Na semana em que o Brasil sofre com uma onda excepcional de calor, com sensação térmica de 58ºC no estado do Rio de Janeiro, um relatório global aponta o agravamento dos riscos à saúde associados às mudanças climáticas. Na oitava edição do Lancet Countdown, uma equipe internacional de cientistas alerta que, em 2022, 86 dias registraram médias que expõem a população mundial a riscos. O esperado seriam 60 dias, sem as alterações na temperatura associadas à atividade humana. Ao mesmo tempo, um documento da Organização das Nações Unidas adverte que os compromissos assumidos pelos signatários de Paris reduzirão em apenas 2% as emissões de gases de efeito estufa até 2030, comparado a 2019. A recomendação era um corte de 43%.
O cenário atual de emissões coloca a Terra a caminho de um aquecimento de 2,7ºC até 2100, comparado ao fim do século 19, o que conduz o planeta a condições insustentáveis, mostram os dados. "Nosso balanço sobre a saúde revela que os riscos crescentes das mudanças climáticas estão custando, hoje, vidas e meios de subsistência em todo o mundo", declarou, em nota, Marina Romanello, diretora-executiva da Lancet Countdown, uma iniciativa da Universidade College London, na Inglaterra.
A cada segundo, são emitidas 1.337 toneladas de dióxido de carbono, lembrou Romanello. "Há um enorme custo humano gerado pela inação, e não podemos arcar com esse nível de falta de comprometimento: estamos pagando com vidas humanas. Cada instante que postergamos torna o caminho para um futuro habitável mais difícil e a adaptação cada vez mais cara e desafiadora."
Perdas de vida
As mortes relacionadas ao calor devem aumentar quase cinco vezes até 2050. Entre 1990 e 2000, houve um acréscimo de 85% nos óbitos de pessoas com mais de 65 anos devido às altas temperaturas, diz o relatório, produzido por 114 especialistas de 52 instituições de pesquisa e agências da ONU. Dos 86 dias de temperaturas ameaçadoras registrados no ano passado, 60% tiveram a probabilidade de ocorrer mais que dobradas devido às mudanças climáticas antropocêntricas.
"O calor leva à perda excessiva de líquido e sais minerais pela pele, então há um aumento no risco de distúrbio hidreletrolítico no sangue e desidratação. Além disso, as altas temperaturas causam uma vasodilatação, exigindo que o coração tenha que fazer muito mais esforço para bombear o sangue para a periferia", explica Deborah Beranger, endocrinologista pós-graduada na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ).
A cirurgiã vascular Aline Lamaita, da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular, explica que as temperaturas altas sobrecarregam as veias dos membros inferiores. "O risco de problemas vasculares como trombose aumenta, e a incapacidade de a pele se resfriar adequadamente durante eventos de alto calor pode levar a insolação e morte."
Há, ainda, o risco das doenças respiratórias. "Estudos revelam um aumento da mortalidade hospitalar no verão, claramente relacionado à temperatura ambiente elevada, com óbitos causados por pneumonia, bronquite aguda, bronquiolite, doença obstrutiva ou insuficiência respiratória", destaca a pneumologista Sandra Dorado, da Sociedade de Cirurgia Pneumológica e Torácica.
As mudanças climáticas também aceleram a propagação de doenças infecciosas potencialmente letais. O relatório Lancet Countdown destaca que o aquecimento dos oceanos aumentou a área litorânea mundial adequada para a disseminação de bactérias Vibrio (que podem causar doenças como cólera) em 329 km a cada ano, desde 1982. Isso coloca 1,4 bilhão de pessoas em risco de diarreias e infecções graves, além de sepse. Até meados do século, os casos devem aumentar 39%. A incidência de dengue cresceu quase 30% em quatro décadas, com potencial de que a transmissão da enfermidade se eleve mais 37% em 2050.
Recordes mundiais
Em 2023, o mundo passou pelas temperaturas globais mais altas em mais de 100 mil anos e recordes de calor foram quebrados em todos os continentes, uma amostra do que se pode esperar nos próximos anos, alertam os cientistas. "O fato de estarmos vendo esse recorde de calor significa um sofrimento humano recorde", analisa Friederike Otto, professor sênior em ciências climáticas do Instituto Grantham do Imperial College, que não participou do estudo. "Neste ano, ondas de calor extremas e secas agravadas por essas temperaturas extremas causaram milhares de mortes, pessoas perderam os seus meios de subsistência, foram deslocadas. É por isso que o Acordo de Paris é um tratado de direitos humanos, e não cumprir os seus objetivos é violar os direitos humanos em grande escala", avalia.
