em casa, 20 anos pagando o aluguel, a mulher desempregada, com bolso apertado. Aceitei na hora… Foi um reboliço danado, tinha gente demais.”

Quem conta é o comerciante Cosme Correa, de 59 anos, que, com a esperança de melhorar as condições difíceis da família, nos primeiros dias da invasão, escolheu um lote e rapidamente construiu seu sobrado na ocupação sem-teto Douglas Rodrigues, na Zona Norte de São Paulo.

Cosme e a família fazem parte da primeira leva de moradores do aglomerado com 2 mil sobrados de tijolos vermelhos, sem reboco ou pintura, que muda a paisagem da Marginal Tietê, importante via da cidade, formada principalmente por edifícios residenciais de classe média, lojas de decoração e garagens de transportadoras de carga.

O assentamento, um das maiores de São Paulo, com 12 mil pessoas - centenas delas imigrantes bolivianos -, completou dez anos de existência em 2023.

E conseguiu algo raro para movimentos de moradia na maior cidade do Brasil: a desapropriação e o direito de uso da propriedade particular que ocupou de maneira irregular.

Abandonado por 22 anos pela empresa proprietária, o terreno foi ocupado em 2013 por membros do Movimento Independente de Luta por Habitação da Vila Maria (MIVM) e famílias pobres da zona norte.

A ocupação Douglas Rodrigues tem esse nome em homenagem a um jovem morto por um policial militar na região.

Ela cresceu e se transformou em um pequeno bairro popular com milhares de casas e comércio efervescente, embora serviços públicos ainda sejam precários: ruas de terra alagam com chuva forte, falta saneamento básico e as ligações de energia elétrica são clandestinas.

Com a pandemia, esse tipo de assentamento se tornou ainda mais comum em um município cuja fila da moradia social tem 219 mil pessoas cadastradas, segundo a Secretaria de Habitação.

Em fevereiro de 2020, por exemplo, havia 218 ocupações irregulares na cidade. Hoje, são 529 pontos monitorados pela Prefeitura - uma alta de 142% em pouco mais de três anos.

Para a família de Cosme, foi ali onde a família finalmente conseguiu estabilidade financeira depois de sair de Pernambuco para tentar a vida em São Paulo.

Depois de anos de dificuldades, sair do aluguel significou melhorar de renda para investir em outras demandas da família.

“Nada como ter um teto só seu, sem ninguém batendo na porta cobrando o aluguel. Mas vou te dizer: sofremos muito", diz Maria Aparecida Nogueira, de 56 anos, mulher de Cosme, na sala recheada de plantas e com TV de 75 polegadas na parede.

"Aqui, teve enchente, incêndio, bala de borracha da polícia, ameaça de reintegração. Não tinha água ou luz. Fizemos das tripas coração.”

O casal, que prosperou economicamente na comunidade, hoje é famoso na ocupação por ser dono de um bar feito de madeira, ponto de encontro dos imigrantes bolivianos que vivem no bairro.

“Quem movimenta o comércio aqui são os bolivianos. Com o dinheiro deles é que construí minha casa, comprei a geladeira que eu sonhava, minha TV…”, brinca Cosme.

“Quando eles querem festejar, junta uns 15 caras aqui no bar, e eles só saem pela manhã.”

A presença de imigrantes é constante nas vielas e no comércio da comunidade.

Das 2 mil famílias, pelo menos 80 são formadas por bolivianos, mas há também dezenas de colombianos, peruanos e haitianos. Há sempre representantes estrangeiros na direção do assentamento.

Neste ano, um dos escolhidos é Andres Cuarite, de 47 anos, natural de La Paz e que vive há oito anos no bairro colado à Marginal Tietê.

“Se para o brasileiro pobre já é difícil conseguir uma moradia, imagina para um boliviano que chega ao Brasil com as mãos abanando em busca de uma oportunidade de vida, às vezes até passando fome”, explica ele, que saiu de seu país para fugir da pobreza.

Antes da casa atual, Andres levou um golpe: juntou todo o dinheiro da família, R$ 20 mil, e comprou um terreno em Itaquera, periferia da Zona Leste. Mas o terreno não existiam, e o vendedor golpista sumiu do mapa.

Com sete filhos - alguns deles nascidos no Brasil -, a família de Andres vive da renda de uma pequena oficina de costura montada em casa.

