Lisboa — Os brasileiros que, nos últimos anos, desembarcaram em Portugal estão provocando uma mudança substancial no mercado de trabalho local e, por consequência, na estrutura da economia. O resultado mais vistoso dessas transformações foi revelado pelo próprio governo português. Somente no ano passado, os trabalhadores oriundos do Brasil contribuíram com a quantia recorde de 669 milhões de euros (R$ 3,7 bilhões) para a Segurança Social — o sistema previdenciário lusitano — quantia correspondente a 36% de tudo o que foi arrecadado com a mão de obra estrangeira. Oito em cada 10 brasileiros em idade ativa estão empregados em território luso, distribuídos pelos mais diversos ramos de atividade.
"É evidente que a presença maciça de brasileiros está mexendo, para o bem, na estrutura econômica de Portugal", afirma o advogado Bruno Gutman, especialista em imigração. Além de suprir a falta de mão de obra em setores estratégicos para o envelhecido país europeu, como o de turismo, que responde por 15% do Produto Interno Bruto (PIB), os brasileiros têm consumido como nunca e ampliado a concorrência em vários setores. "Em Braga, por exemplo, onde há uma grande comunidade brasileira, o comércio cresce a olhos vistos. O setor de academias nunca teve tantos alunos. Os shopping centers andam lotados. Até os cardápios dos restaurantes se adaptaram a nós", acrescenta. "Não só. Braga foi uma das poucas cidades portuguesas em que a população aumentou nos últimos anos."
Mesmo no pesado mercado segurador, em que as mudanças ocorrem mais lentamente, a maior presença de brasileiros em Portugal chacoalha as empresas. Desenvolvedora de negócios da MDS, corretora de seguros e consultoria de riscos líder no país europeu, Lívia Albuquerque Bisoni frisa que, para atender as demandas dos exigentes consumidores brasileiros, as companhias estão tendo de contratar funcionários originários do Brasil. "Há cinco anos, a nossa empresa tinha apenas um colaborador brasileiro. Hoje, são oito", enfatiza. Os brasileiros estão puxando as vendas de seguros de crédito da casa própria, de vida, de saúde e de automóveis, praticamente invertendo a curva de queda desse segmento.
Mas os brasileiros não se destacam apenas entre os trabalhadores. Eles também vêm empreendendo e gerando empregos em Portugal. Dados do relatório do Observatório das Migrações apontam que os brasileiros formam o maior grupo de empresários estrangeiros no país: são 26,2% deles, bem à frente dos chineses, que aparecem na segunda colocação. Há, atualmente, quase 10 mil negócios liderados por cidadãos oriundos do Brasil. "Se os empresários chineses estão concentrados no comércio, os brasileiros estão espalhados por vários setores", anota Catarina Reis de Oliveira, autora do documento.
Ela detalha que 20% dos empregadores brasileiros estão no setor da construção; 18,1% no ramo de alojamentos, restaurantes e similares; 14,1% no comércio, 9% no segmento da saúde e de apoio social, e o restante nas demais atividades. "Não por acaso, o mercado da construção está mudando de cara. Hoje, é bem mais comum a construção de condomínios com áreas de lazer, de que os brasileiros gostam, em Portugal. Até bem pouco tempo, isso era impensável", assinala Gutman. "O legado brasileiro está ficando cada vez mais evidente para onde quer que se olhe", emenda o advogado Fábio Pimentel, também especializado em imigração. "A comunidade brasileira em Portugal está muito diversa", complementa.
Empregados, em maioria, e empreendendo em Portugal, os brasileiros têm remetido um volume crescente de recursos para o Brasil, seja para complementar a renda das famílias, seja para fazer poupança. Pelos cálculos do Banco Central, nos nove primeiros meses deste ano, as remessas somaram 229 milhões de euros (R$ 1,1 bilhão). Portugal, por sinal, superou o Reino Unido e se tornou o segundo país de onde os brasileiros mais enviam dinheiro para o Brasil. Dono de uma agência de viagens e uma frota de carros, o baiano Reginaldo Soares, 38 anos, dos quais 16 em Portugal, investe boa parte do dinheiro que fatura em território luso em fazendas de gado no interior da Bahia. Os negócios no Brasil são geridos pelo pai dele. "Fiz de tudo desde que atravessei o Atlântico. Hoje, estou em uma situação bem confortável", diz.
A produtora de eventos Carol Deguti também não tem do que reclamar. Aos 39 anos, sendo duas décadas em Portugal, ela se tornou referência no mundo dos shows. "O mercado em que atuo está em alta. E são os brasileiros que têm dado sustentação aos negócios", reconhece. "Os shows estão sempre lotados, a ponto de centenas de pessoas ficarem do lado de fora, por falta de espaço. Muitos falam que Portugal está em crise. Não estou vendo isso. Muito pelo contrário. Meus eventos de fim de ano estão praticamente esgotados", destaca.
