São 10h30 da manhã nas calmas e amplas ruas do bairro de La Paternal, em Buenos Aires, na Argentina – uma região de pequenos edifícios residenciais, armazéns e estúdios de arte.
Marcela Coll escala e gira sobre um tecido acrobático preto suspenso no beiral da sua escola de circo, chamada Circódromo. Ela desliza graciosamente até cair sobre o tapete e se dirige à garrafa térmica com água quente e ao recipiente cheio de folhas secas de erva-mate.
Coll despeja água sobre as folhas e toma o líquido verde-claro quente resultante pela bomba de metal. E despeja mais água sobre as mesmas folhas em seguida.
Com a garrafa térmica embaixo do braço e a cuia na mão, ela observa uma aluna ser puxada para cima pelo tecido.
Consumido principalmente na Argentina, Uruguai, Paraguai e no sul do Brasil (sem falar na Síria e no Líbano), o tradicional mate ou chimarrão é um chá quente, amargo e cheio de cafeína, preparado com a imersão das folhas secas de erva-mate.
As folhas são colocadas em uma cuia – o recipiente em forma de copo, também chamado de "mate" em espanhol. A cuia pode ser feita de uma série de materiais. A tradicional é de cabaça ou porongo seco, mas existem cuias de madeira, metal, vidro recoberto de couro e de silicone.
A água quente (idealmente a 75 °C, para não queimar as folhas) de uma chaleira ou garrafa térmica é despejada sobre as folhas. O chá resultante é sorvido pela bomba de metal por várias vezes, até surgir um ruído característico, indicando que o líquido dentro da cuia acabou. É hora de despejar mais água e passar a cuia para outra pessoa.
Há pessoas que acrescentam cascas de limão ou laranja, hortelã ou verbena ao chimarrão. Outras fazem uso de ingredientes mais controversos, como açúcar, mel, pó de café e até uísque.
As últimas décadas trouxeram a expansão do consumo da erva-mate fora da América do Sul.
Karla Johan é sommelier de mate na província argentina de Misiones. Ela atribui o fenômeno, em parte, aos jogadores de futebol argentinos e uruguaios, que levaram o hábito de tomar chimarrão para a Europa, quando se mudaram para os clubes locais.
Pode-se até dizer que o chimarrão é a "bebida dos campeões". Na sua viagem até o Catar para disputar – e vencer – a Copa do Mundo de 2022, a seleção argentina levou consigo 240 kg de erva-mate.
"Agora, com [Lionel] Messi morando em Miami [EUA], ele se tornou um grande embaixador da erva-mate, como uma vitrine viva do consumo de chimarrão", segundo Johan. Detalhe: Messi consome erva-mate do Uruguai e não da Argentina.
Recentemente, a plataforma de mensagens WhatsApp introduziu o emoji de chimarrão, indicando o aumento da popularidade da erva-mate entre as pessoas que buscam manter estilo de vida mais saudável na era pós-pandemia.
A erva-mate, segundo Johan, contém níveis mais altos de antioxidantes do que o chá verde e o vinho tinto, uma poderosa combinação de vitaminas (A, B, B1, B2 e C), 15 aminoácidos e diversos sais minerais (ferro, magnésio e potássio) provenientes do solo argiloso onde a planta é cultivada.
Estas qualidades talvez expliquem por que o chimarrão é um remédio comum contra a ressaca na Argentina e no Rio Grande do Sul, onde o chimarrão é onipresente – um fiel companheiro para as grandes e pequenas tarefas do dia a dia.
Mas, ao contrário do chá e do café, o chimarrão não costuma ser consumido em cafeterias. Ele está presente em casa, no trabalho, nos parques, no transporte público, na sala de aula e na academia de ginástica.
"Eu me lembro de tomar grandes decisões tomando chimarrão, como o Circódromo", conta Coll.
"O mate sempre faz parte dos momentos mais criativos da minha vida. E, quando acordo de manhã, a primeira coisa que digo é matecito, matecito... Mas o mate não serve apenas para acordar; é também algo mais social, para compartilhar", explica ela.
A tradicional roda de chimarrão, com a cuia passando de mão em mão, e o consumo da erva-mate em geral têm origem entre os povos indígenas guaranis. O grupo existe há pelo menos cerca de 1,5 mil anos e vive até hoje no território que forma o sul do Brasil, o norte da Argentina e o Paraguai.
