*Atenção: este texto cita crimes que podem ser considerados perturbadores
A atuação de facções criminosas tem avançado nos Estados da Amazônia, atingindo um grande número de municípios e contribuindo para índices de violência muito acima da média do Brasil, mostra um estudo publicado nesta quinta (29), pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
A pesquisa mapeou a presença de 22 facções nacionais e estrangeiras em 178 municípios da região, nos quais vive mais da metade da população (57,9%).
Além disso, cerca de um terço do total dos moradores (31,12%) da Amazônia vivem em municípios onde há disputa por poder e território entre organizações criminosas.
As consequências, mostra a pesquisa, são índices de violência muito acima aos do resto do Brasil.
A taxa média de mortes violentas intencionais foi de 33,8 em cada 100 mil habitantes, um número 45% maior do que a média nacional (de 23,3 para cada 100 mil habitantes).
Cerca de 15 municípios — a maioria no Pará e no Mato Grosso — conviveram com uma violência ainda mais extrema, de 80 mortes por cada 100 mil habitantes.
Outros marcadores de violência acompanham essa alta: a taxa de feminicídio é 30,8% maior na Amazônia do que no resto do Brasil e a taxa de estupros é 33,8% superior à média nacional.
A região tem uma importância estratégica para organizações criminosas, que buscam controlar as rotas de transporte de drogas tanto para distribuição no Brasil quanto para o repasse para outros países, explica Renato Sergio de Lima, pesquisador do FBSP e um dos coordenadores do estudo Cartografias da Violência na Amazônia.
A pesquisa foi feita na Amazônia Legal, região composta pelos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do Maranhão.
A atuação das facções, entretanto, não se resume ao tráfico de drogas. Segundo os pesquisadores, elas passaram a controlar cada vez mais redes criminosas mais amplas, que envolvem desde trabalho análogo à escravidão, exploração sexual e invasão de terras indígenas até crimes ambientais como exploração ilegal de madeira e minérios, tráfico ilegal de animais e pesca predatória.
“As facções vão ocupando o território e o gerindo a partir de uma simbiose entre crimes ambientais, grilagem de terra, narcotráfico e o tráfico de armas”, explica Lima. “Dá para dizer, sem nenhuma margem de erro, que hoje o principal inimigo da Amazônia, o principal inimigo do Brasil, é o crime organizado.”
A dinâmica do crime local começou a mudar principalmente a partir de 2016, diz o pesquisador, quando a organização criminosa Comando Vermelho (CV) fez uma parceria com a facção local Família do Norte para usar a rota de Tabatinga (AM) como principal via de abastecimento de drogas, principalmente cocaína e skank (ou skunk, maconha de efeitos altamente potentes).
“Hoje essa rota é a segunda mais importante do país”, explica Lima. “Só perde para a rota que o Primeiro Comando da Capital (PCC) controla em Ponta Porã (MS).”
Além da presença do CV (de origem carioca) e o do PCC (criado em São Paulo), há a atuação de organizações criminosas locais, como os grupos Bonde dos 13, Deus da Morte, Os Crias, Cartel do Norte, entre outros.
Resultados dos inúmeros processos históricos de ocupação da região, a violência não é uma novidade nos Estados da Amazônia, explica Lima. Mas no caso das facções, há uma diferença.
“As frentes de expansão sempre foram como a borracha, por exemplo, onde os seringueiros iam para dentro da floresta, tiravam a borracha e iam embora. Com o garimpo, as pessoas vão, tiram os minérios e vão embora deixando condições precárias de vida para quem fica”, diz ele.
Com as facções, o processo acontece de forma diferente, de dentro para fora, explica Lima, porque elas precisam ocupar o território de forma permanente para poder consolidar as suas rotas e, inclusive, brigar com as demais facções que tentam ter esse controle.
“As facções ficam no território. Elas usam, por exemplo, a estrutura do garimpo para escoar drogas e a economia local para lavar dinheiro. Vão conectando o território. O que a gente percebe é que, no fundo, a região virou quase como um enorme hub logístico do crime organizado”, diz Lima.
“Assim como a Zona Franca de Manaus passou a ter importância estratégica para a produção industrial, a região amazônica passou a ter uma importância estratégica para a economia do crime.”
