A Polícia Federal (PF) deflagrou na segunda-feira (29/1) mais uma fase da operação Vigilância Aproximada, que investiga o suposto uso político da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e durante o período em que o deputado federal e delegado da Polícia Federal, Alexandre Ramagem (PL-RJ), dirigiu o órgão.
Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), tratava-se de uma "Abin paralela". Bolsonaro e Ramagem vêm negando quaisquer irregularidades.
A operação cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços ligados a supostos integrantes do chamado "núcleo político" do esquema, entre eles um dos filhos do ex-presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).
A BBC News Brasil procurou o gabinete e a defesa do vereador, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
A ação é um desdobramento das operações Última Milha e Vigilância Aproximada — esta deflagrada pela PF na última quinta-feira (25/1) e que teve Ramagem como um dos alvos.
As investigações começaram após a revelação pelo jornal O Globo sobre o suposto uso ilegal de um software chamado First Mile pela Abin.
Segundo as reportagens, a agência estaria usando o software para monitorar, de forma ilegal, a geolocalização de aparelhos de telefone celular.
Em nota à imprensa, a Abin disse que a atual gestão vem há dez meses colaborando com os inquéritos da PF e do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre supostas irregularidades cometidas com o First Mile em 2019 e 2021.
"A Abin é a maior interessada na apuração rigorosa dos fatos e continuará colaborando com as investigações", disse a agência.
As investigações da PF apontam que o esquema de coleta de informações de inteligência teria servido a fins políticos com o monitoramento de adversários políticos da família Bolsonaro. Além do uso de softwares, haveria, também, o uso de drones e "campanas".
A publicação das decisões proferidas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, vem dando mais detalhes sobre como funcionaria o suposto esquema, mas ainda há perguntas sem resposta.
Entenda o que se sabe e o que ainda não se sabe sobre a chamada "Abin paralela".
Segundo decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes, que autorizou a operação contra Carlos Bolsonaro a pedido da PGR e da Polícia Federal, o filho do ex-presidente seria um dos integrantes do "núcleo político" da chamada "ABIN Paralela".
"Carlos Bolsonaro é tido pelas investigações policiais como integrante do que é chamado de núcleo político de grupo que é tido como organização criminosa atuante na ABIN – Agência Brasileira de Inteligência, ao tempo em que era dirigida pelo hoje Deputado Alexandre Ramagem", diz um trecho de um despacho da PGR citado na decisão do STF.
"As investigações apontam para o uso da Agência com vistas a fins políticos estranhos à sua finalidade, envolvendo monitoramento de pessoas específicas, de interesse meramente particular ou político de terceiros."
De acordo um trecho da representação feita pela PF ao STF, o "núcleo político" obtinha informações sigilosas por meio de Ramagem.
Um dos exemplos citados pela PF foi a troca de mensagens entre uma assessora de Carlos Bolsonaro e uma assessora de Ramagem.
A assessora do parlamentar teria pedido acesso a informações sobre a delegada de um inquérito conduzido pela Polícia Federal e que, segundo a assessora, seria de interesse da família Bolsonaro.
A delegada em questão conduzia inquéritos policiais que seriam de interesse da família Bolsonaro.
Apesar de ser apontado como integrante do núcleo político do esquema, não há, ao menos na decisão proferida por Alexandre de Moraes, informações sobre se Carlos Bolsonaro tinha conhecimento de que sua assessora estaria solicitando informações a respeito de inquéritos relacionados à sua família.
Também não há, ainda, informações na decisão de Moraes que indiquem se Carlos receberia as informações solicitadas e que uso ele e o núcleo político davam para os dados supostamente fornecidos pela "Abin paralela".
Segundo as investigações, Ramagem seria um dos integrantes do chamado "núcleo alta gestão-PF" da "Abin paralela". O termo "alta gestão-PF" remete aos integrantes da alta cúpula da Abin.
Ramagem foi diretor da agência entre 2019 e 2022 — assim como outros investigados, ele pertence aos quadros da PF. O deputado federal nega ter cometido qualquer irregularidade durante sua passagem pelo órgão de inteligência.
As suspeitas são de que Ramagem tenha participado de uma organização criminosa dentro da Abin para monitorar adversários da família Bolsonaro e proteger filhos do então presidente de investigações.
Segundo a PF, durante sua gestão, a agentes a serviço da Abin teriam feito monitoramentos de forma ilegal.
