23 de Novembro de 2024

'A Sociedade da Neve': a amizade entre protagonista e o homem que decidiu não embarcar no avião


"Alfredo! Estão dizendo no rádio que você caiu de avião nos Andes!”

O porteiro do prédio onde Alfredo Cibils morava com seus pais em Montevidéu, no Uruguai, ficou surpreso ao vê-lo entrar naquela sexta-feira, 13 de outubro, pois minutos antes soube que Alfredo era um dos passageiros do voo 571 que ia para Santiago do Chile e tinha sofrido um acidente.

Alfredo estava na lista de passageiros do avião Fairchild da Força Aérea Uruguaia que havia partido em 12 de outubro de 1972 com destino ao Chile.

O avião teve que pousar em Mendoza, na Argentina, porque as condições climáticas não eram adequadas para a travessia da Cordilheira dos Andes e, no dia seguinte, decolou para Santiago, mas colidiu com as montanhas.

Sete horas antes da partida de Montevidéu, Alfredo decidiu não embarcar naquele avião.

Seu melhor amigo, Numa Turcatti, embarcou – interpretado pelo ator uruguaio Enzo Vogrincic, o personagem de Turcatti é protagonista do filme A Sociedade da Neve, indicado ao Oscar de melhor filme internacional e melhor maquiagem e penteados.

Em outubro de 1972, Alfredo Cibils insistiu com Numa Turcatti para que viajassem a Santiago a convite de outro amigo em comum, Gastón Costemalle, que jogaria uma partida de rúgbi com seu time, Old Christians, na capital chilena.

Ambos tinham 24 anos, eram solteiros, e Alfredo havia partido nove meses antes naquele mesmo avião da Força Aérea Uruguaia — que vendia serviços fretados — com outro grupo ligado a um clube de futebol amador.

Nessa viagem, ele conheceu jovens chilenas e guardou seus números de telefone.

A ideia agora era replicar aquela viagem de festas e folia com seus três amigos, Gastón Costemalle, Alfredo "Pancho" Delgado e, principalmente, Numa, já que os dois primeiros tinham namoradas.

Mas Numa não queria ir. Ele era mais caseiro, não gostava muito de sair e não tinha entusiasmo pela ideia de viajar.

Seus interesses eram o futebol – jogar como atacante com a camisa 7 na Liga Universitária ou assistir ao Nacional nas arquibancadas do Estádio Centenário – e os estudos: queria se formar em direito.

"Ele era um cara com um coração enorme e uma força física enorme", lembra Alfredo em diálogo com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

Sua ligação com o futebol foi herança de família. Seu avô materno, Numa Pesquera, havia sido presidente do Nacional e, para os Jogos Olímpicos de Paris, em 1924, assinou um cheque em branco para que a seleção uruguaia de futebol (que acabou conquistando a medalha de ouro) pudesse comparecer.

"Não tenho dinheiro", Numa disse a Alfredo como desculpa para não viajar.

"Fale com seu pai e sua mãe", retrucou Alfredo, que conhecia o bom histórico financeiro da família e argumentava que o Chile era muito barato.

Além disso, Numa era muito tímido, principalmente com as mulheres, por isso a ideia de ir a festas e conhecer garotas também não o seduzia completamente.

Numa Turcatti era um homem de pele branca, com pouco menos de 1,80m de altura, musculoso, com cabelos pretos cacheados, penteados com gel para alisá-los e assim exibir a risca lateral como indicava a moda, e um bigode grosso.

Um bigode que, dada a impossibilidade natural e técnica de Vogrincic tê-lo no filme, foi entregue a Alfredo, que nunca o tinha deixado crescer na vida, para representar a época.

Ele tinha quatro irmãos, um deles gêmeo, e morava com os pais, Isabel Pesquera ("Tota") e Gastón Turcatti, em uma casa de três andares em um bairro residencial da capital uruguaia.

Conheceu Alfredo Cibils e Gastón Costemalle aos 15 anos na sala de aula do colégio Jesuíta Seminário. Com Pancho Delgado, com quem partilhou aulas desde os seis anos, formaram um grupo próximo de amigos, estudos e aventuras.

Mais tarde, os quatro ingressaram juntos na Faculdade de Direito da universidade e a casa dos Turcatti (a fachada e a entrada da casa que aparece no filme são da casa real onde Numa morava) era o ponto de encontro habitual.

Lá eles se reuniam a partir das 8h da manhã para estudar, com mate preparado e cigarros no centro da mesa.

