23 de Novembro de 2024

'As Viagens de Marco Polo': a verdadeira história do best-seller do século 14


É possível confiar em um homem que afirma ter visto um unicórnio na ilha de Sumatra, na Indonésia?

Esta e outras questões igualmente válidas vêm lançando dúvidas sobre a confiabilidade dos relatos de Marco Polo (1254-1324), desde que o livro As Viagens de Marco Polo se tornou um best-seller, no século 14.

A obra foi traduzida para dezenas de idiomas, copiada à mão em incontáveis manuscritos e era disponível em qualquer local sofisticado da Europa.

O livro de Marco Polo é o primeiro relato europeu sobre a Rota da Seda. Suas histórias são repletas de maravilhas, especiarias, ouro e pedras preciosas.

Elas também descrevem hábitos sexuais extravagantes e fascinantes estratégias de guerra. Tudo isso faz com que a leitura do relato de viagem seja um verdadeiro prazer — mas também, em parte, algo "difícil de acreditar", como observou um copista particularmente escrupuloso ao lado da sua cópia.

Mas não é preciso ser tão cético. Atualmente, 700 anos depois da morte de Marco Polo, no dia 8 de janeiro de 1324, podemos dizer com bastante certeza que o famoso comerciante, explorador, escritor e antropólogo autodidata veneziano, de fato, viu um unicórnio — ou, pelo menos, que ele não teria mentido a respeito (veja ao final).

"Veneza era a Nova York do mundo da época", segundo o historiador italiano Pieralvise Zorzi. Sua família tem raízes que remontam aos tempos de Marco Polo e mais além.

A cidade era uma metrópole multicultural e receptiva — um centro comercial vibrante que conectava o Ocidente ao Oriente e onde a única religião verdadeira era o comércio. E a família Polo se destacou nesta atividade.

O pai de Marco Polo, Niccolò, e seu tio, Matteo (Maffeo, em dialeto veneziano), tinham um palácio muito próximo a onde hoje fica o apartamento de Zorzi no Grande Canal de Veneza.

Eles também mantinham escritórios em Constantinopla (hoje, Istambul, na Turquia), mas sua perspicácia os levou a fechá-los pouco antes que os gregos tomassem a cidade e expulsassem os venezianos.

Niccolò e Matteo Polo venderam tudo na hora certa e saíram para o Oriente, em busca de novos mercados. Eles comercializaram seda, especiarias, pedras preciosas e a cobiçada glândula de um pequeno animal, o veado-almiscareiro, usada no preparo de perfumes.

Eles voltaram para Veneza depois de alguns anos e, na sua segunda viagem à China, em 1271, levaram Marco Polo, então com 17 anos de idade.

Segundo o relato de Marco Polo, eles viajaram por três anos ao longo da Rota da Seda, a partir de Acri (hoje, em Israel). Eles cruzaram o Oriente Médio e boa parte da Ásia Central, até a corte do imperador mongol Kublai Khan (1215-1294), neto de Gengis Khan, em Khanbaliq (hoje, Pequim, na China).

Os viajantes passaram cerca de 20 anos na China, fazendo negócios e trabalhando como uma espécie de embaixadores do governo local.

A família Polo voltou à Europa via Sumatra e ilhas Andaman, no Oceano Índico. Eles contornaram a Índia pelo mar até chegar a Áden (hoje, no Iêmen), Istambul e, finalmente, Veneza.

Quando os três comerciantes chegaram, Marco Polo estava na casa dos 40 anos. A lenda conta que, quando eles bateram à porta do seu palácio, o servo perguntou quem era e eles responderam, no dialeto local, "i paroni" ("os donos").

Mas, um ano depois, Marco Polo foi preso. Ele foi capturado pelos genoveses em uma das batalhas entre as cidades marítimas rivais de Veneza e Gênova.

Na prisão, ele teve a sorte de conhecer o escritor e editor Rustichello de Pisa, que percebeu o potencial literário do relato de Marco Polo sobre um mundo que, na época, era bastante desconhecido dos europeus. Eles então escreveram a história.