De acordo com trechos da representação feita pela Polícia Federal e pela PGR ao STF, um dos elementos que apontam Ramagem como integrante do esquema é o fato de ele ter recebido pedidos de informação feitos por uma assessora parlamentar de Carlos Bolsonaro sobre uma delegada que conduzia inquéritos sobre a família Bolsonaro.
Outro elemento apontado nas investigações é o fato de Ramagem ter feito uma impressão com uma lista de inquéritos eleitorais sigilosos em 2020. O documento, segundo a PF, "possivelmente" seria entregue aos integrantes do chamado "núcleo político" da organização.
Ramagem é forte aliado da família Bolsonaro, sendo cotado para disputar neste ano a eleição para prefeito do Rio de Janeiro, berço político do ex-presidente.
Ele se tornou próximo do clã político na campanha de 2018, quando foi destacado pela PF para coordenar a segurança do então candidato após ele ter sido alvo de uma facada em setembro daquele ano.
Ainda de acordo com a decisão de Alexandre de Moraes que autorizou a operação da PF contra o deputado, agentes destacados sob o comando de Ramagem "utilizaram das ferramentas e serviços da Abin para serviços e contrainteligência ilícitos e para interferir em diversas investigações da Polícia Federal, como por exemplo, para tentar fazer prova a favor de Renan Bolsonaro, filho do então Presidente Jair Bolsonaro".
Em inquérito já arquivado, Renan era suspeito de cometer tráfico de influência ao ter, supostamente, intermediado reuniões entre empresários e integrantes do governo Bolsonaro. Jair Renan e sua defesa negam que ele tenha praticado qualquer irregularidade no caso.
A decisão cita também suposta atuação da Abin com a produção de relatórios de inteligência para ajudar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do ex-presidente, na investigação por um suposto esquema de rachadinha (desvio de salário de funcionários) em seu antigo gabinete de deputado estadual no Rio de Janeiro.
O caso depois foi paralisado por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que anularam provas obtidas.
Após a operação da quinta-feira, Ramagem deu uma entrevista à GloboNews em que negou ter favorecido a família Bolsonaro com informações colhidas pela Abin.
"Quanto a essa questão do Renan Bolsonaro, eu não tenho intimidade com ele. Só apertei a mão dele algumas vezes, e as pessoas que estavam na Abin, eu não sei se têm qualquer conhecimento", disse o deputado.
"Com o senador Flávio Bolsonaro eu tenho grande contato, mas a questão dos dois é que eles são filhos do presidente, eles têm proteção do GSI [Gabinete de Segurança Institucional] enquanto filhos do presidente."
Já Flávio Bolsonaro se manifestou, por meio de sua assessoria, negando qualquer uso da Abin para protegê-lo.
"É mentira que a Abin tenha me favorecido de alguma forma, em qualquer situação, durante meus 42 anos de vida. Isso é um completo absurdo e mais uma tentativa de criar falsas narrativas para atacar o sobrenome Bolsonaro", disse o senador em nota.
Os dados divulgados nas decisões de Alexandre de Moraes e nas representações da PF e da PGR não apontam, pelo menos ainda, qual o grau de conhecimento que Ramagem tinha sobre o uso da ferramenta First Mile, uma das mais utilizadas pelo esquema, segundo a Polícia Federal.
Os documentos divulgados sobre as operações que investigam o caso ainda não apontaram se Bolsonaro teria conhecimento do funcionamento da suposta "Abin paralela" ou se ele era beneficiado com informações produzidas por ela.
A fase de segunda-feira da Operação Vigilância Aproximada cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços ligados a Carlos Bolsonaro.
Um deles foi cumprido em uma residência da família Bolsonaro, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, onde estava o presidente e outro de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), além de Carlos.
Mas o alvo era o vereador e não o ex-presidente nem Eduardo Bolsonaro.
A BBC News Brasil mandou perguntas ao ex-secretário de comunicação e atual advogado de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, mas até o momento nenhuma resposta foi enviada.
Em uma transmissão ao vivo em suas redes sociais no domingo (28/01), Bolsonaro negou que fizesse uso de uma estrutura paralela de inteligência nos moldes da que é investigada pela PF.
Ele afirmou que os serviços oficiais de inteligência do Estado não forneciam informações satisfatórias e que, por isso, fazia ligações para pessoas conhecidas ou mesmo para estranhos durante o período em que foi presidente para obter informações.
