É o caso judicial do século. Nos dias 11 e 12 de janeiro, advogados que representam a África do Sul e Israel entrarão numa sala de tribunal com o mundo assistindo.
Israel está cometendo um genocídio contra o povo palestino em Gaza? A África do Sul afirma que sim e abriu um processo na Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, em 29 de dezembro de 2023.
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, diz que seu país está se comportando com uma "moralidade" sem paralelo na sua campanha em Gaza, enquanto um porta-voz do governo comparou o caso da África do Sul a um “libelo de sangue”, uma falsa alegação de que judeus assassinaram cristãos para usar o seu sangue em rituais antigos.
O documento de 84 páginas da África do Sul diz que as ações de Israel "são de caráter genocida porque se destinam a provocar a destruição de uma parte substancial" dos palestinos em Gaza.
Argumenta que os atos genocidas incluem matar palestinos, causar graves danos mentais e corporais e infligir deliberadamente condições destinadas a "provocar a sua destruição física como grupo". Afirma que as declarações das autoridades israelenses expressam intenções genocidas.
Juliette McIntyre, professora de Direito na Universidade da Austrália do Sul, diz que a argumentação da África do Sul é "muito abrangente" e foi "elaborada com muito cuidado".
"Procura responder a todos os argumentos potenciais de Israel… e abordar quaisquer alegações de que o tribunal possa não ter jurisdição", disse ela à BBC.
"A África do Sul diz que levantou a questão com Israel em muitos fóruns diferentes antes de abrir o caso."
O porta-voz do governo israelense, Eylon Levy, disse que Israel lutará contra o processo. Ele também disse que o Hamas tem total responsabilidade moral pela guerra que iniciou.
Nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio de 1948, trata-se de um ato cometido com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, que envolve:
O genocídio é um dos crimes internacionais mais difíceis de provar.
Um Estado ou uma pessoa podem ser acusados de genocídio.
Michael Becker, professor assistente de Direito no Trinity College Dublin (Irlanda), diz que há uma diferença entre apontar um Estado que viola a Convenção do Genocídio e apontar uma pessoa culpada de cometer genocídio.
"Essa distinção é complicada e pode causar confusão", diz ele.
A CIJ é o tribunal superior das Nações Unidas que decide sobre disputas entre Estados. Todos os membros da ONU são automaticamente membros da CIJ.
Um Estado tem de apresentar um caso à CIJ, composta por 15 juízes eleitos para um mandato de nove anos pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Parte da competência do tribunal é ouvir disputas relativas à Convenção do Genocídio de 1948.
Seis milhões de judeus foram assassinados pelos nazistas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945. Posteriormente, os líderes mundiais procuraram evitar uma repetição, adotando esta convenção.
Israel, África do Sul, Mianmar, Rússia e Estados Unidos são algumas das 153 partes que o ratificaram.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi fundado em 2002 e também tem sede em Haia. É um tribunal de última instância que só atua quando um tribunal nacional não o faz. EUA, Rússia e Israel não são membros.
O TPI ouve casos criminais e pode condenar um indivíduo por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Cada um tem uma definição diferente na lei. O promotor do TPI deve abrir ou iniciar um caso.
A primeira pessoa condenada por genocídio foi o hutu ruandês Jean-Paul Akayesu, em 1998, no Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR na sigla em inglês), patrocinado pela ONU, por seu papel no assassinato em massa de tutsis em 1994, que deixou 800 mil mortos.
Em 2017, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY, na sigla em inglês) condenou o antigo comandante sérvio-bósnio Ratko Mladic por genocídio pelo massacre de Srebrenica em 1995, em que 8 mil homens e rapazes muçulmanos foram mortos pelos seus soldados.
Mas a Corte Internacional de Justiça rejeitou a alegação apresentada pela Bósnia de que a Sérvia, ou a ex-Iugoslávia, tinha cometido diretamente genocídio em Srebrenica.
Em vez disso, o tribunal concluiu que a Sérvia não conseguiu evitar o genocídio e entregar um general de alto escalão.
Becker, que trabalhou como assistente jurídico no CIJ, diz que o tribunal estabelece um padrão elevado para reconhecer a "intenção genocida" de um Estado.
