22 de Novembro de 2024

Busca por austeridade abre caminho para autoritarismo, diz economista italiana


A busca pela austeridade não é uma forma inevitável de conduzir uma economia em crise, mas sim um projeto político que subjuga trabalhadores pelo mundo e abre caminho para projetos de poder para governos autoritários.

É o que defende Clara Mattei, economista, professora da The New School for Social Research, e autora do livro A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo (Boitempo Editorial, 2023).

A austeridade é um conjunto de políticas econômicas que visam reduzir os déficits nos orçamentos públicos, por meio de cortes de gastos ou aumento de impostos.

"A ideia da minha pesquisa é apresentar a austeridade não como um caminho inevitável para consertar a economia, mas como um projeto político, e entender como esse projeto influencia a direção para onde os recursos públicos vão, saindo das pessoas comuns em favor de uma elite, que faz com que sua renda não seja baseada em salários, mas em capital", diz.

"A austeridade não é uma correção de defeitos, mas, na verdade, é uma característica estrutural do capitalismo", completa.

Considerado pelo jornal britânico Financial Times um dos melhores livros de 2022 (quando foi publicado em língua inglesa), a obra traça as origens da austeridade no período entre guerras na Europa, abrindo caminho para ditadores, como o fascista Benito Mussolini, na Itália.

Ela critica ainda a aliança moderna de economistas liberais e extremistas de direita, como Jair Bolsonaro (PL), no Brasil.

"Em momentos em que as pessoas estão muito perturbadas e não querem cumprir a ideologia da austeridade, ela tem que acontecer por meio de coerção política que é dada por um governo autoritário. Como a coerção econômica não é suficiente, você precisa de mais coerção política", diz.

Em entrevista à BBC News Brasil, Mattei critica a opção brasileira de dar autonomia ao Banco Central e o novo arcabouço fiscal, um mecanismo de controle do endividamento focado no equilíbrio entre arrecadação e despesas, criado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"O que o Bolsonaro fez e o que Lula faz é muito semelhante porque a austeridade vai além das distinções partidárias e vai além das oposições ideológicas porque, em última análise, a realidade é que, se você quiser ter uma boa aparência aos olhos do FMI [Fundo Monetário Internacional], se quiser ter uma boa aparência aos olhos das agências de rating, a receita é a austeridade”, afirma.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Para começar, quais as origens da austeridade e por que os economistas passaram a buscar o controle das contas públicas?

Clara Mattei - A ideia da minha pesquisa é apresentar a austeridade não como um caminho inevitável para consertar a economia, mas como um projeto político, e entender como esse projeto influencia a direção para onde os recursos públicos vão, saindo das pessoas comuns em favor de uma elite, que faz com que sua renda não seja baseada em salários, mas em capital.

A ideia é que a austeridade, como conhecemos hoje, está difundida em todos os lugares em que os governos operam economias globalizadas, ou seja, não apenas nos EUA ou no Norte Global, mas em países como o Brasil.

Essas políticas têm um objetivo político específico: o de tentar uma supressão a qualquer alternativa ao capitalismo atual. Então, o momento em que normalizamos a austeridade como sinônimo de política econômica é o mesmo em que o capitalismo é totalmente desafiado.

No momento, a austeridade tem sido tão inquestionável que estamos convencidos de que o capitalismo é um sistema eterno, como se a busca eterna pela austeridade fosse a única organização econômica possível. Mas, na verdade, o que você vê é que, se você levar a história a sério, você percebe que o capitalismo é muito frágil e requer proteção constante.

Então, essa é a ideia. É dizer que o capitalismo, como gerador de riqueza e de crescimento do PIB, é baseado em uma relação social pela qual a maioria de nós tem que acordar e ir trabalhar por um salário muito baixo. E essa relação é tudo, menos algo natural.

E, na verdade, nos momentos da história em que as pessoas estavam se rebelando contra essa relação social e propunham sociedades em que a distribuição da produção era pensada mais democraticamente, em que os trabalhadores poderiam decidir sobre os recursos que eles estão produzindo, nesse momentos economistas empunharam a austeridade como proteção do capitalismo.

