Quinze dos 17 juízes que compõem a Corte Internacional de Justiça (CIJ) — a máxima instância judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), em Haia — acataram o recurso de emergência apresentado pela África do Sul e exigiram que Israel tome todas as medidas ao seu alcance para impedir atos de genocídio na Faixa de Gaza, além de prevenir e punir a incitação a esse tipo de crime. O tribunal se baseou na Convenção para a Prevenção de Genocídios, assinada em 1948, depois do Holocausto. Apenas as magistradas Julia Sebutinde (Uganda) e Xue Hanqin (China) destoaram dos colegas e recusaram as disposições.
A CIJ também ordenou que Israel tome medidas imediatas e eficazes para permitir o fornecimento de serviços básicos e de ajuda humanitária, "urgentemente necessários para abordar as condições de vida adversas dos palestinos na Faixa de Gaza". A decisão do CIJ não reivindica, explicitamente, um cessar-fogo. Também evitou se pronunciar sobre a questão subjacente de enquadrar, ou não, as operações militares israelenses no enclave palestino no conceito jurídico de genocídio.
Enquanto os palestinos celebravam um "momento histórico", o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, classificava a acusação sul-africana como "falsa e escandalosa". "Pessoas decentes de todos os lugares deveriam rejeitá-la. Estamos travando uma guerra injusta. Lutamos contra os monstros do Hamas, que assassinaram, estupraram e sequestraram nossos cidadãos. Continuaremos fazendo de tudo para proteger a nós mesmos e aos nossos cidadãos, respeitando, ao mesmo tempo, o direito internacional", declarou o chefe de governo. Ele acusou a Corte de Haia de privar o Estado judeu do direito básico à autodefesa. Israel Katz, ministro das Relações Exteriores de Netanyahu, sublinhou que o compromisso do país com o direito internacional é "inabalável". "Louvo nossa excelente equipe jurídica por seus excelentes esforços. Vocês representaram Israel e o povo judeu com honra. Vocês nos deixaram orgulhosos", disse.
Os Estados Unidos, aliados de Israel, desqualificaram as alegações. "Seguimos acreditando que as acusações de genocídio são infundadas e tomamos nota de que o tribunal não se pronunciou sobre o genocídio nem pediu um cessar-fogo em sua decisão", reagiu o Departamento de Estado americano.
Em nota, o movimento extremista palestino Hamas saudou a decisão e disse acreditar que a CIJ comprovou a acusação de genocídio contra Israel. "A decisão abre caminho para líderes inimigos serem responsabilizados por crimes ante um tribunal internacional, ao enfatizar os direitos do povo palestino de decidirem o seu destindo, estabelecerem um Estado independente e retornarem para sua terra e sua casa", afirma o texto.
"Medidas marginais"
Na opinião do israelense Barak Medina, professor de direito na Universidade Hebraica de Jerusalém, as implicações práticas das medidas da Corte de Haia são "marginais". Ele destacou que o tribunal exige que Israel se certifique de que não comete o crime de genocídio. "É uma decisão praticamente sem sentido, uma vez que Israel não comete esse crime, independentemente da resolução da Corte", afirmou, por e-mail, ao Correio. O estudioso denunciou que o raciocínio dos 15 juízes foi tendencioso.
Medina explicou que, ao determinar que não pode excluir a possibilidade de genocídio, a CIJ baseia-se exclusivamente no "terrível efeito" da guerra sobre a população civil de Gaza e em algumas declarações de líderes de Israel. "Ela ignora por completo as evidências relativas às táticas de guerra do Hamas, que usa a população civil como escudos humanos, e das Forças de Defesa de Israel, que evita alvejar civis intencionalmente, além de materiais adicionais que rejeitam a alegação sobre a intenção de destruir o povo palestino." A CIJ, que dispõe sobre disputas entre nações, emite decisões vinculativas e inapeláveis, mas carece de meios que garantam sua aplicação.
Mustafa Barghouti, secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina e potencial sucessor do presidente Mahmud Abbas, disse ao Correio que, pela primeira vez na história, "depois de 75 anos de completa impunidade ante o direito internacional, Israel está despojado da impunidade e precisa enfrentar a Corte Internacional de Justiça". "Por meio de suas decisões, a CIJ deixou claro que há uma possibilidade de haver um caso de crime de guerra e de genocídio contra Israel. Isso é muito importante, pois mudará toda a atmosfera. É claro que teria sido melhor se a Corte chegasse ao ponto de ordenar a imediata interrupção da guerra. Na realidade, todas as exigências feitas a Israel não podem ocorrer sem um cessar-fogo permanente", disse.
Para Barghouti, a decisão de Haia coloca Israel, mas também os Estados Unidos e outros países aliados, como a Alemanha, em uma decisão "muito difícil". "Se eles não apressarem a implementação do cessar-fogo imediato e não pararem com as atrocidades contra o povo palestino, serão cúmplices."
