22 de Novembro de 2024

'Eles viraram múmias por causa do calor': os relatos comoventes dos voluntários que recolhem corpos de migrantes em deserto no Arizona


Raúl não conseguia dar mais um passo sequer. As bolhas queimavam seus pés e suas pernas não respondiam.

Seus companheiros de viagem decidiram deixá-lo para trás depois de esperar três horas por ele em uma rocha no Cerro Picudo, no deserto de Sonora, no Arizona.

O grupo de cinco migrantes e um coiote (como são chamados os guias pagos para levar imigrantes ilegais através da fronteira) caminhava pelo deserto havia cinco dias, após cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos.

Raúl Sánchez tinha dois celulares: um número mexicano e outro de número americano. O coiote sugeriu que ele usasse o número dos Estados Unidos para ligar para o 911 e pedir para ser resgatado, mesmo que a patrulha da fronteira o deportasse para o México.

Disse-lhe que se andasse um pouco mais teria sinal em alguma colina do Cerro Picudo, uma montanha inóspita que se destaca como uma cabeça nas planícies do deserto, no percurso de 190 quilômetros de Altar Sonora, no México, para a cidade de Tres Puntos, no Arizona.

Usando uma camiseta vermelha e tênis preto, o mexicano de 36 anos se apoiou na rocha que marcava o cruzamento entre duas estradas, em forma de Y, em um morro do Cerro Picudo. Ele carregava seus pertences em uma mochila.

O deserto de Sonora ocupa 86.100 quilômetros quadrados, um território três vezes maior que o Estado brasileiro de Alagoas. Do lado mexicano, estende-se pelas províncias de Baja California e Sonora. Do lado dos EUA, através dos Estados do Arizona e da Califórnia.

Raúl disse ao coiote que respirava com dificuldade e que não conseguia se mover. E preferia retomar o percurso quando se sentisse melhor. Ele ainda tinha água e comida. Se encontrasse outros migrantes, se juntaria a eles no deserto.

O coiote e os migrantes viram Raúl pela última vez entre 16h00 e 16h30 da tarde de terça-feira, 22 de agosto de 2023.

Durante uma semana, sua irmã Inmaculada ligou para os número de telefone mexicano e americano, mas ninguém atendeu. Agoniada com o silêncio, ela relatou o desaparecimento de Raúl aos Águias do Deserto, um grupo de voluntários que procura migrantes no deserto de Sonora, entre o Arizona e a Califórnia.

Depois de avaliar o caso, os voluntários decidiram realizar uma operação para procurá-lo no sábado, 7 de outubro, quase sete semanas após seu desaparecimento.

Octavio Soria, conhecido entre os voluntários como Chaparrito, carrega na mochila uma cruz que fincará no chão caso encontre os restos mortais de Raúl no deserto.

A cruz de madeira pintada de branco foi doada pela congregação das Irmãs Felicianas da América do Norte, para homenagear a memória dos migrantes que morrem na tentativa de chegar aos Estados Unidos.

A fronteira entre os dois países é a passagem migratória terrestre mais perigosa do mundo, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM).

Quase metade das 1.457 mortes e desaparecimentos de migrantes documentadas no continente americano em 2022 ocorreram nessa fronteira, embora a OIM alerte que o número é subestimado devido à falta de dados oficiais dos governos do México e dos Estados Unidos.

Na noite anterior à busca, Chaparrito dirigiu sete horas até o acampamento dos Águias do Deserto em Ajo, uma cidade no sul do Arizona localizada a menos de 90 quilômetros da fronteira com o México.

Como o acampamento ainda não possui instalações formais, após borrifar repelente para espantar cobras, ratos, escorpiões e formigas, Chaparrito passou aquela noite em uma barraca.

Às 4h da manhã, os 15 voluntários que participam da busca usavam lanternas enquanto carregavam as vans com rádiotransmissores, frutas, garrafas de água e suplementos eletrolíticos para repor os minerais que perderão com o suor.