Então, eu digo que, se existe capitalismo, tem que haver austeridade. A austeridade não é uma correção de defeitos, mas, na verdade, é uma característica estrutural do capitalismo.

E é por isso que, em última análise, você vê como a austeridade funciona em momentos em que o sistema pode entrar em colapso porque as pessoas não acreditam mais nele. Então digamos que ela foi inventada, ou melhor, se tornou visível como um ato de estratégia de contra-ação num momento em que estas alternativas estavam surgindo depois da Primeira Guerra Mundial.

Economistas foram chamados pelos governos para realmente definirem a receita da austeridade, que tem tudo a ver com consumir menos e produzir mais e a ideia de que a maioria de nós tem que sofrer fundamentalmente e aceitar que a economia só funciona se tivermos salários baixos e não exigirmos muita distribuição.

Por isso, os economistas tiveram um grande papel porque, em última análise, estamos justificando isso através de modelos.

Assim, o livro tenta usar a história para dizer que precisamos repensar os debates públicos sobre austeridade. A austeridade não é apenas o Estado gastar menos e tributar mais. Esta é uma definição apolítica de austeridade que olha para o todo. O agregado perde de vista quem ganha e quem perde sob a austeridade. A austeridade não é menos Estado. É o Estado trabalhando ativamente em favor de poucos.

Portanto, trata-se de cortar despesas sociais, cortar hospitais, transporte escolar, beneficiar o povo em favor de subsidiar bancos, investimentos no complexo industrial militar, etc. Trata-se de aumentar os impostos sobre o povo através de tributos sobre o consumo que continuam subindo constantemente, enquanto os impostos sobre heranças, sobre ganhos de capital, sobre lucros extras, todos os impostos sobre os ricos são constantemente cortados, certo? É muito regressivo e é assim em todo o mundo.

E depois temos ainda a austeridade monetária, que consiste em aumentos nas taxas de juros. E, finalmente, temos a esterilidade industrial, que consiste na privatização e na redução do poder dos trabalhadores. E, mais uma vez, trata-se de uma intervenção direta do Estado na austeridade industrial para subjugar fundamentalmente os trabalhadores. Então é esta tríade de políticas e todas as três trabalham juntas, reforçando-se mutuamente com o objetivo de disciplinar as pessoas para que aceitem o capitalismo.

BBC News Brasil - E como essa busca incessante pela austeridade, que vai além do controle das contas públicas, abriu as portas para o fascismo, que é o tema do seu livro?

Mattei - A história normal é que o fascismo é, em última análise, o oposto da austeridade e as pessoas tornam-se fascistas porque se rebelam contra a austeridade. O que quero mostrar é que, historicamente, o berço do fascismo, que é a Itália de Benito Mussolini, os verdadeiros fatores que fizeram com que o ditador emergisse, chegasse ao poder e fortalecesse seu governo foram medidas de austeridade.

Então, na verdade, Mussolini chegou ao poder em um momento em que cada um dos trabalhadores na Itália era muito forte. Eles exigiam não apenas salários mais altos, mas também controle real sobre o processo de trabalho. Eles ocuparam fábricas. Eles administravam a produção por conta própria. Os camponeses administravam a agricultura no campo.

E Mussolini foi considerado pelos liberais nacionais e internacionais como o homem certo para um momento crítico. Há uma citação de Montagu Norman, ex-presidente do Banco da Inglaterra, considerado um símbolo do liberalismo, que diz em 1926 que o fascismo trouxe verdadeiramente ordem ao caos ao longo dos últimos anos, e que algo deste tipo era, sem dúvida, necessário para que o pêndulo não oscilasse na direção oposta.

O ponto aqui é que Mussolini foi aplaudido por causa de sua capacidade de criar a paz industrial à força, banindo fundamentalmente os trabalhadores. E é por isso que a austeridade e o fascismo, de mãos dadas, reforçaram-se mutuamente. Mussolini teve muito sucesso em chamar a atenção da elite global internacional, a elite liberal, devido à sua capacidade de impor austeridade, para que pudéssemos dizer que a austeridade era uma arma muito poderosa nas mãos dele.