"Dia histórico"
Embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim Alzeben também comemorou. "Este é um dia histórico, em que a voz da lei, a qual Israel se recusa a respeitar e a implementar, triunfou", afirmou à reportagem. O diplomata advertiu que todos aqueles que tentam apoiar o "comportamento agressivo" e a "ocupação ilegal" estarão do outro lado do consenso globlal, nos âmbitos político, diplomático e militar. "Solicitar que sejam tomadas medidas práticas para impedir o fim do genocídio é um reconhecimento implícito do genocídio."
Por meio do WhatsApp, Daniel Zonshine, embaixador de Israel no Brasil, sublinhou que o tribunal da ONU "deixou claro que sua decisão não determina se as reivindicações da África do Sul têm algum mérito". "Israel tem o direito de se defender contra o ataque terrorista que está em curso. Nossa guerra é contra o Hamas, não contra os civis palestinos", disse ao Correio.
Qais Shqair, embaixador e chefe da Missão da Liga Árabe no Brasil, admitiu ao Correio que 26 de janeiro de 2024 "será lembrado não apenas pela Justiça, mas pela comunidade internacional, pela humanidade e pelo Estado de direito". Segundo ele, a decisão da CIJ deveria marcar um "genuíno ponto de partida para a ONU praticar suas obrigações na busca da paz e da estabilidade mundiais, por meio da adesão de todos os países a essa convenção". "Ninguém está acima da lei. O caminho correto que conduz à segurança, à estabilidade e à paz deve estar restrito à lei e ao mandato da legimitidade da ONU."
Shqair avaliou como "positivas" as reações da comunidade internacional quanto à decisão da CIJ, mas pontuou que o primeiro-ministro rejeitou a decisão. "Ele repete estereótipos de autodefesa sobre suas mentiras fabricadas de uma guerra contra aqueles que decapitaram bebês, estupraram mulheres e queimaram crianças. Se tais acusações feitas por autoridades israelenses de alto escalão ainda são válidas, por que elas não forneceram à CIJ um único documento que provasse suas alegações, a fim de ganhar o caso, e ganhar a simpatia e a compreensão de todos?", questionou.
Presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), Claudio Lottenberg avaliou que a acusação de genocídio foi proposta dentro de uma estratégia política. "Na prática, a decisão da CIJ reforçará as responsabilidades de ambos os lados. Haverá pressão maior pela soltura dos reféns e a oportunidade de uma reflexão maior por parte dos países que aderiram ao processo de condenação", observou ao Correio.
ALON BEN-MEIR, PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE NOVA YORK
Qual é a importância dessa decisão?
A decisão da Corte Internacional de Justiça é importante por dois motivos. Em primeiro lugar, a Corte ordenou a Israel que permita mais ajuda humanitária em Gaza, o que é extremamente importante e urgente. Em segundo, ordenou que Israel previna quaisquer atos que possam ser vistos como genocídio. O que é importante notar, no entanto, é que a Corte não apelou à Israel para que suspenda a operação militar em Gaza, amplamente por saber que seria totalmente impossível paralisar os combates sem qualquer caminho para o pós-guerra e também por saber que Israel não cumpriria com esse veredicto. Ainda que Israel tenha criticado a decisão da Corte, acredito que a sua crítica não se justifica, especialmente porque é necessário que a ajuda humanitária, que inclui alimentos, medicamentos, água e gás, entre no enclave.
Como vê o fato de a Corte Internacional de Justiça não ter exigido a suspensão da guerra?
O fato de o tribunal não ter exigido que Israel suspendesse imediatamente todas as hostilidades não é necessariamente frustrante. Na minha perspectiva, se há alguma dimensão prática na decisão, é que existe a possibilidade de que o fim abrupto da guerra, sem qualquer acordo entre os dois lados, possa precipitar, com o tempo, um conflito ainda maior e mais mortífero. (RC)
"Nós estamos comprometidos em agir de acordo com os direitos dos civis palestinos e as obrigações, sob o direito internacional, incluindo a lei humanitária. As acusações da África do Sul sobre genocídio são infundadas."
Daniel Zohar Zonshine, embaixador de Israel no Brasil
"O cessar-fogo é um dossiê urgente a ser abordado pelo Conselho de Segurança da ONU, que tem jurisdição, após a decisão da CIJ. Ninguém está acima da lei. Esta é a lição. A humanidade é mais forte do que a injustiça e a força bruta."
Ibrahim Alzeben, embaixador da Palestina no Brasil
"Embora preliminar, a decisão legitima o direito à autodefesa do Estado de Israel, desclassifica o entendimento do genocídio e recomenda que Israel continue fazendo aquilo que vem fazendo, tomando os devidos cuidados com civis. Até o momento, vejo um desfecho positivo para Israel."
Claudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib)
"A resolução da Corte Internacional de Justiça escancara a porta para a possibilidade de reforçar um enorme boicote e sanções de desinvestimento contra crimes israelenses. Isso abre a possibilidade para um movimento muito mais amplo, mais sério e mais eficaz nesse sentido."
Mustafa Barghouti, secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina e potencial sucessor do presidente Mahmud Abbas
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