A desidratação é a principal causa de morte entre os migrantes que atravessam o deserto de Sonora, o mais quente da América do Norte, com temperaturas que beiram os 50ºC.

Embora o calor e a falta de acesso aos rios e riachos ameacem a vida dos migrantes, muitos optam por atravessar o deserto de Sonora porque há menos vigilância ali do que em outros pontos fronteiriços como Califórnia, Novo México ou Texas, lugares onde onde a passagem é bloqueada por muros e arame farpado.

Depois de realizarem dezenas de buscas, os voluntários aprenderam que devem levar pelo menos 13 garrafas de água cada um deles: dez para consumo próprio e outras três para dar a algum migrante vivo que encontrem na viagem.

O segredo é beber água aos poucos e durante a caminhada para evitar sintomas como cansaço, dores de cabeça ou tonturas.

Tal como outros voluntários, Chaparrito veste uma camiseta amarela fluorescente para se distinguir do castanho e do verde que dominam a paisagem, botas para pisar nos espinhos dos arbustos e proteção até aos joelhos para evitar picadas de cobra.

Ele também usa óculos e chapéu para se proteger do sol que ainda nem nasceu.

Na mochila, pende um amuleto: um sapato de criança encontrado durante uma operação no deserto da Califórnia, entre San Diego e Tijuana. Ele gosta de pensar que aquele “sapatinho” foi deixado para trás quando os pais do menino partiram de madrugada, após terem descansado debaixo da árvore onde o encontrou.

“Este sapatinho me acompanhou durante os três anos em que sou voluntário no Águias do Deserto”, diz ele enquanto verifica se tem água suficiente para o dia.

Há 34 anos, quando Chaparrito tinha 14, a mãe o enviou para os Estados Unidos com um tio, saindo de Querétaro e passando pelo deserto da Califórnia. Cada vez que ela participa de uma missão, ela pensa no sacrifício que foi para ela se separar dele.

Quando Inmaculada relatou o desaparecimento de seu irmão aos Águias do Deserto, ela disse que ele tinha uma tatuagem da Virgem de Guadalupe no braço direito e usava um implante para substituir dois dentes superiores.

Raúl é o mais novo de seis irmãos. A família Sánchez é natural de San Antonio Acatepec, uma pequena cidade nas montanhas do município de Zoquitlán, no estado de Puebla, no centro do México.

A família Sánchez pertence ao povo nativo nhua e sua língua é o anahuac.

Inmaculada não sabe ler nem escrever em espanhol. Quando os voluntários do Águias do Deserto recomendaram que ligasse para o consulado mexicano no Arizona para relatar o desaparecimento de Raúl, ela sentiu que não seria capaz de tomar as medidas necessárias para procurá-lo.

“Essa foi a pior coisa que poderia acontecer comigo, ser forçada a pedir ajuda em um idioma que não falo bem”, disse ela em entrevista, por telefone, de San Antonio Acatepec.

Ela conta que o consulado disse que ela deveria recolher provas que mostrassem onde Raúl havia desaparecido e de como estava vestido.

“Como vão encontrá-lo se ele já está desaparecido há um mês e meio?”, questionou Inmaculada. “Quem irá resgatá-lo naquele grande e perigoso deserto?”

Envolta em incertezas, ela contatou o amigo de Raúl para ajudá-la a localizar o coiote.

Raúl perdeu o emprego num lava-jato durante o período de confinamento da pandemia do coronavírus. Como não conseguiu um emprego estável, decidiu ir para os Estados Unidos. Seus dois filhos adolescentes e sua companheira permaneceram nas montanhas enquanto ele iniciava a rota.

“Ele nunca me disse que planejava atravessar o deserto de Sonora. Se ele tivesse me contado, eu jamais teria permitido”, diz Inmaculada.

Os Águias do Deserto recebem cerca de 450 solicitações de busca mensalmente por meio de seus números de telefone e contas em redes sociais.

Com cem voluntários que se revezam em cada operação, eles realizam duas ou três buscas por mês. A maioria dos casos é descartada por falta de informações que permitam identificar onde realizar as buscas no deserto.