O livro foi um sucesso. O texto era tão envolvente que foi copiado inúmeras vezes e traduzido para diversos idiomas.

Ao longo dos séculos, As Viagens de Marco Polo se tornou um enigma perfeito para os filólogos. Afinal, a versão original logo se perdeu e ficamos com dezenas de traduções feitas com base em outras traduções – e nenhuma delas era necessariamente precisa.

Eugenio Burgio estuda as obras de Marco Polo na Universidade de Veneza Ca' Foscari mais ou menos pelo mesmo tempo em que o viajante veneziano ficou fora de casa. Ele oferece um exemplo da jornada percorrida pelo livro.

Uma versão em francês poderia ser traduzida para um dialeto do norte da Itália, da região entre Emilia Romagna e o Vêneto. Esta versão, por sua vez, poderia ser traduzida para o dialeto da Toscana. E da Toscana, alguém o traduziu para o latim.

Qual a proximidade entre essa versão latina e o original?

É difícil responder. Mas Burgio e sua equipe pretendem publicar a primeira edição filologicamente completa de As Viagens de Marco Polo ao longo deste ano, em inglês. Seu objetivo é oferecer a hipótese mais plausível e suas versões.

"O sonho secreto de um filólogo é ser uma espécie de Indiana Jones, desenterrando tesouros", confessa Burgio.

E é exatamente isso que ele e sua equipe estão fazendo: desenterrando essa joia literária, de um dos primeiros escritores de viagens do mundo.

Nos Estados Unidos, "Marco Polo" é um conhecido jogo de pega-pega praticado em piscinas. Um jogador vendado grita "Marco!" enquanto tenta pegar os que respondem "Polo".

Curiosamente, o legado do viajante veneziano homônimo é tão difícil de encontrar quanto os praticantes do jogo.

Não foi só a versão original do livro que se perdeu para sempre. O palácio da família Polo foi destruído por um incêndio no século 16.

Zorzi me levou do seu apartamento até o local onde ficava o palácio. Na curta caminhada, observamos pelo menos seis placas de mármore em construções diferentes, afirmando ser o local da casa da família Polo.

A lápide do túmulo de Marco Polo na igreja veneziana de São Lourenço também desapareceu. E nunca foi construído nenhum monumento na cidade dedicado ao viajante.

"É uma maldição", afirma a professora Tiziana Plebani, que passou 10 anos estudando Marco Polo e seu testamento, escrito no seu leito de morte.

E, se o legado do viajante veneziano é obscuro, a veracidade das suas histórias é questionada há séculos.

Será que ele realmente viajou até a China? E, se for verdade, por que ele não mencionou o chá, nem a Grande Muralha?

Afinal, ele nem sequer falava chinês, o que parece improvável para alguém que afirmava ter feito negócios na região por um quarto de século.

Algumas destas questões foram levantadas já na Idade Média. Mas, recentemente, os especialistas parecem concordar que existem respostas razoáveis para elas.

Burgio, por exemplo, não se surpreende pelo fato de Marco Polo não mencionar o chá no seu relato de viagem.

"Esse hábito de beber chá é motivo de fixação entre os historiadores anglo-saxões", afirma Burgio. "Por que Marco Polo se importaria com o chá? Eu entendo se fosse vinho ou café, mas chá?"

Além disso, o chinês não era o idioma da classe dominante da época "e a Grande Muralha ainda não havia sido completada", acrescenta Zorzi.

As provas das viagens de Marco Polo também podem ser encontradas em documentos legais.

Após a morte do marido, a filha mais velha de Polo, Fantina, foi à justiça pedir seu dote de volta. Entre os bens, ela relacionou um passaporte dourado oferecido ao seu pai pelo Kublai Khan. A placa preciosa significava que Marco Polo havia viajado com a bênção do Khan.

Tudo isso sem mencionar que o mercador conseguiu descrever em detalhes o sistema monetário chinês, por exemplo. Os especialistas acreditam que ele pode ter exagerado seu papel de embaixador, afirmando ser mais importante do que era na realidade, mas parece mais do que provável que ele tenha realmente viajado até a China.