"Muitas vezes eu ligava para um posto militar de um cantão desse Brasil, atendia um cabo, essa era minha inteligência, essa é confiável, porque essas oficiais, respeitosamente, para mim não chegava nada", disse o ex-presidente.
Bolsonaro também elogiou Ramagem, a quem classificou como "um cara fantástico".
O ex-presidente já havia citado utilizar um sistema de inteligência paralelo aos existentes no Estado durante uma reunião ministerial em abril de 2020.
O vídeo da reunião foi divulgado após uma decisão do STF no âmbito de uma investigação sobre a suposta interferência de Bolsonaro na PF para proteger seus familiares em investigações.
Na época, ele reclamou da suposta falta de confiança nos sistemas de informação estatais e disse utilizar um sistema "particular".
"Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm oficialmente, desinforma", disse.
Até a publicação desta reportagem, o ex-presidente não se manifestou sobre a operação de segunda-feira em suas redes sociais.
Até o momento, não se sabe quem foram todas as pessoas ou organizações que teriam sido monitoradas de forma clandestina pela chamada "Abin paralela" por meio do First Mile.
Apesar disso, a representação da Polícia Federal ao STF, aponta para alguns nomes que teriam sido alvo do esquema, entre eles o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (PSDB-RJ), a ex-deputada Joice Hasselman (PSDB-SP) e o advogado Rodrigo Bertholdo.
Segundo a PF, no período investigado, foram identificadas 60.734 consultas feitas pelo aplicativo. Desse total, 30.344 foram realizadas durante o período eleitoral de 2020.
Essa quantidade teria sido aferida por meio dos "logs", que são os registros de uso do aplicativo.
Esses números, no entanto, não significam que cada consulta seja referente a um terminal pois é possível que um mesmo número tenha sido consultado mais de uma vez.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) pediu ao STF acesso à lista de todos os senadores e deputados federais que teriam sido monitorados de forma irregular pela chamada "Abin paralela". Até o momento, o pedido ainda não havia sido acatado.
O software FirstMile, produzido pela empresa israelense Cognyte, está no centro das operações Última Milha e Vigilância Aproximada. Em outubro de 2023, a PF prendeu dois agentes da Abin e afastou cinco dirigentes da Abin.
Segundo a PF, provas levantadas naquela ocasião levaram à realização da operação Vigilância Aproximada.
De acordo com as investigações iniciais, os servidores usaram o FirstMile para monitorar membros do Supremo Tribunal Federal (STF), jornalistas, advogados e políticos durante o governo Bolsonaro.
O software foi adquirido sem licitação ainda no governo Michel Temer (MDB) durante a intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro, mas teria sido utilizado mais intensamente no governo Bolsonaro, de acordo com a apuração da PF.
Esse monitoramento seria ilegal, diz a polícia, porque os agentes investigados precisariam de autorização judicial para realizá-lo.
Em nota publicada em seu site em outubro, a Abin afirmou que a corregedoria da agência instaurou uma sindicância investigativa sobre o assunto e que as informações apuradas estão sendo repassadas à PF e ao STF.
A agência informou ainda que o software FirstMile deixou de ser utilizado em maio de 2021.
Segundo especialistas, o software FirstMile teria capacidade de monitorar a geolocalização de até 10 mil celulares por um período de um ano.
Pelo que se sabe, a ferramenta não tem acesso a mensagens ou a ligações dos alvos rastreados.
O diretor da ONG Data Privacy Brasil, Rafael Zanatta, disse à BBC News Brasil em outubro que o software "invade" e "engana" a rede de empresas de telefonia para conseguir rastrear o alvo do monitoramento.
Por lei, esse tipo de dado é sigiloso. Uma operadora de celular só pode fornecer a geolocalização de seus clientes mediante autorização da Justiça.
"O que o software FirstMile faz é atacar o sistema das operadoras, ou seja, isso deveria ser uma preocupação delas também. Esses dados são depois armazenados em nuvem e o histórico é analisado e vendido ao cliente", disse Zanatta.
De acordo com um relatório da Anistia Internacional de 2021, serviços oferecidos pela Cognyte, a empresa israelense que desenvolveu o FirstMile, "foram utilizados pelo governo do Sudão para instrumentalizar perseguição e violação de direitos de opositores.”
"Essas informações podem ser usadas de diversas formas, como em investigações policiais contra o crime organizado, mas também podem ser um atrativo para monitorar ilegalmente opositores políticos e a própria população, atacando o direito a liberdades cívicas, como o de manifestação", disse Zanatta.
Fonte: correiobraziliense
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