Ao mesmo tempo, poderíamos dizer que isso ainda ocorre. Na Itália, temos Giorgia Meloni que, de certa forma, se refere como herdeira do fascismo. As pessoas não precisavam votar nela com a ideia de que ela seria crítica à austeridade imposta pela União Europeia. Em última análise, esse conjunto, o fascismo e o capitalismo não são opostos. Eles trabalham juntos e Meloni, como outros governos autoritários, uma vez no poder, tem praticado uma austeridade ainda mais dura do que os seus antecessores, que eram, obviamente, fãs tecnocratas da austeridade, como Mário Draghi [Ex-primeiro-ministro da Itália e ex-presidente do Banco Central Europeu].

BBC News Brasil - Apesar dessa ligação, há um dogma em governos de qualquer orientação ideológica de que o descontrole das contas públicas causa inflação e afugenta investimentos. Como a senhora vê isso?

Mattei - O objetivo deste trabalho histórico é, na verdade, mostrar como funcionam essas teorias econômicas que dizem que a austeridade é uma necessidade porque, se não a fizer, você corre o risco de ter inflação graças aos déficits orçamentários e esse o fato de que o capital internacional pode sair do país.

O ponto aqui é dizer que esse dogma não é falso. Ele revela a lógica do capitalismo, que é uma lógica baseada na opressão estrutural da maioria. Então, eu acho que isso é muito importante. A questão é que eles não estão necessariamente mentindo, mas estão expressando a dura realidade que vivemos numa economia que funciona para poucos em detrimento de muitos.

O que é importante perceber é que os economistas não são técnicos, são políticos e não são neutros, são de uma classe. E, então, esses modelos, de certa forma, fingem estar acima das classes.

Mas a realidade é que eles estão apoiando um sistema econômico que é estruturalmente baseado na exploração. Então, definitivamente deve haver uma saída porque é o caso de como o capitalismo global foi estruturado e, novamente, o capitalismo global não é natural, é uma construção de escolhas políticas das nossas instituições. A questão aqui é que essas escolhas foram feitas não pelo povo, mas pelas elites que comandam as instituições.

A questão dos bancos centrais independentes, do FMI, são todos isolados da intrusão democrática, do debate público e das eleições públicas, em geral. É por isso que um gestor dessas instituições não precisa dar a mínima, nunca se explicam, se arrependem ou pedem desculpas. Eles podem fazer o que quiserem. Portanto, este sistema foi construído por instituições que não representam o povo, mas sim a elite. Acontece que, uma vez construído o sistema que nos oprime e que tem, de fato, certas forças das quais não é fácil escapar, principalmente se você está no Sul Global.

Se você tem um problema na balança comercial, sua moeda perde valor, o capital sai do país e você fica mais fraco perante a concorrência global. Se você não conseguir manter seus salários baixos o suficiente em seu país, o capital irá para outro lugar e acontece que se você ainda taxar os ricos, os voos de capital acontecem, certo? Então não estamos lá. Não é como se fosse um conto de fadas. Eles estão nos contando sobre algo que é profundamente real, mas profundamente político, de modo que não devemos considerá-lo como a única maneira possível de fazer isso.

BBC News Brasil - Mas então, como sair desse processo, principalmente para países do Sul Global, que são obrigados a seguir a lógica de austeridade imposta pelo FMI sempre que precisam de ajuda?

Mattei - Acho que a maneira de sair é começar a questionar profundamente a própria lógica do sistema. As pessoas precisam dizer que não irão melhorar, se tornando mais competitivas, controlando orçamentos e deflacionando, porque, na verdade, se você olhar para o que está acontecendo, estamos apenas aumentando nossa dependência dessa economia global que nos oprime.

Então a maneira de sair dessa situação é realmente romper com essa dependência. E como fazer isso? Bem, acho que deveriam ser as pessoas no local que lutam por isso, mas trata-se realmente de lutar contra a dependência do mercado e isso pode acontecer a nível local. E penso que então os efeitos repercutem em termos da sua posição geopolítica em relação ao mundo.

Então a austeridade existe para aumentar a dependência do mercado, mesmo se perdermos o direito à escolaridade, à habitação ou aos cuidados de saúde porque agora precisamos de pagar por isso se ficarmos mais desempregados e o nosso trabalho se tornar mais precário porque existe a tríade da austeridade que nos tornamos mais dependentes do mercado.