A história de Fantina Polo revela outro ponto importante sobre seu pai. No seu testamento, Marco Polo deixou tudo para sua esposa e filhas, o que não era comum naquela época.

"É verdade que ele não tinha filhos ou irmãos [homens] para quem pudesse deixar sua fortuna, mas ele poderia ter procurado parentes homens mais distantes", explica Tiziana Plebani.

"Por isso, ou ele não se dava bem com nenhum homem da sua família, ou ele realmente valorizava e respeitava suas filhas e sua esposa. O que faz sentido, considerando que os mercadores venezianos ficavam fora da cidade por anos e suas mulheres eram confiadas com tudo o que havia em casa."

Marco Polo era um homem da era medieval, mas ele descreve sem julgamentos uma região de Tebet (hoje, Tibete) onde ninguém se casava com uma mulher virgem. Além disso, as mulheres que tiveram muitos amantes eram consideradas as melhores esposas, já que devia haver alguma razão para elas terem sido tão procuradas.

O mercador também se maravilha com a chamada Ilha das Mulheres na Índia, que os homens só podiam visitar durante três meses do ano (em março, abril e maio). E descreve como as mulheres e meninas tártaras cavalgavam pela Ásia central da mesma forma que os homens.

Mas os interesses e a curiosidade de Marco Polo eram ecléticos. Eles incluíam de tudo, "desde os hábitos sexuais das concubinas até um tipo específico de galinha que tinha pelos em vez de penas", segundo Eugenio Burgio.

O viajante também escreve sobre a cidade de Sapurgan (hoje, Sheberghan, no Afeganistão), que produzia os melhores melões do mundo – "mais doces do que mel".

Marco Polo também descreve os costumes da região de Malabar, no sul da Índia, onde as pessoas se lavavam antes das refeições e usavam apenas a mão direita para comer.

E admira a sabedoria do Kublai Khan, que "plantava árvores ao longo das estradas", para que os viajantes pudessem encontrar facilmente seu caminho e usufruir do conforto da sua sombra.

Marco Polo não acreditava que sua cultura fosse superior às demais e era um ardente admirador do império mongol. Ele escreveu sobre as maravilhas e os aspectos inteligentes de cada cultura que conheceu.

"Foi a primeira vez que Marco Polo saiu de Veneza", explica Pieralvise Zorzi. "É um belo mundo que se abre, visto pelos olhos de um adolescente. Tudo é tão novo, tão incrivelmente interessante, que ele conseguiu registrar tudo na memória."

O mundo de hoje é muito menor porque quase não há cantos inexplorados, como prossegue Burgio.

Marco Polo viveu em uma época em que ainda havia muito a se descobrir. E ele parece ter visto a humanidade como um todo, observando que "as pessoas podem ter comportamentos diferentes do nosso, mas pelos mesmos motivos".

"Marco Polo nos ensina a sermos abertos e mais curiosos, mais dispostos a interagir [com outras culturas]", afirma Plebani. Ele considera o mercador um "mensageiro da paz e da admiração".

Por falar em admiração: e quanto aos animais mitológicos que ele afirmou ter encontrado?

Um deles é a salamandra medieval, um lagarto lendário que se acreditava ter o estranho poder de viver no fogo. Marco Polo afirmou tê-la visto em Chingitalas, no norte da China.

Mas ele também disse que não se trata de um animal. Ele o descreveu como um material filamentoso e resistente ao fogo – trata-se do amianto.

E quanto ao unicórnio?

Marco Polo explicou que seu chifre é grosso e preto. Sua cabeça parece a de um javali selvagem, ele está sempre olhando para baixo e adora a lama.

"Ele é muito feio e não se parece em nada com o que imaginamos, nem com uma criatura que pudesse ser embalada por uma mulher virgem, pelo contrário", escreveu ele.

Marco Polo realmente viu esse animal. Era o que hoje chamamos de rinoceronte.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.

Fonte: correiobraziliense

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