Pela primeira vez em quase 30 anos de existência, a Conferência das Partes da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP) responsabiliza, na declaração final, os combustíveis fósseis pelo processo de aquecimento global. O texto não fala — como queriam mais de 70% dos negociadores — em eliminar essa fonte energética. Mas avança ao reconhecer a necessidade de transição para modelos limpos "de uma forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação nesta década crítica, de modo a alcançar zero emissões líquidas até 2050, de acordo com a ciência".
O documento aprovado por unanimidade no plenário foi a quarta versão apresentada pela Presidência da COP28, em Dubai, nos Emirados Árabes. Debatido madrugada afora, estourando em 24 horas o prazo de encerramento da conferência. De um lado, União Europeia, alguns países em desenvolvimento e os estados insulares brigavam por uma linguagem mais enfática sobre o fim dos combustíveis fósseis. De outro, os dois principais produtores e emissores de gases de efeito estufa — China e Estados Unidos — se negaram a aceitar o termo.
Demais países cuja economia é fortemente atrelada às fontes de energias poluente, como Emirados Árabes e Rússia, também reprovaram os rascunhos que mencionavam o fim de petróleo, gás e e carvão. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) pediu aos membros que barrassem qualquer menção aos combustíveis fósseis, o que, no fim, não aconteceu, pois eles são citados nominalmente no texto.
Marco
Se a briga inicial era entre os verbos "eliminar" e "substituir", a declaração acabou optando por outra linguagem: fazer a transição. Incluir pela primeira vez os combustíveis fósseis no texto é um marco histórico, avalia David King, fundador e presidente do Grupo Consultivo para a Crise Climática, organização formada por especialistas em clima. Porém, ele considera a linguagem insuficiente. "Devemos estar cientes de que isso é o mínimo. Hoje não é, portanto, um momento para ficar parado e aplaudir o acordo. A redação do acordo é fraca",
Ed King, especialista em COPs da rede Global Strategic Communications Network (CSCN), avalia que o texto "envia sinais claros sobre o fim da era dos combustíveis fósseis". "O apelo à ação também é visto como uma melhoria em relação ao texto anterior", diz. Para King, porém, não está claro quem deve liderar a transição energética e como os países em desenvolvimento serão apoiados no processo. A discussão só deve acontecer com força na COP30, que será sediada no Brasil. Por enquanto, o Fundo Verde, criado para, entre outras coisas, ajudar na adaptação, ainda não deslanchou e há poucas menções a financiamento na declaração da COP28.
Para Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, o governo brasileiro precisa assumir a liderança das discussões climáticas até o próximo ano e, assim, estabelecer as bases para que a COP30 "atenda às comunidades mais pobres e vulneráveis do mundo e à natureza". Para tanto, o especialista ressalta que o Brasil terá de começar a desapegar dos combustíveis fósseis. "Ele pode começar cancelando sua promessa de se juntar à Opep, o grupo que tentou e não conseguiu destruir essa cúpula", disse. Na primeira semana da conferência, o país divulgou sua entrada na extensão do cartel, a Opep e ganhou o antiprêmio Fóssil do Dia pelo anúncio.
Diretor-geral do WWF Brasil, Maurício Voivodic destaca que o sucesso da COP de Belém dependerá de o país já começar a reforçar o comprometimento climático na presidência do G20, assumida em 1º de dezembro. "Porém, é preciso liderar pelo exemplo, o que significa que temos um grande desafio interno, já que parte do governo ignora a crise climática e trabalha para alinhar o Brasil ao grupo das nações responsáveis pelo quase fracasso da COP 28", critica, referindo-se à Opep. "A ciência é clara: a eliminação dos combustíveis fósseis é urgente e necessária para mantermos o planeta em níveis saudáveis."
» Os países concordam que os combustíveis fósseis precisam ser substituídos por energia limpa. Também devem atingir o zero líquido global (balanço entre emissões e captura) até 2050.
» O texto contém referências a combustíveis de "transição" — no caso, o gás natural. Porém, não fala em substituí-los por energias renováveis.
» A declaração apela às partes que tripliquem as energias renováveis até 2030 e dupliquem a eficiência energética. Também reconhece que os custos das energias renováveis estão diminuindo rapidamente.
» Sem avançar em relação à COP de Glasgow, apela à aceleração dos esforços no sentido da redução progressiva da energia do carvão inabalável (emitido sem passar por nenhum processo
de captura).
» Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC): os novos compromissos climáticos nacionais devem ser entregues entre novembro de 2024 e fevereiro de 2025.
» O texto faz referência a uma sugestão do Brasil, o "Roteiro para missão 1,5ºC", com picos de emissões antes de 2025 e reduções de gases de efeito estufa em 2030-2035.
» A declaração reconhece que os meios de implementação de medidas de adaptação são cruciais para a execução, mas não traz um plano para ampliar o financiamento.
» O texto reitera o apelo para dobrar o financiamento climático dos países desenvolvidos para os em desenvolvimento até 2025, sem fornecer números.
» A declaração enfatiza a importância de conservar, proteger e restaurar a natureza e os ecossistemas, destacando a interrupção e reversão de desmatamento e degradação florestal até 2030.
» O esperado chamado para reduzir as emissões provenientes da alimentação, responsáveis por um terço das emissões de gases de efeito estufa, ficou de fora do capítulo mitigação.
"A era dos combustíveis fósseis deve terminar e isso deve ser feito com justiça e equidade. A saída dos combustíveis fósseis é inevitável, vocês gostem ou não"
António Guterres, secretário-geral da ONU
"É claro que a era dos combustíveis fósseis está chegando ao fim. Talvez não tenhamos cravado o prego no caixão aqui na COP28, mas o fim está próximo para a energia suja"
Joab Okanda, analista sênior de Clima da Christian Aid
"O texto final é melhor que a última versão. É louvável a inclusão dos parágrafos sobre energia, o que é inovador no regime multilateral do clima. Demos um passo importante aqui, mas a luta continua até que o mundo concorde realmente com o fim dos fósseis."
Fernanda Carvalho, analista da WWF internacional
"O texto final representa uma regressão significativa em relação aos rascunhos anteriores. Surpreendentemente, abandonou a linguagem explícita sobre a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis"
Harjeet Singh, chefe de estratégia política global da Rede Internacional de Ação Climática
"Vencemos o impossível
fim dos combustíveis
fósseis - uma vitória retumbante sobre a diplomacia do óleo e
do gás, que predominou nos últimos 30 anos . Países que apostam na expansão contínua da produção de petróleo, gás e carvão mineral terão que rever seus planos e indicar como e quando completarão
sua transição"
Natalie Unterstell,
Instituto Talanoa
A conferência de Dubai é considerada a mais importante desde o Acordo de Paris, de 2015. Foi a primeira COP depois do balanço global das metas, divulgado em setembro. Também é o texto-base das próximas contribuições nacionais (NDCs) que devem ser apresentadas à ONU a partir de 2024. As expectativas em torno do evento, iniciado em 30 de novembro nos Emirados Árabes Unidos, foram comprometidas pela presença massiva de lobistas dos combustíveis fósseis e pelo fato de o presidente da COP28, Sultan Al Jaber, ser, também, o CEO da petrolífera nacional de seu país.
Apesar do marco histórico da declaração final aprovada ontem, que, pela primeira vez em uma COP associa as mudanças climáticas às emissões dos combustíveis fósseis, a indústria dessas fontes energéticas não saíram perdendo. Um artigo em particular preocupou especialistas climáticos e ambientalistas: reconhece que "combustíveis de transição poderão desempenhar um papel na facilitação da transição energética, garantindo simultaneamente a segurança energética". O texto se refere ao gás natural liquefeito que, embora aparentemente menos sujo que o carvão, libera metano, um gás que, além de absorver o calor, gera CO2.
Liderança
"A liderança da COP28 não pode afirmar que salvou (a meta do) 1,5ºC. Este acordo ainda está repleto de lacunas, carece de prazos e não proporciona o apoio que a maioria da população mundial irá necessitar para financiar a rápida transição", avalia Linda Karcher, diretora-executiva do think tank europeu Strategic Perspectives. "A União Europeia e o resto do G20 podem liderar o caminho na próxima ronda de NDCs e impulsionar a reforma das finanças globais, há muito esperada."
Leslie-Anne Duvic-Paoli, professora sênior de Direito Ambiental no King's College London, na Inglaterra, está mais otimista com a declaração da COP28. "Apesar de uma linguagem fraca - um 'convite à transição dos combustíveis fósseis'", a referência tem um peso significativo, servindo como uma indicação clara da direção que os governos e a indústria devem seguir para construir um mundo líquido zero", acredita. Ela considera que, ao conciliar países com interesses e prioridades muito diferentes, a conferência foi "um sucesso no trabalho diplomático".
Fonte: correiobraziliense
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