O compadre de Raúl forneceu coordenadas precisas, no entanto, depois de falar com o coiote que o guiou para os Estados Unidos.

Segundo o coiote, Raúl e os demais migrantes passaram em frente a uma fazenda e caminharam por mais de uma hora ao longo de um riacho seco localizado na face leste do Cerro Picudo. Subiram a montanha e deixaram Raúl junto à rocha. Então eles pegaram o caminho à direita no Y.

“Ele não se conectou pelo WhatsApp. O estranho é isso”, diz o compadre numa reunião por Zoom com os socorristas, não compreendendo o significado daquela ausência.

O compadre mora nos Estados Unidos, mas sem documentos, por isso pede para manter o anonimato.

Diante de um mapa do deserto marcado por coordenadas, Ely Ortiz, diretor do Águias do Deserto, questiona se os companheiros de Raúl teriam deixado-o com água e comida, os recursos mais valiosos para quem atravessa o deserto.

“Que caminho estranho essas pessoas tomam!”, diz Ely. Parece mais lógico seguir as encostas do morro em vez de subi-lo.

Os voluntários questionam-se sobre qual caminho Raúl poderia ter seguido se estivesse com dificuldade de caminhar e concluem que há duas possibilidades: encontrá-lo perto da rocha onde foi visto pela última vez ou no percurso da ribeira em direção à base da montanha.

“Ele não aguentou subir isso”, supõe Ely enquanto traça as encostas do Cerro Picudo com o cursor sobre o mapa, em uma tela compartilhada com os voluntários.

“Este lugar é feio.”

Ele acredita que, se dividirem os voluntários em dois grupos, será possível percorrer seis quilômetros: um subirá o Cerro Picudo até a rocha que marca o Y e o outro seguirá o curso do riacho na base da montanha.

“Agradecemos de todo o coração”, diz o amigo de Raúl antes de se despedir. "Deus abençoe todos vocês".

No sábado, 7 de outubro, às 8h30 da manhã, o cinegrafista José María Rodero e eu chegamos com os voluntários à entrada do deserto de Sonora, mais próxima do lado leste do Cerro Picudo.

Decidimos acompanhar Chaparrito e o grupo que caminhará ao longo do riacho.

Os voluntários do outro grupo reportarão nas rádios, sintonizadas na frequência 2, caso encontrem Raúl na montanha.

Ely Ortiz procurou pelo irmão e o primo no deserto de Sonora durante quatro meses em 2009. Ele pediu ajuda à Patrulha da Fronteira do Arizona e aos Desert Angels, na época a única organização que procurava migrantes desaparecidos.

Ele não conseguiu ajuda, porém, porque os migrantes tinham sido deixados pelo coiote dentro de uma base militar abandonada. Quando ele finalmente conseguiu permissão de acesso, não podia imaginar o quanto o resgate dos restos mortais a afetaria.

“Eles viraram múmias por causa do calor e ainda exalavam um cheiro horrível. Meu irmão tirou os sapatos e os colocou ao lado dele, acho que os pés dele já estavam muito machucados por causa das bolhas.”

Ely garante que aquela experiência causou “um trauma muito grande”.

“Na primeira noite eu não consegui dormir. Fui tomado por um medo que não me deixava fazer nada, via isso em todos os lugares”, conta o socorrista. “É por isso que decidi me dedicar à busca de migrantes no deserto de Sonora.”

Junto com a esposa Marisela, Ely passou a organizar buscas nos finais de semana, enquanto a filha mais velha, de 12 anos, ficava em casa aos cuidados das irmãs mais novas.

“Foi uma decisão familiar muito importante. Minha filha ficou ressentida com a gente porque sentiu que a havíamos abandonado”, explica Marisela. “E eu sentia culpa por delegar a ela a responsabilidade de cuidar de suas irmãs.”

Durante as primeiras operações, Ely saiu do deserto com bolhas sangrando. Em uma ocasião, sentiu que ia desmaiar devido à insolação e pediu a outros voluntários que ligassem para o 911 e solicitassem uma evacuação de emergência.

