Nos últimos dias, o plano brasileiro de que o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia fosse anunciado até o final da cúpula do bloco sul-americano, na quinta-feira (7/12), ficou aparentemente mais distante. Desde agosto, negociadores dos dois blocos intensificaram seus esforços para tentar concluir os termos do acordo que se arrasta desde 1999. Nas últimas semanas, no entanto, reviravoltas diplomáticas apontaram na direção contrária.
O acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia começou a ser negociado em 1999 e prevê, entre outras coisas, a isenção ou redução na cobrança de impostos de importação de bens e serviços produzidos nos dois blocos.
Em 2019, durante a presidência de Jair Bolsonaro (PL), Mercosul e União Europeia assinaram o acordo. Para entrar em vigor, no entanto, o acordo precisava passar por uma revisão técnica e pela ratificação dos parlamentos de todos os países envolvidos.
Após quatro anos paralisado, o acordo voltou a ser negociado após a mudança de governo no Brasil, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Palácio do Planalto. Exigências ambientais europeias, no entanto, voltaram a travar as negociações.
Nos últimos meses, porém, os dois blocos voltaram a trabalhar em conjunto para tentar finalizar os últimos ajustes. Diplomatas brasileiros comemoravam, nos bastidores, avanços nas negociações.
O "freio" nas expectativas ficou evidente, no entanto, após uma declaração contra o acordo do presidente francês Emmanuel Macron, no sábado (2/12), durante a conferência para o clima da Organização das Nações Unidas (COP 28), em Dubai.
"Acrescentamos frases [ao acordo] no início para agradar a França, mas ele não é bom para ninguém, porque não posso pedir aos nossos agricultores, aos nossos industriais na França, em toda a Europa, que façam esforços, que apliquem novas linguagens para descarbonizar, para abandonar certos produtos, enquanto são removidas todas as tarifas para importar produtos que não aplicam essas regras", disse o presidente francês.
A França é a segunda maior economia da União Europeia e, historicamente, o setor agrícola francês já se manifestou contra a conclusão do acordo com o bloco sul-americano.
Lula, que se reuniu com Macron em Dubai, rebateu a declaração do líder francês e tentou responsabilizar os europeus pelo possível fracasso nas negociações.
"A única coisa que tem que ficar claro é que não digam mais que é por conta do Brasil. E que não digam mais que é por conta da América do Sul. Assumam a responsabilidade de que os países ricos não querem fazer um acordo na perspectiva de fazer qualquer concessão. É sempre ganhar mais. E nós não somos mais colonizados", disse Lula.
Em passagem pela Alemanha, Lula conseguiu o apoio do chanceler alemão, Olaf Scholz, para a conclusão do acordo, mas duas fontes do governo brasileiro que acompanham as negociações disseram à BBC News Brasil em caráter reservado que a previsão é de que o acordo, se for finalizado, não deverá, de fato, ser concluído durante a cúpula do Mercosul como planejado anteriormente. Eles afirmam que as negociações ainda estão em aberto e que há a possibilidade de que ele possa ser concluído nos próximos meses.
Eles afirmam, no entanto, que a "janela de oportunidade" é curta uma vez que haverá eleições para o Parlamento Europeu em 2024 e o acordo pode ser usado como argumento político para grupos contrários à sua conclusão.
Diante da frustração desse plano, surgem questões sobre quais os impactos para o Brasil diante da demora ou mesmo da não conclusão das negociações do acordo.
Especialistas e integrantes do governo brasileiro ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o Brasil pode ter prejuízos no médio e longo prazos caso o acordo não venha a ser concluído.
Entre os prejuízos estão: falta de diversificação da pauta de exportações do país; manutenção da dependência do país em relação às exportações para a China; fragilização do Mercosul; isolamento geopolítico do Mercosul; e falta de uma espécie de proteção dos produtos brasileiros contra a lei anti-desmatamento europeia, que começou a entrar em vigor neste ano.
Para alguns dos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a demora na conclusão do acordo pode prejudicar a indústria brasileira.
O tema é polêmico, uma vez que entidades sindicais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) já critica o acordo justamente por entender que ele colocaria em risco empregos industriais, uma vez que as empresas brasileiras não seriam tão competitivas quanto as europeias e a redução de impostos de importação de produtos do bloco europeu poderia levar ao fechamento de indústrias no Brasil.
Em junho, um grupo de sindicatos de países sul-americanos e europeus assinaram uma carta contra o atual texto do acordo por considerar que ele poderia ampliar a desigualdade social.
Por outro lado, um estudo divulgado em fevereiro deste ano pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e de Investimentos (ApexBrasil) - vinculada ao governo federal - apontou que o acordo com a União Europeia pode levar a um aumento de até US$ 3 bilhões nas exportações de produtos industrializados brasileiros nos quatro primeiros anos após a entrada em vigor do acordo.
Em média, as tarifas de importação cobradas pela União Europeia para esses produtos do Brasil é de 1,7% a 4%, segundo o estudo.