Os guaranis acreditavam nos poderes espirituais da erva-mate. Para eles, "compartilhar o mate era uma forma de unificar os seus espíritos", afirma Diego Morlachetti, mestre do chá e um dos diretores da Escola de Chá da Universidade Aberta Interamericana, na Argentina.
Para os guaranis, a erva-mate também era uma rica fonte de diversos nutrientes e servia como supressor do apetite. Estas duas propriedades os ajudavam a sobreviver por longas caminhadas.
Os indígenas usavam a erva-mate para tingir tecidos, tratar problemas do fígado e até como parte dos seus rituais religiosos, purgando-se para purificar o seu espírito. Na verdade, foi esse ritual de purga que chamou a atenção dos missionários jesuítas que chegaram da Europa em meados dos anos 1500.
"Os jesuítas inicialmente proibiram o consumo da erva-mate, quando observaram que o povo guarani, às vezes, exagerava no consumo e vomitava", explica Johan.
"Mas, depois, os jesuítas perceberam que poderiam comercializar a erva-mate. Por isso, eles formaram plantações e vendiam erva-mate nos dois lados do Rio da Prata [que, hoje, separa Buenos Aires da costa oeste do Uruguai], para a Bolívia, o Peru e o sul do Chile."
A produtora de erva-mate Marina Parra mantém uma fazenda orgânica em Misiones, no nordeste da Argentina. Ela afirma que "o mate faz parte da nossa identidade ancestral, mas, infelizmente, o uso de herbicidas e fertilizantes nas plantações se espalhou de forma alarmante. O solo sofreu erosão e ficou empobrecido."
Parra faz parte de um grupo número cada vez maior de produtores que promovem a gestão sustentável da produção de erva-mate, para gerar plantas mais resistentes às mudanças climáticas. Eles adotaram mudanças como a incorporação de árvores nativas para fornecer sombra, insetos polinizadores, safras de cobertura, composto e esterco.
Atualmente, cada país apreciador de chimarrão tem a sua própria combinação preferida da erva.
Na Argentina, as folhas de erva-mate são envelhecidas naturalmente por até dois anos e contêm pequenos galhos da planta. Já o Uruguai combina folhas envelhecidas com outras em pó, com a mínima quantidade de galhos. Esta mistura é conhecida pela longa duração do seu sabor.
A erva-mate brasileira pode ser imediatamente reconhecida pela sua coloração verde-neon e sua aparência de pó, já que as folhas não passam pelo envelhecimento e são moídas finas. Este processo resulta em um sabor suave e levemente adocicado.
E o Paraguai, com seu clima tropical úmido, é mais convidativo para o consumo da erva-mate com água fria – o chamado tereré. Por isso, a erva-mate do país inclui a adição de frutas e ervas secas. A combinação mais famosa inclui boldo e hortelã.
Embora os consumidores mais experientes sejam fiéis à forma mais tradicional de chá quente, diversas marcas argentinas encontraram outros usos para a planta, como o gim artesanal com infusão de mate (Apóstoles e Kalmar), a cerveja artesanal (Laska), kombucha sabor mate (Aloja) e erva-mate em pó para uso em massas e até em cremes de beleza.
E é claro que três dos pratos mais populares da Argentina também receberam o toque da erva-mate: o sorvete da Helados Garavano, na província de Corrientes, os tradicionais alfajores e a pizza com cobertura de mussarela sabor erva-mate, invenção da pizzaria Dolce Vita na cidade de Apóstoles, em Misiones.
Nas últimas décadas, marcas como a norte-americana Guayakí e a alemã Club-Mate passaram a oferecer erva-mate na forma de refrigerante ou energético saudável com sabor de frutas, em latas e garrafas. Agora, diversas marcas argentinas, como Yará (do produtor de erva-mate Origen) e Yací, vendem localmente esta releitura do chimarrão.
Só o tempo irá dizer se essas novas tendências terão sucesso nos países onde o chimarrão é uma tradição nacional ou regional.
Diego Morlachetti acredita que a versão do mate pronto para beber pode funcionar para o mercado norte-americano, mas, "na Argentina, o mate sempre foi questão de ritual".
"O chimarrão não é algo prático. Você precisa da cuia, da bomba, das folhas de erva-mate e da garrafa térmica com água quente. Mas esta é a sua beleza."
Para Morlachetti, o chimarrão "é feito para compartilhar".
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
Fonte: correiobraziliense
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