Os antigos salões e corredores da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (EBA-UFBA), no bairro do Canela, em Salvador, estão vivendo dias efervescentes.
Tudo por causa de uma pintura do século 19 conhecida como Alegoria da Lei Áurea, que ilustra a princesa Isabel e a assinatura da lei que oficialmente encerrou a escravidão no Brasil.
Uma campanha iniciada pelos estudantes exigiu que o quadro do pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares, produzido em 1888, fosse retirado de uma das galerias da faculdade.
O grupo lançou em outubro um abaixo-assinado na internet, subscrito por 550 pessoas, no qual argumenta que a pintura seria racista, representaria a abolição de maneira equivocada e mostraria a população negra de maneira subserviente aos brancos.
O quadro, que faz parte do acervo da instituição, foi colocado em exibição em 2017 como parte de um memorial dedicado aos fundadores e importantes docentes.
Miguel Navarro y Cañizares foi um dos fundadores da escola, criada em 1877 durante uma passagem dele por Salvador.
O alunos também pedem que a universidade faça uma “retratação pública” e exigem a mudança do nome de uma das galerias que atualmente homenageia o pintor.
“Propomos um exercício crítico e aberto à comunidade interna em torno dos pactos sustentados pela branquitude, o que tem assegurado a permanência do quadro descrito e a respectiva ausência de debate e comoção em torno de mais uma violência”, diz a petição.
No entanto, a campanha também foi alvo de críticas de que o pedido de retirada da obra seria um gesto "autoritário e violento" e um exemplo de "intolerância".
Segundo os alunos, no dia 31 de outubro, a obra teria sido retirada pela universidade da galeria Juarez Paraiso, cujo nome é uma homenagem ao artista, crítico e um dos primeiros professores negros da EBA.
A UFBA e a EBA não responderam, no entanto, aos contatos da BBC News Brasil para confirmar que a retirada de fato ocorreu nem aos pedidos da reportagem para que comentasse as críticas e demandas dos alunos.
Com referências cristãs, a pintura de Miguel Navarro y Cañizares ilustra o fim da escravidão como um presente da monarquia aos negros escravizados.
Essa interpretação da Lei Áurea, que por décadas retratou a princesa Isabel como uma figura redentora, é contestada pelo movimento negro, que enxerga o fim do regime escravista como uma conquista de uma luta popular que durou séculos.
Na obra, a princesa Isabel, que assinou a lei em 1888, é mostrada em um altar, segurando uma cruz onde está escrito “a redenção” e “Deus caridade”, além de um livro em referência à nova legislação e um busto do Imperador D. Pedro 2°, ao lado.
Isabel está cercada por autoridades e figuras da sociedade - há quem diga que uma delas é Luiz Gama, famoso advogado abolicionista do século 19, mas não há confirmação disso.
Na parte de cima, há três anjos e um homem representando Deus.
Abaixo, estão duas mulheres negras descalças e ajoelhadas, uma delas segurando um bebê, ambas em um gesto de agradecimento e reverência à princesa.
Há também uma mulher de pele clara, com os pés cobertos por um pano, que seria a representação da parcela branca dos pobres brasileiros.
Para a atriz Aline Brune, doutoranda em Artes Visuais pela EBA, a pintura faz parte de uma série de produções artísticas que funcionam como “gatilhos violentos” pela forma como a população negra é representada.
“Como mulher negra e primeira da família a fazer pós-graduação e frequentar ambientes de arte, é muito frustrante e violento entrar na universidade e ver um quadro com outras mulheres negras ajoelhadas diante da princesa Isabel”, diz a artista, que faz parte do movimento que pediu a retirada da obra.
“A pintura nos faz pensar nas representações do corpo negro como subalterno aos brancos, nas distorções da história e na construção de narrativas tão difíceis de mudar na sociedade”.
O incômodo levou Aline Brune a criar novas pinturas a partir do quadro de Cañizares. A série de seis imagens se chama O que fazer diante de uma pintura racista? – duas delas ilustram esta reportagem.
Já o curador Uriel Bezerra, doutorando em Artes Visuais pela EBA, diz que a exposição do quadro gerava “dor e sofrimento simbólico” em estudantes que circulavam diariamente pelo campus.
“Por que escolher logo essa pintura para expor em um memorial dos fundadores da escola, inclusive em uma posição de destaque na galeria?”, questiona o curador.
"O abaixo-assinado se volta para o contexto de exibição e à postura esquiva da Escola de Belas Artes, que tergiversa em relação ao debate que precisa ser feito sobre essa imagem."
Uma das críticas dos estudantes é que a obra estava exposta sem qualquer explicação histórica sobre a abolição e a relação da pintura com o racismo.
“Só havia uma placa com informações técnicas do quadro”, diz Bezerra.
Para Ana Luisa Ribeiro, professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia e doutoranda em Artes Visuais pela EBA, outro problema é que a exposição “tratava Alegoria da Lei Áurea de forma laudatória e comemorativa”.
“Como professora, entendo que não tem como mostrar a arte sem a educação sobre o racismo e projeto de pesquisa", diz.
"Representações racistas não podem em hipótese alguma ser exibidas de forma apologética.”
Por outro lado, o movimento dos estudantes foi alvo de críticas dentro da universidade.
Uma delas foi publicada por Wilson Gomes, professor de Teoria da Comunicação da UFBA, em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo.
No artigo, o professor usa o abaixo-assinado como um dos exemplos que o ajudam a concluir que a sociedade vive “uma nova era de intolerância”.
