Lisboa — O mundo terá, neste ano, o maior número de eleições da história. Metade da população global, em mais de 70 países, irá às urnas, muitas vezes, sem a garantia da liberdade de escolha. Para a professora Ilke Toygür, diretora do Central de Política Global da IE University, na Espanha, o momento é crucial para o futuro da democracia, que, no entender dela, está em risco, ante o vertiginoso crescimento da ultradireita em todo o planeta.
"O difícil equilíbrio entre o populismo de direita e a democracia está sendo fortemente desafiado, levantando questionamentos sobre se a degradação institucional e o autoritarismo são e serão reversíveis", diz Ilke. Ela acredita que eleições como as dos Estados Unidos, marcadas para novembro, acarretarão uma série de efeitos na ordem internacional, sobretudo, se o vitorioso for Donald Trump, que já comandou a maior potência global.
Nem mesmo o Brasil estará livre das consequências do possível retorno de Trump ao poder, pois pode abrir as portas no Congresso para a derrubada da inelegibilidade de Jair Bolsonaro, o que o colocaria no jogo eleitoral de 2026. A professora ressalta, no entanto, que um retorno do ex-presidente nas próximas eleições dependerá do contexto interno do país e da avaliação que a população brasileira fará do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Num mundo em que já há mais autocracias do que países com regimes democráticos, a diretora do Centro de Política Global da IE University acredita que a falta de atores de peso no quadro internacional permitiu que a extrema-direita saísse das sombras e ganhasse força o suficiente para empurrar o planeta para o autoritarismo e a redução das liberdades. "Portando, os resultados eleitorais de 2024 serão determinantes para se reorganizar as alianças internacionais e o equilíbrio de forças globais", frisa.
A professora chama ainda a atenção para os perigos da inteligência artificial (AI) nas disputas eleitorais deste ano, com a deep fake provocando estragos enormes na democracia, ao confrontar os Poderes constituídos. Ela também alerta para o inaceitável crescimento das desigualdades sociais e para o não cumprimento dos acordos que tratam das mudanças climáticas. Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.
Esta é a primeira vez na história que tantos países, com uma percentagem tão elevada da população mundial, terão eleições no mesmo ano. Efetivamente, irão às urnas sete dos 10 países mais populosos do globo — Índia, Estados Unidos, Indonésia, Paquistão, Bangladesh, Rússia e México. Com isso, este ano representará um ponto de inflexão na definição do conceito de democracia. Este momento crucial também vai acarretar uma série de efeitos na ordem internacional, não apenas pelos resultados eleitorais, mas pela mobilização dos temas das campanhas.
O difícil equilíbrio entre o populismo de direita e a democracia está sendo fortemente desafiado, levantando questionamentos sobre se a degradação institucional e o autoritarismo são e serão reversíveis. Existem elementos no populismo de direita que sobreviveram nas sombras da democracia, como o sentimento de pertencimento à nação, o nacionalismo, a representação de uma vontade monolítica de um povo e o grau de integração no sistema internacional. Nos últimos anos, e em particular com a aceleração da globalização, vimos como esses elementos voltaram a se irromper com força nas democracias. É um ano eleitoral, e é muito importante entender as causas desse fenômeno.
Efetivamente, nem todas as eleições que vão se realizar neste ano serão livres e justas. Isso implica dizer que 2024 trará consigo um elevado risco de entrincheiramento das liberdades no panorama internacional. Existem ameaças reais à democracia, começando por retrocessos na separação entre os Poderes, particularmente na intromissão do Executivo no Judiciário. Mas, apesar do elevado número de democracias defeituosas e de autocracias, assim como a sensação generalizada de que as democracias estão em retrocesso, também existe a realidade de que os regimes democráticos prevalecem como opção preferida sobre outras formas de governo.
As eleições norte-americanas estão se configurando como uma revanche entre Trump e Joe Biden. Não me parece que serão eleições centradas em questões tradicionais, como a economia. Pelo contrário, parece que se basearão numa avaliação qualificada de cada candidato para o cargo. Apesar disso, o resultado eleitoral terá impactos em todo o mundo. A vitória de Trump representará o risco de isolamento dos Estados Unidos, num panorama geopolítico instável, especialmente no que diz respeito à Europa. Por outro lado, também se pode esperar uma intensificação da competição com a China por meio de guerras comerciais, um crescente risco de erosão da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), uma redução no apoio dos EUA à Ucrânia e um manifesto de rejeição ao multilateralismo. E, sim, trabalhamos com o pressuposto de que isso pode se tornar uma realidade.