Acho que o primeiro passo aqui é realmente encontrar maneiras pelas quais possamos organizar a distribuição da produção, rompendo com a dependência do mercado, e isso, creio, significa exercícios realmente locais de democracia econômica sobre a recuperação de espaços. Iniciativas coletivas que reforçam um senso de autonomia das pessoas em relação a este mercado que só nos oprime. É só assim que se pode realmente pressionar os governos a agirem em maior escala.

Além disso, as pessoas precisam perceber e entender como o capitalismo funciona. É por isso que escrevo livros, porque acho que o primeiro passo é realmente entender criticamente como o capitalismo funciona, e como, se você tentar cumprir os ditames da austeridade, estará na verdade cavando ainda mais a sepultura, de certa forma.

A emancipação vem de movimentos e práticas que vão contra a lógica do capitalismo e não movimentos e práticas que o reforcem.

Por exemplo, o fato de a única forma de curar a inflação é suprimir os salários, que é o resultado dos aumentos das taxas de juros é, obviamente, uma teoria que é profundamente política porque se baseia na repressão, mas é isso que também deve ser desafiado porque a questão é que, historicamente, temos visto isso mesmo dentro do próprio capitalismo.

A maneira de conter a inflação é, na verdade, estabelecer limites de preços ou tributar os lucros extras que estão sendo obtidos graças à inflação. Então essa ideia de que, na verdade, tem que ser as pessoas que sofrem sempre é uma receita que está alinhada com a lógica do capital. Mas pode-se dizer que mesmo se não quisermos superar o capital, poderíamos usar modelos diferentes que dizem realmente que o que precisamos fazer é colocar limite nos preços, tributar os ricos, etc.

A inflação tem tudo a ver com a decisão ativa das grandes corporações de aumentar os preços, e não é algo mecânico ou não natural. Sim. A inflação é, na verdade, produto de decisões políticas das empresas privadas para aumentar os preços. Então, como pode o Estado impedir que isso aconteça? "Ei, se você aumentar os preços, vamos tributá-lo e vamos decidir por vontade política que você não será capaz de aumentar os preços."

Todas essas são opções que poderiam funcionar mesmo dentro do capitalismo, mas que são constantemente retiradas da mesa porque a ideia é que, na verdade, a única possibilidade é aumentar os juros. E este é o caminho a seguir natural, neutro e objetivo, certo? Então isso mostra mais uma vez como a austeridade é realmente política.

BBC News Brasil - A senhora também critica que uma das medidas de despolitização da economia teria sido isentar as decisões econômicas do escrutínio democrático, estabelecendo e protegendo instituições econômicas "independentes", como o Banco Central, que se tornou “independente” no Brasil desde 2019. Como a senhora vê essa iniciativa?

Mattei - Foi uma ideia terrível. Mas acho que deveríamos parar de pensar em termos de Brasil. Como se tivéssemos que parar de pensar na Itália ou mesmo em termos da América. Infelizmente, novamente, estas são unidades que escondem o que realmente está acontecendo, que é que há brasileiros ricos que ganham com bancos centrais independentes e depois há a maioria dos brasileiros.

Somos constantemente privados de direitos e empobrecidos e os recursos são extraídos disso. Então isso é o que é importante dizer. O Banco Central foi uma boa ideia para a ordem de capital, então, definitivamente, a questão aqui é que você só pode fazer aumentos severos nas taxas de juros se as pessoas não estiverem no seu caminho e isso funciona muito bem.

As pessoas ganham? Claro que não. Penso que a questão aqui é voltar a dar o poder para que as pessoas possam opinar sobre a gestão monetária, para que a gestão monetária seja realmente feita em favor das suas prioridades, que não são as prioridades do capital, dado que a prioridade das pessoas é a satisfação das suas necessidades, a sua existência é baseada em necessidades muito concretas e simples, mas o sistema é baseado na acumulação infinita de capital que é ilimitado e é completamente desapegado.