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Oliver Stuenkel, avalia que a demora na entrada em vigor do acordo é um elemento que mais prejudica do que beneficia a indústria brasileira.
"Parte dos bens manufaturados exportados pelo Brasil contém peças e outros insumos oriundos de empresas da União Europeia. O acordo permitiria que a indústria brasileira tivesse acesso a insumos europeus de forma muito mais barata e isso aumentaria a competitividade dos produtos locais", disse Stuenkel à BBC News Brasil.
A avaliação do professor é compartilhada por representantes do setor industrial brasileiro.
"Não finalizar esse acordo é perder a chance de usá-lo como fio indutor para a neo-industrialização dos países do bloco, em especial do Brasil", disse à BBC News Brasil o superintendente de Desenvolvimento Industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Frederico Lamego.
Ele diz acreditar que ainda há margem para que o acordo seja concluído até o fim da Cúpula do Mercosul, mas disse que caso isso não aconteça, o Brasil pode perder uma oportunidade de avançar em áreas específicas.
"O acordo poderia ajudar a indústria brasileira no processo de transição energética e digitalização que são áreas em que a Europa, sabidamente, têm uma grande expertise", disse.
Oliver Stuenkel pontua, ainda, que a demora na assinatura do acordo com a União Europeia acentua a atual dependência do Mercosul e do Brasil em relação à China e que seria bom para o Brasil diversificar, o mais possível, seu rol de parceiros comerciais.
"Em princípio a não-ratificação do acordo fará com que a atual dependência em relação à China permaneça", diz Stuenkel.
Dados do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) apontam, que desde 2012, o Brasil ficou mais dependente das exportações à China à medida em que viu suas vendas para blocos como a União Europeia diminuirem.
Em 2012, por exemplo, China e União Europeia importavam, cada uma, 17% de tudo o que o Brasil vendia.
Em 2022, no entanto, a participação da União Europeia caiu para 14,9% enquanto a da China aumentou para 26%.
Para Stuenkel, a não conclusão do acordo é ruim para o Brasil e para o bloco porque diminui o poder de barganha em negociações futuras.
"A melhor forma de negociar com atores de peso é ter alternativas. Quando o acordo com a União Europeia não é assinado, você tem uma opção a menos para negociar com países com a China, por exemplo", afirma.
Para o ex-embaixador do Brasil no Reino Unido e atual presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), Rubens Barbosa, um dos efeitos negativos da não assinatura do acordo é o que ele classifica como isolamento geopolítico.
"Eu acho que o acordo ainda será concluído, mas se não for, a perda é o isolamento geopolítico. O Mercosul tem 32 anos e nós só temos três acordos de livre-comércio: com Egito, Israel e, mais recentemente, com Singapura. Esse acordo (com a União Europeia) recolocaria o bloco no mapa do comércio mundial e tiraria o Mercosul do isolamento geopolítico em que está", disse Barbosa à BBC News Brasil.
Stuenkel concorda com o ex-embaixador. Segundo ele, o acordo abriria a possibilidade de o Brasil atravessar um período relativamente que indica ser turbulento.
"Diferentemente de que os críticos dizem, acho que se trata de um acordo moderno e poderia facilitar o diálogo entre dois blocos que pensam de maneira igual em diversos assuntos e que buscam diversificar suas parcerias em meio às tensões crescentes entre Estados Unidos e China", diz o professor.
Uma das possíveis consequências negativas para a demora na saída do acordo apontadas pelos especialistas é que isso possa alimentar discursos contrários ao Mercosul como o do presidente eleito da Argentina, Javier Milei, e do presidente do Uruguai, Luiz Alberto Lacalle Pou.
Desde 2022, Lacalle Pou vem estreitando relações com a China e anunciou que o Uruguai estuda a possibilidade de firmar um acordo comercial bilateral com o país asiático. Integrantes do governo brasileiro avaliam que um acordo desse seria um duro golpe à integridade do Mercosul.
Um dos pilares do bloco desde sua formação é que os países-membros não podem negociar ou fechar acordos de livre-comércio de forma isolada.
Entre as críticas feitas por Lacalle Pou estão a de que o Mercosul não teria a agilidade necessária para fechar acordos comerciais significativos, o que prejudicaria os países do grupo.
Em julho, durante a última cúpula de chefes-de-estado do Mercosul, Lacalle Pou não assinou o comunicado conjunto do bloco e voltou a acenar com a possibilidade de um acordo bilateral com a China.
"Com relação à China, vocês sabem a posição do Uruguai. Quando vemos que não avançamos juntos, entendemos a visão de cada um de vocês. A nossa é que façamos juntos. Se não podemos fazer assim, vamos fazer bilateralmente", disse Lacalle Pou à época.
Apesar das declarações de Lacalle Pou, ainda não há previsão para que um acordo entre o país e a China venha a se concretizar.