Cada produção, detalha Carol, exige pelo menos 60 prestadores de serviços, que passam pela montagem dos palcos, pelo transporte, pelo bar, pelas relações públicas, pela segurança. "Por trás desse contingente de trabalhadores, há muitas famílias que se beneficiam da renda gerada. É a economia se movimentando", afirma a empresária. Ela conta que, quando chegou em Portugal, com apenas 19 anos, havia muitas barreiras para estrangeiros que queriam empreender. "Mas isso mudou muito, até porque o público português consome muita música brasileira, especialmente os mais jovens, entre 16 e 25 anos", observa.
Apesar das portas abertas para quem quer trabalhar e empreender em Portugal, Carol faz um alerta para os brasileiros que desejam fazer a vida no país. No entender dela, há muita gente cruzando o Atlântico acreditando em promessas fáceis, sem a menor estrutura para emigrar. "Essas pessoas acabam ficando em situação irregular, enfrentando dificuldades e vivendo precariamente. O caminho correto é sempre emigrar de forma legal, com todos os documentos em dia. Dessa forma, tudo fica mais fácil", aconselha. Essa também é a recomendação do governo português, que, claramente, escolheu os brasileiros como imigrantes preferenciais para ajudar o país a superar o peso do envelhecimento populacional.
A mineira Kelly Braun, 39, anda um tanto decepcionada com Portugal, onde trabalha como cuidadora de idosos. Há quatro anos no país, acredita que não tem o reconhecimento necessário, sobretudo por exercer uma profissão tão nobre e necessária num país em que cerca de 30% da população têm mais de 65 anos. "Não me sinto valorizada. O salário que ganho é muito baixo para o custo de vida em Portugal. A minha vontade é de mudar de ramo, ir para o comércio ou mesmo para a área administrativa de uma empresa. Só não estou encontrando o caminho nesse sentido", diz.
O advogado Fábio Pimentel, especialista em imigração, reconhece que, nos últimos anos, o governo de Portugal facilitou muito a entrada de estrangeiros no país, principalmente, de brasileiros, que já são mais de 400 mil legalizados e perto de 150 mil à espera de documentação. Mas diz que há problemas sérios nesse processo. "Muitos trabalhadores qualificados, como os da área de tecnologia da informação, que foram levados por empresas para o país europeu têm enfrentado desgastes enormes para regularizar a situação de seus familiares. Estão sendo obrigados a esperar por pelo menos um ano pela documentação. Isso resulta em um estresse enorme, pois apenas o trabalhador está em situação legal e a família, num limbo, sem direito, inclusive, a serviços públicos como educação e saúde. Isso não é justo", frisa.
Na avaliação dele, erros como esse cometidos pelo governo português tenderão a ganhar destaque diante da nova e mais restritiva política de imigração definida pela União Europeia. "Portugal permite, por exemplo, que pessoas entrem em seu território, fiquem de maneira ilegal e, depois, peçam autorização de residência. A União Europeia tende a questionar isso, e com razão. O certo seria, quando o emigrante chegasse ao país, que toda a documentação já estivesse pronta", ressalta Pimentel. "Do jeito que está, com tanta demora para a regularização, violam-se os direitos humanos. Não é bom para ninguém", acrescenta.
Há, ainda, outra questão fundamental: a xenofobia de parte dos portugueses em relação aos brasileiros, com Portugal entrando no mapa da anti-imigração. "Será preciso enfrentar com seriedade esse problema. O governo não pode minimizar esse assunto", assinala.
Jurista portuguesa, Isabel Conte, do escritório Martins Castro, lembra que Portugal já foi questionada pela União Europeia por causa das facilidades concedidas aos cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que inclui o Brasil. Além da concessão automática de residência para mais de 160 mil pessoas, das quais quase 140 mil oriundas do Brasil, o governo português criou um visto temporário para a busca de trabalho em território luso. Os interessados podem permanecer no país por até 180 dias. Nenhum desses instrumentos, no entanto, permitem o livre trânsito dos cidadãos pela comunidade europeia. "Portugal terá de buscar uma conciliação em torno desse tema para não sofrer sanções, até porque precisa receber fundos da União Europeia para uma série de projetos", destaca.
Para aqueles que desejam uma situação mais confortável, com trânsito livre pelos 27 países do bloco europeu, Isabel afirma que o melhor é se submeter a todas as regras mais rígidas, mesmo que a documentação demore um pouco mais. O governo prometeu, após a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) — substituído em outubro último pela Agência para a Integração, Migração e Asilo (Aima) —, acelerar os processos de documentação de estrangeiros, com prioridade para os pedidos de reagrupamento familiar. A requisição desse instrumento normalmente é feita por trabalhadores já empregados que cruzaram o Atlântico com a família. No total, há 347 mil processos pendentes. "Ainda levará tempo para tudo se ajustar, como em qualquer processo de transição. Mas aqueles que tiverem paciência poderão usufruir de um país com muitas vantagens, a começar pela segurança dos cidadãos", afirma.
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