BBC News Brasil - No seu livro, a senhora fala que, na Itália, o compromisso com a austeridade por parte dos especialistas financeiros era "tão grande que eles estavam dispostos a confiar em uma ditadura sangrenta para reerguer os pilares desmoronados da acumulação de capital" ao se referir ao período de Mussolini. Como viu a aliança política de Bolsonaro com a Faria Lima no Brasil?

Mattei - Em primeiro lugar, a maneira de ajudar uns aos outros é criar esta falsa sensação entre as pessoas comuns de que, na verdade, o liberalismo e o fascismo são opostos, portanto, eles precisam um do outro nesse sentido.

Eles precisam de alguém que seja supostamente diferente deles para que possam fingir que existe uma forma essencialmente diferente de gerir o capitalismo, se for liberal e não fascista. Isto é mentira porque, se olharmos para a história que conto, é que existe um paralelismo entre o que aconteceu na Grã-Bretanha liberal na década de 1920 e o que aconteceu na Itália fascista na década de 1920.

As histórias são basicamente as mesmas, a diferença é que na Itália, Mussolini usou um estado forte para impor uma supressão salarial por lei. Assim, aprovaram leis para suprimir os salários e fizeram greves se tornarem ilegais e prenderam quem discordava.

Já na Grã-Bretanha, eles usaram os aumentos nas taxas de juros para ter o efeito de desacelerar a economia, aumentando a taxa de desemprego, o que acabaria por significar matar toda a mobilização trabalhista, fechando todas as alternativas e os obrigando a voltar à ordem do capital.

Portanto, o que você vê é que a austeridade desempenha um papel semelhante em ambos os países, com nuances que realmente não importam. Então, antes de mais nada, acho que eles precisam uns dos outros porque a hipocrisia liberal é fingir que aquele fascismo não é capitalista e que só o liberalismo é capitalista, certo?

Então essa é a primeira coisa: eles precisam um do outro porque, na verdade, especialmente em alguns momentos, as pessoas estão fartas do sistema e exigem algo novo, e eles não deixam.

No Chile, Salvador Allende (1908-1973) foi eleito com a ideia de que a terra deveria ser realmente pública novamente, reverter as privatizações e empreender uma redistribuição séria de recursos em favor do povo. Isso é algo que aterroriza.

As instituições que dirigem o capital ordenam para que, nestes momentos, de desafios extremos à ordem do capital, o mesmo seja feito como na Itália, a melhor forma de impor austeridade e potencialmente a mais maneiras eficientes, é claro, um estado forte.

Portanto, em momentos em que as pessoas estão muito perturbadas e não querem cumprir a ideologia da austeridade, ela tem que acontecer por meio de coerção política que é dada por um governo autoritário. Como a coerção econômica não é suficiente, você precisa de mais coerção política. E é por isso que Pinochet era tão amado por alguém como Milton Friedman e todos os grandes economistas. Pois foi ai que eles perceberam que a tortura era necessária se você quisesse reimpor o capitalismo de mercado que funcionava como riqueza nos livros.

A austeridade mostra como o capitalismo é um sistema antidemocrático. Em última análise, o capitalismo funciona suavemente quando a democracia é suprimida. Portanto, a austeridade funciona muito bem quando é um regime autoritário capaz de isolar a tomada de decisões das pessoas.

Nos Estados Unidos, você tem o FED, o banco central americano, independente, sem que as pessoas estejam envolvidas. Já na Itália, perdemos a vertente monetária, que agora é definida pelo Banco Central Europeu. Em última análise, o que experimentamos em todas as supostas democracias liberais são graus menores destas tendências antidemocráticas que são próprias do capitalismo e especiais do capitalismo de austeridade.

BBC News Brasil - Atualmente, mesmo em um governo de centro-esquerda, como o de Lula, foi aprovado por aqui o novo arcabouço fiscal, que é um mecanismo de controle do endividamento focado no equilíbrio entre arrecadação e despesas. Além disso, o país tem uma das maiores taxas de juros reais do mundo. Como a senhora vê isso?

Mattei - A primeira coisa a fazer é trazer a economia conversar com as pessoas de uma forma que as faça perceber que estas decisões sobre orçamentos equilibrados e deflação monetária não são coisas separadas da sua vida cotidiana e que têm impactos diretos.