O risco de desintegração da União Europeia é muito baixo. No entanto, é possível que os resultados das eleições de junho alterem a distribuição de forças parlamentares e, consequentemente, as coligações necessárias para a implementação de determinadas políticas. Espera-se que o Partido Popular Europeu seja o mais votado, seguido pela Aliança Progressista dos Socialistas Democratas e pela Aliança dos Liberais e Democratas. Contudo, também é previsível que esses três partidos de centro percam espaço para a frente de extrema-direita. Caso os partidos de centro se mantenham como maioria, pode-se esperar uma continuidade, o que representará apoio à Ucrânia, vontade de ampliar e reformar a União Europeia a fim de reforçar a sua resiliência e um elevado compromisso com a transição energética — os seus principais trunfos políticos. Ainda assim, é preciso ressaltar que o resultado eleitoral dos Estados Unidos terá repercussões em matéria de política externa da União Europeia. No caso de triunfo de Trump, o bloco europeu defenderá o aprofundamento de sua autonomia estratégica.
A possibilidade de um sistema unipolar ou bipolar é muito remota, pois já estamos vivendo em um mundo multipolar. Os resultados eleitorais de 2024 serão determinantes para se reorganizar as alianças internacionais e, portanto, o equilíbrio de forças globais. Existem três elementos-chave que nos fazem ver que vivemos em um sistema multipolar. Primeiro, nos dias de hoje, não há um ator internacional que estabeleça e garanta o cumprimento das normas internacionais pela maioria dos países. Segundo, assistimos a um empoderamento relativo de potências revisionistas, como são os casos da China, da Rússia e do Irã, cujo principal objetivo comum é minar o peso e a legitimidade internacional dos Estados Unidos na sua busca pela hegemonia global. Por último, a robustez da aliança transatlântica está em questão, pois os resultados eleitorais dos Estados Unidos marcarão um antes e um depois para esse acordo.
O grau de instabilidade no sistema internacional em que vivemos é muito elevado. Não só os conflitos entre os Estados e os golpes de Estado estão aumentando, como também começa a se falar em guerras climáticas. Para além dos horrores e do sofrimento provocados pelas guerras, há novas ameaças de natureza híbrida que assolam os Estados. Entre elas, estão os cada vez mais constantes ataques cibernéticos a infraestruturas críticas, a disseminação de desinformação e a instrumentalização da população migrante. Infelizmente, nos últimos anos, vimos a diluição das fronteiras entre guerra e paz, crise e conflito.
São os brasileiros que têm mais capacidade de avaliar a democracia do país. Eu posso dizer que o Brasil é um país muito importante, vai sediar a reunião de cúpula do G20 neste ano e tem um papel muito importante a jogar no redesenho da ordem mundial. Nós temos muito interesse em aumentar a colaboração com os centros de pesquisas do país.
O feedback internacional é chave para a proliferação de ideias e movimentos políticos, mais ainda no caso de Trump, tendo sido ele líder de uma potência global. Porém, os processos eleitorais são dinâmicos e sujeitos a uma grande quantidade de variáveis. A possibilidade que Bolsonaro regresse ao poder nas eleições de 2026 dependerá do contexto interno do país e da avaliação que a população brasileira fará do mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.
É verdade que a inteligência artificial impõe desafios muito significativos às eleições deste ano. O desenvolvimento de estratégias e regulações que abordem a ameaça da desinformação e a deep fake são fundamentais. Os principais componentes dessas estratégias têm de incluir três fatores cruciais. Em primeiro lugar, deve-se destinar uma elevada quantia de recursos financeiros para as análises de riscos e o monitoramento de informações fraudulentas. Em segundo, o capital humano é chave nesse processo, o qual também requer investimentos em pesquisas e no desenvolvimento de capacidades. Em terceiro, a adaptação constante dessas estratégias aos novos avanços tecnológicos e os dilemas que eles acarretam é crucial para prevenir os efeitos adversos.
Cada país tem uma política externa diferente, que também pode diferir no âmbito doméstico. Portanto, é muito difícil de prever. No entanto, com resultados eleitorais que favoreçam governos com agendas de política internacional que promovam o multilateralismo e o globalismo, haverá margem maior para uma gestão conjunta e vontade comum para enfrentar conflitos externos, desde as guerras no Oriente Médio e na Ucrânia até a promoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Por outro lado, se os resultados eleitorais de atores relevantes no plano internacional estabelecerem governos protecionistas ou isolacionistas, é de se esperar menor vontade de intervenção e de mediação. Nesse caso, a tendência é de que os conflitos se aprofundem mais e que disputas congeladas retomem o fôlego, com dificuldades de abordagem para soluções.
A comunidade internacional está imersa em uma dinâmica complexa e instável no balanço de poder. É certo que há iniciativas a níveis nacional e regional que abordam desafios globais, como as mudanças climáticas e as crescentes desigualdades. Contudo, apesar dos reiterados compromissos com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, dos acordos alcançados recentemente na COP28, não existe no sistema internacional um ator que garanta o cumprimento de tudo o que foi acordado. Assim, 2024 será um ano crucial para que mais da metade da população mundial se pronuncie sobre a sua visão nacional, tendo em conta suas repercussões no panorama internacional.
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