"Diante de projeções tão aterrorizantes, a adaptação por si só não consegue acompanhar os impactos das mudanças climáticas e os custos estão se tornando rapidamente insuperáveis", disse, em nota, Stella Hartinger, diretora do Centro Regional da Lancet Countdown para a América Latina. "Nós devemos fazer mais do que o tratamento dos sintomas de saúde. Temos de nos concentrar na prevenção primária. As causas-raiz das mudanças climáticas devem ser combatidas pela aceleração rápida da mitigação em todos os setores, para garantir que a magnitude dos riscos à saúde não viole a capacidade de adaptação dos sistemas de saúde."
Para Marina Romanello, porém, ainda há tempo de reverter as tendências sombrias. Ela destaca a importância de se discutir a saúde na Conferência do Clima, a COP28, que começa no fim do mês em Dubai. "Se as negociações climáticas levarem a uma eliminação rápida e equitativa dos combustíveis fósseis, acelerarem a mitigação e derem apoio aos esforços de adaptação para a saúde, as ambições do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5°C ainda são atingíveis e um futuro próspero e saudável está ao nosso alcance", afirma.
== Principais conclusões
A falta de medidas para evitar ou adaptar-se às alterações climáticas até agora deixou a humanidade exposta a riscos à saúde.
Exposição a temperaturas que ameaçam a vida:
» Sem mudanças climáticas causadas pelo homem, seriam esperados 60 dias/ano;
» Entre 2018 e 2022, a média foi de 86 dias/ano. 60% desses dias estão associados às mudanças climáticas antropocêntricas;
» Mortes por calor de pessoas com mais de 65 anos aumentaram 85% de 1990 a 2000 — 38% a mais do que o esperado se as temperaturas não tivessem mudado.
Doenças infecciosas associadas às mudanças climáticas aumentam:
» Vírus do oeste do Nilo: +4,4%
» Dengue por Aedes aegypti: +28,6%
» Dengue por Aedes albopictus: +27,7%
*Comparação entre os períodos
1951-1960 e 2013-2022
Se o aumento da temperatura atingir 2°C já em meados do século:
» As mortes podem estar relacionadas ao calor são projetadas para aumentar em 370%;
» A perda de trabalho relacionada ao calor é projetado para aumentar em 50%;
» 524,9 milhões de pessoas a mais devem experimentar insegurança alimentar moderada a grave;
» O potencial de transmissão de dengue deve aumentar em até 37%.
Impactos econômicos:
» 27% das cidades pesquisadas declararam preocupações;
com a sobrecarga dos sistemas de saúde devido aos impactos das alterações climáticas;
» 490 bilhões de horas de trabalho em potencial foram perdidas em 2022 devido à exposição ao calor;
» Em 2022, eventos climáticos extremos causaram US$ 264 bilhões em perdas globalmente.
Fonte: The Lancet Countdown
As tempestades de areia e poeira são um problema subestimado e agora "dramaticamente" mais frequente em alguns locais do mundo, com pelo menos 25% do fenômeno atribuído a atividades humanas, segundo a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD). O alerta surge no momento em que se realiza uma reunião de cinco dias em Samarcanda, no Uzbequistão, para fazer um balanço do progresso global na implementação da Convenção, uma das três originadas na Cúpula da Terra de 1992, no Rio de Janeiro.
"A visão de nuvens escuras de areia e poeira engolindo tudo em seu caminho e transformando o dia em noite é um dos espetáculos mais intimidantes da natureza", disse, em nota, Ibrahim Thiaw, secretário-executivo da UNCCD. "Elas representam um desafio formidável para alcançar o desenvolvimento sustentável. No entanto, tal como as tempestades de areia e poeira são exacerbadas pelas atividades humanas, também podem ser reduzidas por meio das ações humanas", acrescentou Thiaw.
Poucos passos
Embora as tempestades de areia sejam um fenômeno natural regional comum e sazonal, o problema é agravado pela má gestão da terra e da água, pelas secas e pelas alterações climáticas, de acordo com especialistas da UNCCD. Com impactos muito além das regiões de origem, estima-se que 2 bilhões de toneladas de areia entram agora na atmosfera todos os anos, uma quantidade equivalente em peso a 350 Grandes Pirâmides de Gizé.
Ontem, a ONU também alertou em um relatório que, a apenas duas semanas do início da Conferência do Clima de Dubai, a COP28, a comunidade internacional deu poucos passos para evitar a crise climática. Em um relatório, o organismo avaliou as contribuições voluntárias para reduzir as emissões de gases do efeito estufa assumidas pelos 195 signatários do Acordo de Paris de 2015.
Incluindo as 20 novas contribuições revisadas até o fim de setembro, o relatório não mostra tendência de queda nas emissões. Para conter o aquecimento global do planeta e alcançar um aumento máximo de temperatura de 1,5°C, os gases de efeito estufa devem ser reduzidos em 43% até 2030 na comparação com os níveis de 2019.
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