Então eu acho que esse é realmente o papel importante do jornalismo e da mídia, por exemplo, é falar sobre coisas que importam, como a relação entre o que significa recuperar o orçamento e os recursos para as pessoas e como isso atinge suas necessidades de sobrevivência.

A economia é política e o primeiro passo é perceber que, na verdade, infelizmente, a austeridade atravessa as linhas partidárias. O que o Bolsonaro fez e o que Lula faz é muito semelhante porque a austeridade vai além das distinções partidárias e vai além das oposições ideológicas porque, em última análise, a realidade é que se você quiser ter uma boa aparência aos olhos do FMI se quiser ter uma boa aparência aos olhos das agências de rating, a receita é a austeridade.

Portanto, você precisa ter salários competitivos, o que significa que você precisa suprimir os salários. Você precisa abrir o mercado às privatizações para que as grandes corporações possam vir e saquear o seu país e investir por aqui, o que significa tirar recursos das pessoas e, em última análise, é disto que se trata o capitalismo.

Acho que a realidade é que, se Lula quiser seguir outro caminho, precisa começar a questionar se queremos ser integrados em uma economia capitalista que funciona sobre os ombros dos trabalhadores e especialmente dos trabalhadores do Sul Global.

Então, penso que a primeira coisa é abrir os olhos para como funciona o capitalismo. É por isso que estou escrevendo esses livros, porque só então você poderá responsabilizar seu governo.

Então, se você quiser votar em Lula, você pode dizer que sim, mas não vamos nos comprometer com a austeridade porque queremos uma direção realmente diferente. Penso que as pessoas estão preparadas para uma organização econômica completamente diferente. E, novamente, a mensagem aqui é percebermos que o capitalismo não é natural, nem eterno, nem o único sistema possível.

Trata-se de dizer que estamos fartos de orçamentos equilibrados porque isto é apenas uma retórica para continuar a subsidiar o subconjunto habitual de suspeitos e levando à miséria a maioria.

BBC News Brasil - A senhora disse que austeridade não é apenas controlar as contas públicas, mas também vetar a organização dos trabalhadores e impostos mais progressivos. O Brasil discute hoje a volta do imposto sindical e uma segunda parte de uma reforma tributária que promete ser mais progressiva. Acha que é o suficiente?

Mattei - A mensagem do livro é dizer que as questões de políticas fiscais e monetárias nunca estão separadas das questões de relações trabalhistas. Hoje tudo é sobre políticas fiscais que visam enfraquecer os trabalhadores através da austeridade e das políticas monetárias.

Portanto, a ideia aqui é definitivamente que, se propormos diferentes medidas fiscais, isso terá o efeito de encorajar a capacitação dos trabalhadores e das pessoas nas suas relações laborais. Essas são formas de pressionar o governo a fazer coisas que vão contra a lógica da ordem do capital. E é por isso que a política é importante. É por isso que as pessoas têm que se envolver porque, em última análise, o Estado é sensível às pressões para uma mudança radical.

Talvez essas mudanças possam subverter o sistema, de modo que, na verdade, tenhamos que entrar em uma lógica diferente para equilibrar. Então, se agora o FED está aumentando as taxas de juros, prejudicando os trabalhadores nos Estados Unidos, no Brasil, podemos tentar fazer o oposto, podemos dizer “ei, vamos realmente propor a apresentação de impostos progressivos”. Isso é um passo muito, muito importante, porque faz com que as pessoas tenham espaço para se organizarem coletivamente.

Portanto, qualquer reforma que o Estado faça para realmente devolver recursos às pessoas e realmente use os impostos para derrotar a desigualdade, diminuir a desigualdade, proporciona espaço para uma potencial ação coletiva.

Giorgia Meloni suspendeu qualquer plano de transporte gratuito ou de renda básica pois estas são medidas que permitem corrigir a ideia para uma outra, na qual temos direitos como seres humanos e não somos apenas mercadorias à venda. E então sou muito favorável a todas essas campanhas que são o oposto da austeridade que vem sendo discutida.

Fonte: correiobraziliense

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