Quando se formou em agosto, a palestina Sara al Saqqa, 31 anos, fez história ao se tornar a primeira cirurgiã a se formar na Faixa de Gaza.
"Tinha muitas ambições e ideias sobre como melhorar os cuidados de saúde", diz ela, que esperava um dia abrir sua própria clínica.
Mas, oito semanas depois, seu único desejo era de que a sua família sobrevivesse aos ataques de Israel.
"As prioridades de todos mudaram e agora só pensamos em permanecer vivos".
Sara trabalhou no maior hospital de Gaza, Al Shifa, no norte do território, desde que se formou.
No dia 7 de outubro, ela estava de folga e se lembra de ver sua irmã mais nova, de 17 anos, se arrumando para ir para a escola.
"Mas começamos a ouvir bombardeios e não a deixamos ir", diz ela.
Quando Sara checou seu telefone, viu a notícia de que o Hamas havia atacado Israel. Homens armados mataram 1.200 pessoas e fizeram cerca de 240 reféns.
Desde então, os ataques aéreos e as invasões terrestres de Israel reduziram grande parte de Gaza a escombros, matando 20 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde controlado pelo Hamas.
Sara foi imediatamente convocada para trabalhar.
Ao chegar, viu "um massacre, com uma avalanche de feridos", conta.
Desde o início, os funcionários ficaram impressionados com o grande número de pessoas "com membros amputados por estilhaços e diversos tipos de lesões causadas por queimaduras intensas".
Quando Israel iniciou os seus ataques aéreos, pediu que os habitantes de Gaza evacuassem a parte norte do enclave e se deslocassem para o sul, sob a alegação de que lá estariam mais seguros.
Mas Sara decidiu ficar.
"Trabalhamos sem parar por mais de 34 dias; não podíamos voltar para casa", conta.
Ele descreve para a BBC como as condições pioraram rapidamente: "Depois de cada bombardeio, centenas de pacientes chegavam ao mesmo tempo e era impossível cuidar de todos eles".
Muitos procuraram segurança nas dependências do hospital.
As pessoas lotavam todos os espaços disponíveis, assavam pão nos corredores, dormiam no chão e nos armários e tentavam distrair os filhos com brincadeiras.
O hospital estava com dificuldades para conseguir suprimentos básicos, como medicamentos e luvas esterilizadas, e Sara teve que decidir quais pacientes priorizar com base nas chances de sobrevivência.
"Me senti horrível. Fiquei completamente desamparada", diz ela. "Fiz o melhor que pude com o pouco que tínhamos para tratar os pacientes. Fiquei arrasada por não ter conseguido salvar tantas vidas inocentes."
No entanto, houve momentos de esperança.
Sara ajudou a dar à luz um bebê pela primeira vez depois que ela e a mãe ficaram presas uma noite na sala de cirurgia enquanto bombas caíam do lado de fora.
Sara tentou desesperadamente chamar um ginecologista para ajudá-la, mas ninguém apareceu.
Às 6h já não podia esperar mais. "Pedi a Deus para me ajudar e salvar a mãe e a menina", diz ela.
O bebê nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço, mas Sara conseguiu retirá-lo e trouxe a menina ao mundo com segurança.
Grata, a mãe deu o nome de Sara para a filha.
Um dos maiores desafios para Sara foi quando as comunicações foram cortadas. Ela parou de receber notícias de sua mãe, de seus quatro irmãos e de sua avó.
Quando isso aconteceu, a família se dirigia para Rafah, no sul de Gaza, e Sara não sabia se estavam vivos ou mortos: "Eu não conseguia funcionar, não conseguia fazer nada".
Sara conta que estava com medo de que eles se encontrassem em um lugar bombardeado.
Mas, à medida que o conflito aumentava, os desafios de Sara se multiplicaram.
Os suprimentos de comida e água acabaram e "durante a última semana não houve eletricidade... sobrevivemos com o mínimo".
Algo tão singelo como receber um pedaço de pão se tornou um momento de alegria.
Quando as luzes se apagaram, ela teve que percorrer os corredores lotados do hospital à luz de velas e realizar cirurgias quase na escuridão, com o som de bombas ao seu redor.
"Descreveria esse período como o pior da minha vida. Vivi um inferno", diz.
Quando as bombas se aproximaram do hospital e ficou claro que o Exército israelense estava prestes a invadir o local, Sara temeu morrer se ali permanecesse, então decidiu deixar tudo para trás e também seguir para Rafah para ficar junto de sua família, que agora está abrigada na casa do tio dela.
No entanto, a médica não fez a viagem para o sul sozinha. Caminhou com os colegas e com a mãe e o bebê que ajudou a trazer ao mundo.
Quando o Exército israelense invadiu o hospital, as autoridades israelenses afirmaram que se tratava de uma "operação direcionada contra o Hamas" e alegaram que haviam encontrado no local um "centro de operações", algo que o Hamas negou.
Ao descrever a sua vida e a onda de mais de 1 milhão de deslocados de Gaza, Sara diz: "Não temos água para beber nem comida para colocar na boca. Escolas, praças. O inverno chegou e não estamos preparados, não temos roupas, nem cobertores, nem nada."
Ela ainda está tentando usar seu treinamento médico quando pode.
"Todos os dias saímos e ajudamos no que podemos porque os abrigos e as escolas precisam de nós".
Sara diz estar preocupada com o que o futuro reserva para ela e sua família.
"Este ano deveria ser o último ano de escola da minha irmã antes de ela se formar e começar sua vida, mas agora não temos ideia do que vai acontecer."
Tal como outros moradores de Gaza, suas esperanças e sonhos deram lugar à luta pela própria sobrevivência.
Fonte: correiobraziliense
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