Na mesma época, Numa, Alfredo e Pancho formaram um time de futebol entre os ex-alunos do Seminário de sua geração e o chamaram de Loyola Fútbol Club, em referência a Santo Inácio de Loyola, fundador da congregação jesuíta.

Jogavam nas manhãs de domingo. Às terças-feiras, ao anoitecer, Numa e Alfredo iam às reuniões da liga esportiva como representantes do time para coordenar calendário, jogos a serem disputados e campos para jogar.

Loyola também incluiu Arturo Nogueira, Julio Martínez Lamas e José Luis Inciarte, que fizeram parte do grupo de viagem ao Chile.

A insistência de Alfredo para que ele fosse passar aquele fim de semana prolongado no Chile acabou convencendo Numa. "Olha, conversei com a mamãe e ela disse que sim", disse.

Um obstáculo, no entanto, ficou no caminho.

Alfredo tinha que fazer uma prova na universidade na quarta-feira, 11 de outubro, às 14h, e o avião para Santiago partiria na quinta-feira, dia 12, às 6 da manhã.

Ao chegar à universidade, no entanto, descobriu que a prova havia sido adiada devido a uma greve estudantil de 24 horas. Em 1972, no Uruguai, o ambiente social estava tumultuado e faltavam apenas alguns meses para que ocorresse um golpe de Estado.

Alfredo havia chamado os três amigos à sua casa às 17h para mostrar os lugares onde poderiam sair à noite e as fotos que havia tirado em sua viagem ao Chile em janeiro.

"Naquela época, as fotos estavam muito na moda. Tirei várias fotos com garotas chilenas: morenas, loiras… tinha de tudo", disse Alfredo à BBC.

Ao mesmo tempo, ele deu as más notícias: teria que ficar para a prova.

Pancho Delgado telefonou ao professor, que era muito amigo do tio de Alfredo, e explicou que viajaria ao Chile, na esperança de ele poder fazer alguma coisa.

Ele procurou o número no diretório e discou. Do outro lado, o professor atendeu e rapidamente concordou em deixar o exame para a semana seguinte.

"Arrumei a mala, fui dormir, mas fiquei pensando: 'Tenho o exame em breve, como vou para o Chile?'", se perguntou.

"Pancho e Gastón me disseram: 'Mas você revisa no avião.' E lembrei do avião, foi uma alegria, foi muito divertido. Como estudar no avião? Aí no Chile você vai dormir tarde, bebe pisco o dia todo, era uma vida maluca."

"Então, às 11 da noite fui ao quarto dos meus pais, bati na porta e disse-lhes: 'Não se preocupem, não vou para o Chile.' "

Depois ligou para a mãe de Costemalle, que morava na esquina de sua casa e eles iriam juntos para o aeroporto.

"Diga a ele para, por favor, não me pegar porque eu não irei. E por favor, não diga nada a Pancho e Numa até que estejam no aeroporto, porque eles podem vir me procurar."

Numa Turcatti morreu em 11 de dezembro de 1972 na cordilheira dos Andes, após passar 59 dias na montanha congelada.

Ele tentou encontrar alguma saída em duas tentativas, e na segunda vez ficou desacreditado ao ver que era impossível, segundo o livro A Sociedade da Neve, de Pablo Vierci.

Ele foi fundamental para desenterrar colegas cobertos de neve no dia em que uma avalanche passou por cima deles.

Depois disso, Numa praticamente não saiu do avião. Ele desenvolveu escaras nas costas, cheias de pus, e depois contraiu septicemia, uma infecção generalizada.

Deixou escrita num pedaço de papel a seguinte frase, em referência a um trecho do Evangelho segundo João: "Não há amor maior do que dar a vida pelos amigos".

Numa foi o último a morrer na montanha e sua morte levou Roberto Canessa, Fernando Parrado e Antonio Vizintín a partir no dia seguinte para o Chile em busca de salvação.

Das 45 pessoas que viajaram, 16 sobreviveram. Pancho Delgado foi um deles.

Gastón Costemalle foi ejetado do avião após a cauda se soltar no impacto com a montanha. Julio Martínez Lamas e Arturo Nogueira também morreram. José Luis Inciarte sobreviveu.

Em homenagem à sua morte, Alfredo Cibils propôs renomear o Loyola Fútbol Club como Numa Turcatti, que desde então leva seu nome.

Fonte: correiobraziliense

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