“Naquele momento entendi porque muitos morrem de sede e de calor”, diz ele. “Os migrantes vão para debaixo de um arbusto para dormir e não acordam novamente.”

Ao saber a última localização de um migrante desaparecido, Ely denuncia o caso à patrulha de fronteira e ao consulado competente. Pelo menos 500 migrantes foram encontrados vivos durante os 14 anos de funcionamento da organização.

O desaparecimento de Raúl também foi denunciado à Patrulha de Fronteira do Arizona.

Quando os voluntários encontram o corpo do migrante que procuram, Ely liga para os parentes para dar a notícia. “Os familiares costumam pedir fotos dos restos mortais. “Sempre pergunto a eles se estão prontos para ver isso.”

Depois de tantos anos, as operações ainda o afetam. “Cada vez que encontramos um corpo, lembro-me do meu irmão novamente.”

Pelo menos 3.600 migrantes sem documentos morreram no deserto de Sonora desde 1990, segundo as autoridades dos EUA.

Naquele sábado, Ely e Marisela ficam nas vans para coordenar os voluntários pelo rádio e auxiliá-los nos veículos, caso seja necessário. Eles distribuem laranjas e água de coco antes que a equipe de resgate vá ao deserto em busca de Raúl.

Como em outras operações, os voluntários se reúnem em um círculo e fazem uma oração para pedir que Deus os proteja das ameaças do deserto e os ajude a encontrar o migrante que procuram.

Damos início ao trajeto junto a Chaparrito e nos deparamos com “evidências”, como os voluntários chamam os rastros deixados pelos migrantes: mochilas camufladas para camuflá-los na passagem pelo deserto e “sapatos de tapete”, de sola felpuda para não deixar rastros no caminho e assim evitar que a patrulha de fronteira os encontre.

Em alguns locais acumulam-se garrafas plásticas, isqueiros, cobertores, roupas e brinquedos. Antes de tocar nas mochilas com as mãos, os voluntários as viram com paus para verificar se não há escorpiões ou cobras dentro.

O voluntário Alberto Ortega descobre a pegada de um puma da montanha no chão. Ao olhar para cima, avista um urubu preto, uma ave de rapina que sobrevoa e come carne em decomposição que encontra no chão.

A presença de abutres ajuda os voluntários a localizar corpos à distância. “Se o corpo estiver fresco, o cheiro é insuportável. É simplesmente de tirar o fôlego”, diz Alberto enquanto caminha por um arbusto denso.

De repente, encontramos ossos espalhados entre os arbustos.

Alberto abaixa-se, coloca uma fita métrica ao lado do osso maior e tira uma foto com o celular. Repete o procedimento com cada osso visível. Quando recuperar o sinal, enviará as imagens aos médicos legistas do condado de Pima para confirmar se são ossos humanos ou de animais.

Em seguida, ele pega as coordenadas e prende fitas amarelas fluorescentes em pedras que coloca ao lado dos ossos, para facilitar a localização das autoridades.

Descemos pelo caminho de pedra que outrora foi o fundo do riacho. À medida que avançamos, Chaparrito grita: “Somos Águias do Deserto! Trazemos água e comida!”

Esse alerta não visa apenas ajudar os migrantes que podem estar perdidos e com sede na área. Ele também alerta os integrantes do crime organizado que circulam pela fronteira sobre a presença dos voluntários.

Recebemos um aviso nas rádios: um migrante vivo que ouviu Chaparrito se aproximou para pedir ajuda e se entregar à patrulha de fronteira.

“Preciso de água, preciso de comida!”, gritou para Marisela, que esperava no carro com Ely.

Quando voltamos aos veículos, encontramos o homem sentado, olhando para o nada. Aproximo-me dele para perguntar como ele se sente e ele demora alguns segundos para responder, como se não entendesse o que estou dizendo.

Ele concorda em deixar Ely chamar a patrulha da fronteira para ajudá-lo e mandá-lo de volta ao México.