O som de máquinas de costura, aliás, é constante nas vielas de Douglas Rodrigues.

Em um sábado no final de setembro, outro ruído produzido pelos bolivianos agitou a comunidade: o som da Banda Murilo, especializada em músicas típicas do país vizinho.

Para comemorar os dez anos da ocupação, foi realizada uma festa boliviana na rua principal.

Além da suingue de metais e percussão, os imigrantes apresentaram danças tradicionais, como a El Morenada, que representa o sofrimento dos africanos traficados para a Bolívia durante a colonização espanhola.

Uma das participantes da Morenada era Rose Mari Mammani, de 46 anos, há seis no bairro. Ela conta que foi parar ali porque não conseguia bancar o aluguel de R$ 600 com três filhos para criar.

Se preparando para entrar em cena, ela contou a dificuldade que foi se estabelecer em São Paulo.

“Tem muito preconceito com boliviano, ainda mais porque somos pobres da classe trabalhadora. Mas aqui, na ocupação, me sinto à vontade”, diz Rose, hoje dona de um mercadinho de produtos bolivianos.

“Só não te levo lá, porque agora vou dançar”, brinca.

Na última década, os moradores de Douglas Rodrigues também enfrentaram uma batalha judicial contra a proprietária do terreno, uma empresa chamada Ideal Empreendimentos Imobiliários SA.

Em maio, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MBD), assinou um decreto de desapropriação da área de 50 mil metros quadrados, abrindo caminho para a regularização fundiária e urbanização do pequeno bairro popular.

A reportagem apurou que a propriedade, declarada de "interesse social" no ano passado, foi avaliada em R$ 7,5 milhões por técnicos da Prefeitura - e o valor deverá ser abatido da dívida de IPTU que a empresa tem com o município.

A Ideal Empreendimentos era uma subsidiária ao grupo Tenório, de Pernambuco, um conglomerado empresarial com uma dívida de cerca de R$ 1 bilhão em impostos com a União, segundo a Receita Federal.

O grupo conseguiu manter a posse do terreno em decisões judiciais de várias instâncias, até que a 33ª Vara Federal de Pernambuco decidiu colocar o movimento de moradia como fiel depositário da área - essa ação correu em paralelo à desapropriação da Prefeitura de São Paulo.

A BBC News Brasil procurou o escritório RPF Advogados, que representa a empresa no processo em São Paulo.

“Agradecemos seu contato, mas, infelizmente, estamos impedidos de fornecer informações sobre esse caso, por força do estatuto da advocacia", respondeu o escritório.

A reportagem não conseguiu contato com a família que comanda o grupo empresarial.

“Foi a resistência e organização de 2 mil famílias engajadas em um movimento político que fez a ocupação conseguir com que a área fosse desapropriada", explica Henrique Ollitta, secretário-geral do MIVM.

"Quando tinha pedido de reintegração, a gente levava milhares de pessoas para a frente do fórum para pressionar o juiz.”

Ao longo dos anos, houve alguns mandados judiciais de reintegração, mas eles nunca foram cumpridos, porque a própria Justiça, em acordos com a Defensoria Pública, Prefeitura e Polícia Militar, adiou as ações por temer o impacto social de ter 2 mil famílias pobres desalojadas em plena Marginal Tietê.

“Nosso movimento foi estratégico ao conversar com todo mundo que pudesse ajudar, sempre com a pauta principal que era a moradia", diz Ollitta, que faz parte dos quadros do PT paulistano.

"Tivemos apoio de igrejas evangélicas e de padres, falamos com políticos de esquerda e direita, com os ex-prefeitos Fernando Haddad e Bruno Covas, e, agora, com Ricardo Nunes.”

Ainda não se sabe se a comunidade passará por obras de urbanização, como calçamento das ruas, instalação de esgoto e rede elétrica, ou se os moradores terão de desocupar toda a área para a construção de moradias sociais.

A Prefeitura afirma que “existe um estudo urbano a ser desenvolvido na região que inclui a construção de unidades habitacionais para as famílias que lá estão”, mas não detalhou os planos.

Enquanto esperam o que será feito do bairro, os moradores comemoraram a desapropriação.

“Hoje, estou embaixo do meu teto. É o paraíso”, diz Cosme Correa, saindo de seu sobrado para ir à festa boliviana.

Fonte: correiobraziliense

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