O conflito eclodiu em 7 de outubro de 2023, quando militantes do Hamas saíram de Gaza e mataram 1.200 israelenses, levando também mais de 200 reféns.
Desde então, Israel realizou ataques aéreos, lançou uma invasão terrestre e ordenou que os palestinos se deslocassem para o sul da Faixa de Gaza.
O país também restringiu as entregas de alimentos e combustível.
O ministério da saúde administrado pelo Hamas afirma que mais de 22 mil pessoas foram mortas até agora, a maioria mulheres e crianças.
Israel, o Reino Unido, os EUA e outras potências ocidentais classificam o Hamas como uma organização terrorista.
A África do Sul também apresentou um processo solicitando à CIJ que tomasse medidas provisórias ou tempórarias. Quer que o tribunal ordene a Israel que pare todas as ações militares em Gaza. Este é um procedimento urgente que é ouvido primeiro.
"Isto não levará à constatação de genocídio nesta fase", afirma McIntyre. "Existe um padrão de prova muito baixo. A questão que se coloca é se existe uma chance de dano irreversível."
A África do Sul argumenta que existe um "risco plausível de ocorrência de genocídio" e a questão do tempo é essencial, acrescenta McIntyre.
A Ucrânia fez um pedido semelhante depois de ter sido invadida pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022, e a corte ordenou que a Rússia suspendesse a sua campanha militar algumas semanas depois. Moscou ignorou isso.
McIntyre espera que a CIJ emita a sua decisão até ao final de janeiro.
"Tal decisão colocaria pressão sobre Israel", diz McIntyre, acrescentando porém que a decisão não seria definitiva e que a corte não tem como garantir a aplicação dela.
"O tribunal poderá mais tarde concluir que não houve genocídio quando analisar o mérito ou a substância do caso."
Becker diz que o julgamento provisório da CIJ contra a Rússia foi "impressionante" por ter chegado ao ponto de ordenar que o país parasse a sua campanha.
"Estou um pouco mais cético quanto à possibilidade de o tribunal dizer a Israel para parar", diz ele, sugerindo que o tribunal poderá pedir a Israel que "restrinja" a sua campanha militar.
"Tudo o que isso significaria é que Israel deve cumprir as obrigações legais internacionais que já possui", acrescenta.
McIntyre diz que a comparação mais válida é com o caso de genocídio da Gâmbia contra Mianmar.
Os palestinos em Gaza e o povo rohingya não podem acessar a CIJ porque não são Estados-nação, então outros países fazem isso em seu nome.
A Gâmbia, em nome dos países muçulmanos, acusou Mianmar de cometer genocídio contra o povo rohingya depois de cerca de um milhão de pessoas serem forçadas a fugir para Bangladesh em 2017.
No final de 2023, o Reino Unido, a Dinamarca, a França, a Alemanha e os Países Baixos, juntamente com o Canadá, solicitaram a adesão ao caso, o que significa que poderiam apresentar argumentos jurídicos.
"É um sinal para o mundo e para o tribunal de que apoiam a ação em curso", explica McIntyre.
Países ocidentais fizeram um movimento semelhante para apoiar a Ucrânia na CIJ.
Mas McIntyre acredita que o Ocidente ficará de fora deste caso.
"Não veremos Estados ocidentais intervindo para apoiar a África do Sul", diz ela.
"A questão é se veremos uma intervenção dos Estados árabes."
A Gâmbia apresentou o seu caso em novembro de 2019, mas ainda não foi realizada uma audiência sobre o mérito dele. Pode levar anos para um julgamento final.
Se a CIJ concluísse que Israel cometeu genocídio em Gaza, McIntyre diz que isso poderia mais tarde ser usado como prova em qualquer processo criminal individual no TPI.
Os dois especialistas concordam que tal julgamento contra Israel pressionaria outros países, especialmente os apoiadores de Israel, a reconsiderarem suas relações com Tel Aviv.
No entanto, os EUA já se manifestaram veementemente contra o caso da África do Sul, com o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, dizendo que era "sem mérito" e "completamente sem qualquer base factual".
Fonte: correiobraziliense
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