Nos últimos anos, fatores como a diminuição da fiscalização ambiental na Amazônia e o aumento de presos em prisões superlotadas e precárias (usadas como local de recrutamento) contribuíram para a consolidação das facções na região, aponta o estudo.
A pesquisa identificou também a atuação de pelo menos 10 organizações criminosas internacionais nas regiões de fronteira, que atuam em conjunto com os grupos brasileiros e em outras vezes disputam rotas e territórios.
Desdobramentos políticos recentes em países vizinhos também contribuíram para ampliar essa atuação, explica Rodrigo Chagas, pesquisador da Universidade Federal de Roraima (UFRR) que também participou da pesquisa do FBSP.
Alguns exemplos são a crise na Venezuela e os acordos de paz entre o governo da Colômbia e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Depois disso, foi registrada nas regiões de fronteiras da Amazônia brasileira a presença de grupos dissidentes das Farc, como a Frente Armando Rios, Frente Carolina Ramirez e Frente Segunda Marquetalia, além de facções peruanas, como Clã-Chuquzita, Comando de Las Fronteiras e Los Quispe-Palamino.
Em Roraima, o grupo venezuelano Trem do Aragua e os brasileiros CV e PCC disputam o controle. Há indícios também de novas facções da Venezuela atuando na capital, Boa Vista.
Apesar da presença dos criminosos estrangeiros no Brasil, a ampliação da atuação dos grupos brasileiros nos outros países da América Latina é bem mais proeminente, explicam os pesquisadores.
“Os grupos brasileiros é que estão indo em direção a esses países e constituindo controle. Se antes eles faziam contato com os grupos estrangeiros para ter acesso às rotas, hoje a gente vê a presença do PCC e do CV nos territórios desses países”, diz Lima.
Não há, segundo o estudo, um grupo que possa ser considerado hegemônico na região. As disputas de poder, inclusive, levam a conflitos de extrema violência, como o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) em Manaus, em 2017, que resultou na morte de 54 pessoas, algumas delas decapitadas. Acre, Amazonas, Roraima e Amapá são os Estados onde as disputas têm sido mais intensas nos últimos anos.
No entanto, seria possível perceber que o PCC e o CV são tanto as facções com maior controle no Brasil quanto as que mais atuam nos países vizinhos da região.
O PCC tem atuação na Bolívia, na Guiana, na Guiana Francesa, no Suriname e na Venezuela. Já o CV tem presença registrada no Peru e na Bolívia.
“Pensando nos nove países que compõem a Amazônia, o PCC é o único grupo da região que está presente no Brasil e em mais cinco países”, destaca Lima.
A pesquisa pontua que o aumento do narcotráfico pode ser verificado inclusive por outros indicadores, como o aumento de apreensões de cocaína pelas polícias federal e estadual.
Entre 2019 e 2022, a apreensão de cocaína pelas polícias locais cresceu 194%, com um total de mais de 20 toneladas em 2022.
Mas o estudo destaca que, nesse mesmo período, as apreensões pelo Exército e pela Marinha tiveram um volume quase insignificante. Em 2022, por exemplo, a soma de maconha e cocaína apreendida por ambos os órgãos não chegou a 4 toneladas.
A integração da atuação do Exército e da Marinha com as polícias locais, a Polícia Federal e instituições como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) é uma das iniciativas apontadas pelos pesquisadores como essenciais para combater as facções. Também é preciso investir em investigação para esclarecer crimes, reduzir a impunidade e melhorar as condições do sistema penitenciário.
Mas segundo os pesquisadores, recuperar os territórios e diminuir os índices de violência é uma tarefa que exige um conjunto de ações além da esfera criminal - ela vai desde impedir a invasão das reservas indígenas até fortalecer a economia local e garantir fontes de renda legais para a população.
“As facções se aproveitam dos vazios, da ausência de Estado”, diz Lima. “É preciso prevenir a violência levando direitos. Os povos indígenas, os quilombolas, têm que ter suas terras garantidas. Nós precisamos garantir isso, garantir que eles não sejam expulsos pelas facções. É preciso ter serviço público, política pública. É preciso ter estrada, ter financiamento para uma produção que seja sustentável.”
Fonte: correiobraziliense
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