Para ele, isso é resultado de ações da "extrema-direita" e também da chamada “esquerda identitária”.
Gomes diz que a extrema-direita tentou nos últimos anos proibir livros, quadros, cantores e comediantes, entre outras manifestações e artistas.
“A lista da esquerda não é muito menor. Mudam as justificativas, resta a intolerância”, escreveu.
Nos últimos anos, surgiram em alguns países, como Estados Unidos e Brasil, movimentos populares que contestaram a exibição pública de obras que retratam figuras da escravidão.
“O princípio da tolerância tem dois componentes: as formas de vida são essencialmente diversas; a decisão de que uma fé, doutrina ou obra é falsa não é critério legítimo para desrespeitar quem a sustenta, proibir a sua existência ou atuar de forma autoritária ou violenta contra ela.”
Sobre o caso da pintura, Wilson Gomes escreveu: “Assim, o quadro deve ser enclausurado, para que a ninguém ofenda ilustrando um passado que não queremos ver ou refletindo uma época em que não se pensava como nós”.
O pintor Miguel Navarro y Cañizares nasceu em Valência, na Espanha, em 1834, e morreu no Rio de Janeiro em 1913, segundo dissertação de mestrado da pesquisadora Viviane Rummler da Silva na Escola de Belas Artes.
Premiado na Europa por suas telas de temática cristã, ele emigrou para a Venezuela ao ser contratado pelo arcebispo de Caracas.
Porém, quando chegou à cidade, descobriu que o religioso tinha sido exilado a mando do general Antonio Gusmán Blanco, que governou a Venezuela por 13 anos e enfrentou forte oposição da Igreja Católica.
Cañizares então passou a trabalhar para o próprio presidente, fazendo diversos retratos oficiais do caudilho.
Mas sua situação financeira não era das melhores, levando-o a se mudar para o Brasil em 1876, “provavelmente informado das excelentes oportunidades que este país oferecia a artistas estrangeiros”, aponta a tese publicada em 2008.
Segundo Rummler da Silva, a corte da época gostava de decorar suas paredes com obras encomendadas a pintores europeus.
Cañizares foi viver em Salvador, onde foi professor do Liceu de Artes e Ofícios. Em 1877, fundou a Escola de Belas Artes, que se tornaria central para a produção e ensino das artes visuais na Bahia.
Quatro anos depois, o pintor se mudou para o Rio de Janeiro, aproximando-se do imperador Dom Pedro 2°. Viveu ali por 31 anos.
“O Estado e sua elite econômica encomendavam pinturas para representar sua visão da história. No caso da Lei Áurea, a ideia era dizer que a abolição foi uma dádiva e que tinha essa mesma elite como protagonista”, explica Kleber Amancio, professor de História e Crítica da Arte da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Cañizares tem outro quadro considerado racista pelo movimento negro. A obra Alegoria à Lei do Ventre Livre está no acervo da Igreja Nosso Senhor do Bonfim, que inclusive aparece no cenário da tela perto de um Jesus Cristo crucificado.
A imagem foi encomendada por José Maria da Silva Paranhos, o visconde de Rio Branco, político baiano que era uma espécie de primeiro-ministro do Império quando, em setembro de 1871, lhe coube a tarefa de assinar a lei que daria liberdade a bebês nascidos de mulheres escravizadas.
“Visconde aparece em trajes de gala, de pé em meio a um grupo de escravos (homens, mulheres e crianças) e, com o olhar direcionado ao horizonte, empunha contra o peito um papel com a inscrição: ‘Lei de 28 de setembro de 1871’”, descreveu a pesquisadora Rummler da Silva.
“Com a mão esquerda afaga a cabeça de uma mulher escrava que, sentada aos seus pés e trazendo ao colo um bebê e outra criança apoiada às costas, o reverencia estendendo a mão.”
Para Kleber Amancio, a campanha contra a obra se Cañizares “reflete uma presença maior de estudantes negros, oriundos de medidas afirmativas como as cotas, em ambientes de arte e ensino historicamente frequentados apenas pela elite branca”.
“O ethos da arte brasileira, essencialmente branca, começou a ser questionada veementemente”, diz.
"A relevância de uma obra de arte se dá pela maneira como as pessoas olham para ela hoje. Há uma demanda grande para que se discuta cada vez mais a relação entre arte e política."
Segundo o professor, alguns museus têm apresentado telas consideradas racistas ao lado de releituras de outros artistas negros ou mesmo em contraste com obras do próprio pintor.
O objetivo seria provocar o público à reflexão sobre o racismo nas artes.
Ele cita a tela A negra, de Tarsila do Amaral, que fez parte da mostra "Tarsila Popular", no Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 2019.
Tarsila teria se inspirado em uma fotografia de uma antiga empregada de sua família para compor a figura de uma mulher negra, nua, com traços deformados.
“Acho esse quadro racista pela maneira como representa a mulher negra da classe trabalhadora”, diz Amancio.
No Masp, diz o professor, ela foi exposta ao lado de um autorretrato de Tarsila, feito no mesmo ano.
"Mas era bem diferente. Era uma Tarsila jovem, moderna, arrojada e bem vestida", diz Amancio.
“O público vê as duas obras juntas, e logo reflete: por que a artista pintou, no mesmo ano, uma mulher negra de maneira sexualizada e deformada, mas não fez o mesmo em seu autorretrato?”
Fonte: correiobraziliense
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