Ele diz que tem 42 anos. A esposa e duas filhas o esperam no México. "É horrível. Se eu soubesse que corria risco de morrer, nunca teria entrado no deserto.”

Ele está perdido há três dias, sem comida e água. Quando ouviu o grito de Chaparrito, escondeu-se e nos observou. “Tive muito medo, foi difícil para mim entender que poderiam me ajudar.”

“Agora tudo que quero é voltar para minha família.”

Enquanto seguimos o curso do riacho, o outro grupo sobe o Cerro Picudo por mais de quatro horas e chega ao local onde Raúl foi visto com vida pela última vez.

Mas os voluntários não encontram vestígios do migrante.

Há tantas pedras grandes e arbustos crescidos que é difícil para eles terem certeza de que chegaram ao penhasco onde o caminho se divide em Y. Dois dos voluntários vão em frente e avistam ossos.

“Esperem, companheiros, encontramos um corpo”, ouvimos no rádio.

São costelas e ossos do pé. No lugar onde deveria estar a cabeça, havia um anel de metal, como um piercing.

A vários metros de distância, encontram uma caveira e uma carteira com a identificação de uma mulher chamada Soledad Elizabeth Alvarado Castillo. O cartão mostra um endereço residencial no estado de San Luis Potosí, no centro do México.

Todos ficam surpresos por terem tropeçado em um corpo que não procuravam em uma área tão remota do deserto.

Dias depois, os voluntários encontraram a ficha de Soledad no portal da Comissão Estatal de Busca de Pessoas de San Luis Potosí.

Ela tinha 1,55 de altura, 28 anos, olhos castanhos claros e cabelos longos e lisos. Foi vista pela última vez havia um ano e sete meses, em 28 de janeiro de 2022. Tinha três tatuagens, um piercing na língua e outro no nariz.

Enquanto seus companheiros cercam o primeiro corpo, o voluntário Roberto Martínez ganha forças para escalar as pedras e procurar mais pertences do corpo.

“Vários metros à frente vejo alguns pés numa pedra e começo a ficar nervoso”, lembra Roberto.

Ele se aproxima e descobre outro corpo que está com uma camiseta vermelha, tênis preto e um implante dentário. Como Raúl.

“Avisei aos meus companheiros que havia localizado o rapaz que procurávamos.”

Durante seu voluntariado nas Águilas del Desierto, Roberto encontrou vários corpos. “Sempre me pergunto como é possível fazermos isso uns com os outros, de um ser humano para outro, como as fronteiras e a política nos levam a perder vidas.”

Nenhum dos voluntários que escalaram o Cerro Picudo carregava uma cruz de madeira pintada de branco para colocar ao lado dos corpos.

Apenas Chaparrito e Alberto carregavam-nas no grupo do riacho.

Quando ouvimos sobre as descobertas no rádio, peço que Ely nos ajude a chegar ao local em que se acredita que Raúl tenha sido encontrado. Ele avisa que é perigoso e não quer nos colocar em risco.

Chaparrito e outro voluntário oferecem nos acompanhar.

Não nos resta muita água depois de cinco horas de caminhada.

Da base da montanha, Chaparrito aponta para a rocha onde Raúl estava para mostrar um pequeno ponto amarelo, a camisa de outro voluntário.

À medida que avançamos, as encostas tornam-se mais íngremes e os arbustos transformam-se em túneis de espinhos que se prendem nas roupas e rasgam a pele.

Depois de subir por algumas horas, dois voluntários aparecem e descem exaustos. “Agora vem o pior”, alerta um deles.

Esse aviso me faz entender que, se continuar subindo, posso não ter forças para voltar sozinho. Com sede e tontura, decido voltar com os voluntários que estão descendo.

Pergunto ao meu companheiro José se ele pode continuar e ele responde que sim. Chaparrito despede-se dizendo que cuidará bem dele.

Eles levam mais duas horas para chegar ao local onde está o corpo de Raúl. Quando estão perto de chegar, Chaparrito sente uma cãibra nas pernas e José torce o joelho.