Outro líder da região que ficou conhecido por suas críticas ao bloco é o presidente eleito da Argentina, Javier Milei. Em entrevistas durante a campanha, ele chegou a dizer que seria preciso "eliminar" o Mercosul e defendeu a saída do país do bloco que a Argentina ajudou a fundar.
No último debate presidencial, em 12 de novembro, Milei voltou a criticar o bloco e chamou-o de "estorvo".
"O melhor exemplo do estorvo causado pelo Estado é o que está acontecendo com o Mercosul, que não tem saída [...] que está paralisado e não avança para lugar nenhum", disse o então candidato.
Desde então, no entanto, integrantes da sua futura equipe de trabalho já deram declarações favoráveis ao acordo entre Mercosul e União Europeia.
"O mundo não vai acabar no dia 7 de dezembro. Se o acordo não for alcançado até lá, nós vamos continuar negociando", disse Diana Mondino, apontada como futura ministra das relações exteriores do governo Milei.
Para Oliver Stuenkel, um novo adiamento para o fechamento do acordo pode fomentar discursos como o de Lacalle Pou e ou de Milei.
"Um novo adiamento contribui, sim, para que esse tipo de mensagem seja externada na região e isso é ruim. Isso também será ruim para os europeus, que tinham uma chance de firmar um acordo significativo e, se ele não vier agora, também poderá alimentar essas narrativas de grupos mais nacionalistas que existem em países da União Europeia", disse o professor à BBC News Brasil.
A secretária de Comércio Exterior do Ministério do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Tatiana Prazeres, disse à BBC News Brasil que a conclusão de um acordo como o negociado com a União Europeia poderia criar uma percepção de que o bloco deve se manter coeso.
"Fechar acordos comerciais é importante porque envia uma mensagem aos países de que é possível avançar de forma conjunta, fortalecendo, assim, o Mercosul como um todo", disse.
Um outro ponto destacado por fontes ouvidas pela BBC News Brasil é que a demora em finalizar o acordo entre o Mercosul e a União Europeia pode deixar desprotegidos alguns produtos exportados pelo Brasil ao bloco europeu diante da nova legislação anti-desmatamento em vigor no continente desde junho deste ano.
A normativa que ficou conhecida como "lei anti-desmatamento" prevê que uma série de produtos só podem ser importados à Europa se os exportadores comprovarem que eles não foram produzidos em áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020.
A regra atinge, especialmente, commodities caras à pauta de exportações brasileira como: soja, madeira e carne bovina.
Integrantes do governo avaliam que as negociações em curso com a União Europeia não iriam impedir a aplicação da legislação europeia integralmente.
Entretanto, eles alegam que os termos desenhados no acordo previam que os países do Mercosul passariam por uma avaliação diferenciada pela União Europeia em relação ao chamado "compliance" ambiental, o que, em tese, poderia facilitar a vida de exportadores brasileiros e dos outros países do bloco.
Tatiana Prazeres, que está no Rio de Janeiro para acompanhar as negociações do acordo, trata as negociações como um processo em curso e não dá o assunto como encerrado.
Ela pontua, no entanto, que enquanto ele não é finalizado, o Brasil e os outros países do bloco ficam sujeitos às regras gerais da lei anti-desmatamento. O acordo, segundo ela, continha medidas para "mitigar" os seus efeitos junto aos países do bloco sul-americano.
"Com as negociações do acordo com a União Europeia, há uma uma oportunidade para que seja reduzido o custo de compliance ambiental dos nossos produtores. As negociações nos permitem buscar oportunidades para mitigar o ônus e o risco da aplicação dessa nova lei sobre as nossas exportações", disse Tatiana Prazeres.
Sem o acordo, os exportadores brasileiros, especialmente aqueles que vendem produtos do agronegócio, ficariam "desprotegidos" e submetidos à nova legislação, que entra totalmente em vigor em dezembro de 2024.
Exigências ambientais europeias, aliás, foram um dos temas que mais teria travado as negociações entre os dois blocos.
No início deste ano, os europeus enviaram uma carta adicional ao acordo com uma série de demandas na área ambiental que o governo brasileiro entendeu como desproporcionais.
Na época, o Brasil vinha de quatro anos de taxas de desmatamento na Amazônia em alta. O governo brasileiro, no entanto, avaliou que as exigências representavam um entrave ao acordo e chegaram a ser criticadas pelo presidente Lula como "inaceitáveis".
O governo tratou as demandas como uma espécie de "protecionismo verde", que é quando países ou blocos comerciais usam pretextos ambientais para impor medidas ou sanções que prejudiquem seus parceiros comerciais.
Duas fontes diplomáticas ouvidas pela BBC News Brasil nas últimas duas semanas afirmaram que parte das exigências ambientais europeias haviam sido equacionadas. Entre elas, a que previa que as taxas de desmatamento do Brasil a serem avaliadas pelo bloco poderiam ser as produzidas pelos órgãos brasileiros de monitoramento por satélite como o do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Fonte: correiobraziliense
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