Oferecer apoio aos sobreviventes da violência doméstica é uma medida importante. Mas, para terminar com esse tipo de violência de uma vez por todas, a sociedade precisa entender seus perpetradores e aprender como intervir com sucesso.
A violência doméstica é muito comum, por exemplo, nos Estados Unidos. Cerca de metade das mulheres e dos homens americanos sofrem violência física ou sexual, stalking (prática de retirar a camisinha sem consentimento), danos psicológicos ou coerção em relacionamentos amorosos ao longo da vida.
A violência doméstica ocorre de forma não homogênea entre a população dos Estados Unidos. Os jovens são mais vulneráveis. Cerca de três quartos das mulheres vítimas de violência doméstica relatam que sua primeira experiência ocorreu antes dos 25 anos de idade.
Pessoas não brancas e da comunidade LGBTQIA+ também sofrem violência doméstica em índices consideravelmente superiores à média nacional americana.
E, apesar dos índices similares de violência doméstica entre homens e mulheres, as mulheres relatam efeitos mais graves sobre as suas vidas. Esses efeitos incluem incidência mais alta de lesões e necessidade de assistência médica, auxílio das forças policiais e sintomas do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
Sou assistente social e passei os últimos 10 anos estudando como os homens chegam a usar violência contra suas parceiras íntimas, já que as consequências desse tipo de violência são frequentemente as mais graves.
Minha pesquisa concluiu que relacionamentos acolhedores consistentes com adultos atenciosos na infância e na idade adulta, além da gestão do estresse levando em conta os traumas, são duas abordagens promissoras para evitar a violência doméstica.
Para evitar a violência, é preciso entender como alguém chega ao ponto de cometê-la. E certas experiências na infância podem contribuir para pessoas cometerem violência doméstica no futuro.
Pesquisadores concluíram que o abuso infantil, a negligência e o relacionamento negativo entre pais e filhos são fatores de risco significativos que podem levar alguém a cometer violência doméstica na idade adulta.
Sofrer traumas na primeira infância pode alterar o cérebro, a forma como o corpo reage ao estresse e se a pessoa observa o mundo como um lugar ameaçador, perigoso e indigno de confiança.
As pesquisas demonstraram, por exemplo, que pessoas expostas a traumas apresentam maior atividade nas amígdalas cerebrais. Isso resulta em aumento do medo e da estimulação, o que pode gerar reações agressivas frente aos conflitos e ao estresse.
A exposição a traumas também está relacionada à redução da atividade do córtex pré-frontal, que é a parte do cérebro responsável pelo controle dos impulsos, concentração e raciocínio emocional. Estas são qualidades essenciais para o relacionamento interpessoal.
O estresse tóxico — a ativação excessiva ou prolongada da reação ao estresse do corpo — ocorre quando alguém encontra ameaças constantes à sua segurança física ou mental durante períodos sensíveis do desenvolvimento.
Em comparação com seus semelhantes, os jovens que enfrentam níveis desproporcionais de dificuldades e pobreza, racismo e outras desigualdades estruturais apresentam risco maior de desenvolver estresse tóxico.
Essas mudanças corporais podem levar as crianças a desenvolver TEPT, depressão e abuso de drogas ou álcool em fases posteriores da vida. E estes são alguns dos fatores de risco mais comuns para a violência doméstica.
Um estudo concluiu que cerca de um terço dos homens em um programa de intervenção contra a violência doméstica relataram níveis clínicos de TEPT.
As crenças sobre os papéis de gênero tradicionais que determinam como homens e mulheres devem se portar é outro fator significativo que contribui para a violência doméstica.
Traumas não resolvidos, aliados a visões rígidas de gênero, podem limitar as ferramentas e capacidades das pessoas para lidar com dificuldades emocionais complexas em relacionamentos amorosos.
Os lares que promovem roteiros de gênero rígidos, como "meninos não choram", e limitam as oportunidades de aprender com atividades consideradas "femininas", como cuidar de bonecas, podem dificultar a expressão emocional dos meninos, reduzindo sua capacidade de reconhecer emoções nas outras pessoas e em si próprios. E a raiva se torna tipicamente a emoção mais acessível.
É claro que nem todas as pessoas que enfrentaram adversidades e traumas na infância estão destinadas a cometer violência.
Estudos demonstram que a ligação segura entre pai e filho e a existência de relacionamentos e ambientes seguros e acolhedores durante a infância protegem contra a violência futura. E experiências positivas na infância, como se sentir compreendido nos momentos difíceis e ter pelo menos dois adultos que tenham interesse na vida da criança, além dos pais, também podem ajudar.
Um estudo com mais de seis mil adultos em Wisconsin, nos Estados Unidos, concluiu que as pessoas que relatam três a cinco experiências positivas na infância apresentam 50% menos probabilidade de ter sintomas depressivos ou dias com problemas de saúde mental, em comparação com aquelas que tiveram pouca ou nenhuma experiência positiva na infância.
Mas, sem esses fatores de proteção, muitas crianças correm o risco de carregar seus traumas para seus relacionamentos amorosos na adolescência e na idade adulta.
Promover a saúde e o bem-estar da sociedade exige esforços baseados em pesquisas para evitar e combater a violência doméstica.
Os relacionamentos receptivos, ou relacionamentos em que a outra pessoa é atenciosa, solidária e harmoniosa, são uma forma importante de melhorar o bem-estar das crianças e dos adultos, incluindo a saúde mental dos sobreviventes de abusos.
Os pesquisadores estão prestando mais atenção aos riscos do isolamento social entre os adultos. Isso foi exacerbado pelas mudanças culturais decorrentes da pandemia de covid-19, do trabalho remoto e das redes sociais.
O isolamento e as redes sociais poucos saudáveis podem ser perigosas para as vítimas e prejudiciais para as pessoas propensas a cometer violência, pois elas podem agravar condições de saúde mental como o TEPT.
Os programas comunitários que estabelecem redes sociais de apoio têm o potencial de reduzir os fatores de risco à saúde mental que geram a violência.
A maior parte dos programas de intervenção contra a violência doméstica para os homens não incorpora o conhecimento de que os traumas ficam registrados no corpo e na forma de pensar das pessoas.
Esses programas se concentram principalmente no desaprendizado das tendências de abuso e em reaprender formas saudáveis de relacionamento. Este tipo de abordagem inclui o uso de livros e exercícios de pensamento para identificar comportamentos e pensamentos abusivos sobre como subjugar as mulheres, entender por que eles são prejudiciais e aprender formas saudáveis de resolver os conflitos.
Mas concentrar-se apenas nos processos de pensamento cognitivo como o principal mecanismo de mudança é insuficiente para atingir mudanças duradouras. Para alterar significativamente os efeitos dos traumas, as intervenções também devem envolver processos cerebrais autônomos.
Intervenções que se concentrem no controle do estresse e das emoções, como respiração profunda e meditação mindfulness (atenção plena), podem ajudar a abordar os sintomas fisiológicos dos traumas e reconfigurar as reações do corpo ao estresse.
E reconfigurar as reações do corpo ao estresse pode ajudar as pessoas a se dedicar ao aprendizado superior necessário para adotar pensamentos e comportamentos não violentos, descartando as tendências abusivas.
A redução dos sintomas de TEPT e traumas nas pessoas que cometeram violência doméstica pode ajudá-las a identificar os principais gatilhos e desenvolver habilidades para enfrentar e reagir ao estresse de formas mais saudáveis do que com a violência.
* Laura Voith é professora de ciências sociais aplicadas da Universidade Case Western Reserve, nos Estados Unidos.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.
Fonte: correiobraziliense
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