“Vamos continuar subindo, a gente consegue”, diz Chaparrito a José.

Começa a trovejar. Um dos voluntários diz para eu não me preocupar. Faz três meses que não chove no deserto, então as encostas certamente estarão secas quando Chaparrito e José descerem a montanha.

Ao ver a fita vermelha que marca o perímetro do corpo de Raúl, Chaparrito vira e pergunta a José: "Você está mentalmente preparado? Você sabe a que vai se expor?"

Chaparrito avança entre as grandes pedras cinzentas com a cruz branca pendurada na mochila.

Sentem um cheiro de carne decomposta avançando sobre eles. Ao se aproximarem da fita vermelha, ouvem o zumbido das moscas.

José ousa olhar para o corpo. Ele está deitado de costas, com a cabeça virada para o lado, próximo a uma mochila e um galão preto de água.

Os restos mortais estão sob o sol, como se Raúl tivesse ficado sem forças para procurar sombra e proteger-se das intempéries do deserto.

Chaparrito tira a cruz branca que carrega na mochila, além de um crucifixo e uma garrafa de água benta. Coloca a bolsa de lado e tira o chapéu que o protegeu do sol o dia todo.

Ele prega a cruz no chão próximo ao corpo e coloca várias pedras ao redor da base, para garantir que ela permaneça em pé apesar do golpe de vento.

Chaparrito coloca o crucifixo na cruz e ajoelha-se. Exausto, ele pede para ser lembrado do nome do rapaz que procuravam.

“Raúl!”, grita Roberto, o voluntário que encontrou o corpo.

Chaparrito faz o sinal da cruz e começa uma oração:

"A Virgem Maria…

Santo Padre, nas tuas mãos colocamos Raúl.

Infelizmente não foi como esperava.

Oramos a você, santo padre, para que o receba em seu santo reino.

Talvez, Senhor, ele fosse um pecador.

Talvez, Senhor, ele tenha vindo com a ideia de levar sua família adiante.

No entanto, ele não conseguiu."

“Com esta água benta eu resplandeço”, diz ele antes de pegar a garrafa e borrifar gotas na cruz e no corpo. “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.”

De joelhos, Chaparrito faz o sinal da cruz e permanece em silêncio para abafar as lágrimas, mas não consegue contê-las. Inclinando a cabeça para frente, ele cobre o rosto por um momento, depois abre os olhos e enxuga as lágrimas.

Após uma inspiração profunda, direcione o olhar para um espaço vazio, como se evitasse olhar para o corpo.

Um agente de busca e resgate do condado de Pima pousa na montanha, a bordo de um helicóptero, para retirar os corpos.

“Muito obrigado, vocês fizeram um ótimo trabalho”, diz aos voluntários.

Enquanto espero Chaparrito e José descerem da montanha, depois de nove horas de caminhada, vejo os corpos chegarem no helicóptero e para serem transportados em uma van.

Um funcionário da equipe de busca e resgate do condado de Pima me explica que aquela montanha é um lugar remoto por onde passam os migrantes que se perdem no caminho para os Estados Unidos.

Estamos diante de uma ocasião excepcional. Em média, um corpo é localizado por mês. Só naquele dia, dois foram resgatados, graças aos Águias do Deserto.

Ely diz que é incomum que eles se mobilizem tão rapidamente para recuperar os restos mortais. Ele esclarece que muitos migrantes apareceram no Cerro Picudo, mas do outro lado, no oeste da montanha.

Ao final da operação, antes de se despedir, satisfeito com as descobertas, Chaparrito revela que se mudará para o Texas para dar início a um novo capítulo dos Águias do Deserto.

Nas montanhas de San Antonio Acatepec, a família de Raúl espera que o consulado mexicano no Arizona realize a repatriação dos restos mortais.

“Somos gratos aos voluntários por procurarem meu irmão e nos permitirem ter uma conclusão”, diz Inmaculada entre soluços.

“Agora, o mais importante é que minha mãe enterre o filho.”

Fonte: correiobraziliense

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